10 Junho 2020
"A Covid-19 é uma patologia da globalização? Sem dúvida, mas em condição de acrescentar que a pandemia, ao nos revelar a inadequação da saúde global, também nos demonstra sua necessidade", escreve Jean-Paul Gaudillière, historiador da Ciência e da Saúde, diretor de pesquisa do INSERM e diretor de estudos da EHESS, membro do Centro de Pesquisa Medicina Ciências da Saúde Mental e Sociedade (Cermes3).
O artigo foi publicado originalmente em francês por AOC media – Analyse Opinion Critique, França, 03-04-2020. A tradução é de Daniela Aparecida Pacifico, socióloga e professora no Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa e Catarina (UFSC) e Silvia Zimmermann, engenheira agrônoma e professora do Curso de Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Desenvolvimento, da Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA).
A gestão da epidemia de Covid-19 revelou uma falta de preparação dos países ocidentais, que sofreram com a escassez de máscaras, de testes e de leitos de UTI. Essa patologia da globalização põe em evidencia a excepcionalidade das sociedades capitalistas avançadas e nos convida a repensar o modo de governança da saúde em escala mundial, nos convidando a pensar em uma “saúde global” menos euro-centrada.
No dia 13 de março de 2020, um avião aterrissa no aeroporto de Roma, rola sobre a pista e estaciona. Dele descem nove pessoas que se organizam imediatamente ao pé da escada para uma foto. Ao fundo, caixas de papelão com rótulos em mandarim começam a ser descarregadas: a primeira missão médica chinesa na Itália acaba de chegar. A China espera apoiar o sistema de saúde italiano enviando médicos especialistas, respiradores e máscaras.
Essa cena forte foi repetida várias vezes nas redes sociais e canais de notícias em 24 horas. Para a China, este é um novo registro de intervenção sanitária, não mais para a África – onde se tornou o primeiro país a construir hospitais –, mas em direção da rica Europa, anteriormente líder em assistência médica internacional. Além da operação-propaganda e seus usos geopolíticos da crise, o episódio, para os italianos, atesta em primeiro lugar a desorganização e a escassez que caracterizam suas respostas a uma epidemia cuja magnitude desorganizou totalmente a assistência em saúde.
Mas o despreparo não é apenas italiano. As mesmas dificuldades e a escassez são a cada dia mais visível também na França, e tem causado protestos dos profissionais da saúde, seguida de interrogações dos cidadãos sobre como as autoridades sanitárias e políticas têm agido ou não têm agido desde o final de janeiro quando surgiu o primeiro foco de contaminação em Wuhan.
Doações de máscaras de Pequim e de seus bilionários preocupam agora também Paris. As informações que se acumulam sobre a escassez de máscaras seguem todas na mesma direção e deixam perplexos jornalistas chineses, coreanos ou vietnamitas. De amplitude dramática, tem se tornado impossível disponibiliza-las sistematicamente para pacientes infectados, residentes de asilos, para boa parte de profissionais de saúde que atendem em domicílio, e mesmo dentro dos hospitais, para os funcionários que não realizam os procedimentos mais arriscados. Sem mencionar os trabalhadores de caixas de supermercado, comerciantes, professores, carteiros…
As raízes do problema não datam de ontem, mas de anteontem, e não são cíclicas e sim estruturais. Elas estão relacionadas às reorganizações sucessivas de toda a cadeia produtiva e de distribuição desses materiais, aos efeitos da internacionalização e da terceirização, e a baixa capacidade de produção na França. Dois terços do que têm sido utilizados (na França) [1] vem sendo produzido na Ásia, especialmente as máscaras FFP2 que são produzidas na China. Elas não apenas pararam de chegar, mas o surto da crise italiana levou os países europeus produtores de máscaras, como a Alemanha em primeiro lugar, a proibir, as exportações.
De repente, multiplicamos soluções ad hoc: distribuição de máscaras que perderam sua validade, mas que são consideradas reutilizáveis; reciclagem após uso ou tempo de descontaminação; destinação emergencial da produção local para alguns hospitais; recolhimento de todo tipo de materiais úteis que estavam em laboratórios de pesquisa, empresas, e coletivos locais; fabricação de máscaras de tecido por particulares e empresas, com base na previsão de escassez total durante o pico da epidemia; e finalmente, como isso já havia ocorrido com medicamentos na Grécia dentro do plano de austeridade, doações de agentes privados.
O sistema de saúde francês, considerado um dos melhores do mundo recentemente, descobre formas de medicina, frequentemente identificadas com as intervenções sanitárias dos países do Sul global, isto é, uma medicina de gestão de recursos escassos, de adaptação em tempo real e de improviso [2]. Uma medicina também de seleção de pacientes, já que o número de pessoas em estado grave, de acordo com a maioria das experiências, excede o número de leitos de UTI no país, mesmo com a criação emergencial de centenas de novos leitos adicionais.
Diante dessa escassez, após um ano de mobilização de pessoas alertando sobre a “crise hospitalar”, como não se perguntar sobre a maneira cujas transformações em nosso sistema de saúde nas últimas duas décadas agravam a pandemia?
Essa mobilização evidencia os efeitos das políticas econômicas de “racionalização” perseguidas por vinte anos, simultaneamente ao fechamento de grande número de leitos (inclusive os de terapia intensiva – UTI), crescimento significativo do número de pessoas acolhidas (particularmente em emergências), intensificação do trabalho para todo pessoal, sob a ameaça de demissão. Infelizmente, como sabemos, a discussão coletiva aberta pelas pessoas sobre as necessidades prioritárias, em relação aos postos de trabalho e financiamento, resultou em compromissos mínimos que a maioria dos praticantes envolvidos entende como inadmissível.
Há, portanto, um longo período de crise: o da virada gerencial, o da redução de custos, o da multiplicação de indicadores e o da busca contínua pelo desempenho econômico. A escassez de máscaras se inscreve diretamente neste contexto, uma vez que ela deriva, em parte, de decisões tomadas após a epidemia de H1N1, em 2009. Nós lembramos que isso resultou em questionamentos públicos sobre compras de vacinas contra essa gripe, a maioria das quais não foi aplicada. Em 2010, o Tribunal de Contas solicitou relatório para justificar decisões, nunca antes questionadas, de drástica redução do orçamento destinado à saúde.
Mas há também outra temporalidade da crise, mais recente, que emergiu há dois meses desde a divulgação da situação em Wuhan, da publicação de pesquisadores acerca do sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2, da doença Covid-19, e a descoberta do primeiro caso importado na França. Este período de tempo destinado a ativar os planos de emergência preparados para a gripe, [tempo] de escolha de intervenções – considerando as especificidades do novo vírus.
É também tempo de responsabilidades diretas no enquadramento da estratégia de luta “à la francesa”. Deste ponto de vista, esperando outro tempo que será o do balanço, é surpreendente que após décadas de discussão sobre riscos, expertises e crises, que nossos governantes se apeguem ao mantra de que eles seguem apenas os dados da “ciência”, fingindo esquecer que os conhecimentos e os experts são múltiplos, que seus modelos têm limites e que a responsabilidade do político é organizar a precaução.
Voltemos à estratégia adotada em meados de março. Aquela focada na realização de um número limitado de testes para confirmar o diagnóstico em pessoas com sintomas graves, associada ao confinamento generalizado, contrastante com as escolhas feitas na Alemanha, Cingapura ou na Coréia do Sul. Esses países de fato montaram triagens estendida para as pessoas com sintomas moderados e/ou que tiveram contato com casos confirmados. O exemplo coreano é particularmente importante na medida em que a política adotada permitiu conter a transmissão em três semanas sem limitar a totalidade da população. Claro que a política de teste sozinha não pode explicar esse resultado, mas é um fator crucial.
A identificação de pessoas infectadas [nestes países] levou a dois tipos de intervenção: o isolamento social reforçado baseado na reconstrução dos movimentos das pessoas que testaram positivo, desde a coleta de seus dados pessoais e divulgação pública dessas informações em anonimato; a agilidade para suporte clínico aos pacientes contaminados monitorados, facilitada pela existência de uma infraestrutura hospitalar com um número de leitos por habitante que é o dobro do existente na França.
A estratégia francesa foi justificada por dois argumentos: primeiro, o pequeno interesse nos testes sistemáticos após o número de casos terem começado aumentar muito rapidamente no final de fevereiro com uma disseminação geográfica rápida. Quando os casos críticos se tornaram urgentes, o argumento mudou e as autoridades sanitárias apresentaram a incapacidade de fazer mais devido a problemas de logística. Realizar mais testes não seria possível de qualquer maneira, porque o número de kits produzidos e disponibilizados é drasticamente limitado pelo número de máquinas de PCR3 disponíveis e pela escassez de reagentes – normalmente importado da China e dos Estados Unidos.
Mas como a Coréia do Sul fez isso, sendo que ela não tinha mais do que a França em termos logísticos para obtenção de testes moleculares de Covid-19? Os eventos serão conhecidos com precisão apenas com investigação ad hoc, mas segundo a imprensa sul-coreana, a implementação da estratégia começou em 24 de janeiro (após a detecção de um primeiro caso no dia 20), com a criação de uma rede de laboratórios de pesquisa, a aprovação de uma primeira técnica de diagnóstico em 7 de fevereiro e a disponibilização de 50 instituições médicas, organização da produção em massa de kits de testes para atingir 10.000 por semana em meados de fevereiro (correspondente a um milhão de testes em potencial).
Era, portanto, técnica e logisticamente possível criar uma infraestrutura para produção de teste na França. A escolha não foi feita, e ela não deve ser atribuída, pelo menos em parte, ao pouco interesse pelo que estava acontecendo na Ásia? É, portanto, surpreendente que todos os médicos e funcionários de saúde entrevistados pela imprensa sobre a cronologia de janeiro a fevereiro evocassem o choque da crise hospitalar na Lombardia [na Itália] como um momento de tomada de consciência acerca da realidade de perigo para a França...
Assim, a crise pode muito bem minar certa visão de relacionamento Norte-Sul, ou mais precisamente Europa-Ásia, herdada de experiências pós-coloniais das décadas de 1960 a 1990. Na ausência de infraestrutura necessária para uma produção suficiente de testes, a discussão sobre a estratégia de confinamento para controlar os primeiros grandes focos não poderia ir além o estado teórico. Portanto, o confinamento tornou-se quase inevitável.
Não somente a pandemia de Covid-19 é o produto das circulações relacionadas à globalização, mas as respostas a esta pandemia são amplamente restritas pelo imaginário dessa mesma globalização. Deste ponto de vista, só podemos ficar impressionados com a profunda discrepância entre os princípios, metas e ferramentas da gestão global de crises e aqueles que chamamos de saúde global nos últimos trinta anos (global health). Esse modo de governança global da saúde nasceu de uma forte crítica às políticas e práticas das Organizações das Nações Unidas e dos governos dos chamados países do Terceiro Mundo nas décadas de 1970 e 1980 – particularmente às estratégias de atenção básica preconizada pela OMS desde 1978.
Essa abordagem pode ser vista como uma estratégia “Horizontal” na medida em que foi a primeira a reivindicar um direito à saúde em geral; depois vincular a intervenção sanitária e desenvolvimento; reduzir o papel das transferências de tecnologia avançada em benefício dos recursos locais; para finalmente dar prioridade as populações rurais, aos centros comunitários de saúde e ao envolvimento de “comunidades”. Ao contrário do que o slogan oficial da OMS sugeria, “saúde para todos em 2000”, essa estratégia de atenção básica não significa “toda a saúde, para todos”, mas passou por priorização das chamadas necessidades “básicas”, neste caso para OMS: as doenças infecciosas e a saúde materna e infantil.
Estreitamente vinculado às políticas de desenvolvimento dos Estados-nação desde sua independência, essa estratégia tornou-se cada vez mais difícil de sustentar nas décadas de 1980 e 1990 por causa da conjunção entre crises financeira (com sua sequencia de programas de ajuste estruturais), as consequências da epidemia de HIV/AIDS e da ofensiva política dos Estados Unidos de Reagan contra as Nações Unidas. Surfando sobre esses eventos, os novos atores da saúde global têm compartilhado a ideia de programas “verticais”, focados em uma patologia com registro limitado de intervenção (teoricamente escolhidos com base em um cálculo de custo-eficiência).
A maioria desses programas é coordenada e regularmente avaliada pelas próprias pessoas que os financiam – do Bill & Foundation Melinda Gates ao Banco Mundial e o Fundo Global de combate a AIDS, tuberculose e malária. Os referidos programas visam limitar a carga de doenças infecciosas (de um ponto de vista de continuidade histórica), garantindo o livre acesso às tecnologias, como quimioterapia ou vacinas.
A luta contra a pandemia de Covid-19 altera essas prioridades, de várias maneiras. Primeiro, os conhecimentos relacionados a pandemia e as respostas a ela não estão mais apenas localizadas na Europa e na América do Norte; que não podem mais regular a transferência de conhecimentos e de ferramentas de acordo com um único gradiente norte-sul. Então, as estratégias de contenção envolvem a implementação em larga escala de intervenções médico-sociais, condicionadas pelo estado das infraestruturas (funcionários e hospitais) que estão fora do escopo dos programas verticais. Finalmente, a resposta ao Covid-19 repousa quase exclusivamente em iniciativas dos Estados e de suas administrações públicas de saúde.
De fato, desde o início da crise, a única instituição de saúde global que desempenhou um papel importante tem sido a OMS, ou seja, a organização emblemática da era da Saúde Pública Inter/nacional fortemente criticada nos anos de 1980. Os outros atores da saúde global permaneceram em silêncio ou têm considerado que as prioridades permaneceram as mesmas sendo a África a principal área de risco.
A pandemia de Covid-19 é, portanto, indicativa do fim da “grande partilha”, ou seja, o fim do status de excepcionalidade da saúde em sociedades capitalistas avançadas. Esse status de excepcionalidade foi baseado na ideia de governança da saúde, apesar de todas as suas limitações e imperfeições, fundadas numa política de “direito a”, na socialização de custos, na universalização dos beneficiários, na mobilização da ciência e tecnologias.
Essa política de abundância há muito se opõe a uma política de necessidades: de escassez, de improviso e de seleção, dominante no Sul. Esse grande compartilhamento (abundância no Norte versus escassez no Sul) perde sua relevância porque a crise gerada pela difusão planetária de SARS-CoV-2 fez emergir práticas convergentes de gestão da escassez, mas também porque, além do Covid-19 e após três décadas de globalização, o Sul mudou muito. A urbanização e a industrialização estão desempenhando um papel pleno e todos agora enfrentam os mesmos desafios sanitários do Norte: o fardo crescente de doenças crônicas desafiando o conhecimento científico, passando pelos efeitos da degradação do meio ambiente.
E então: a Covid-19 é uma patologia da globalização? Sem dúvida, mas em condição de acrescentar que a pandemia, ao nos revelar a inadequação da saúde global, também nos demonstra sua necessidade. Se, como diziam os altermundialistas [3] dos anos 2000, outro mundo é possível, então após a passagem do novo vírus, a saúde global também será mais essencial do que nunca.
[1] Os colchetes foram empregados ao longo do texto para interferência explicativa das tradutoras.
[2] Nota das tradutoras: No original o autor utilizou bricolage. O sentido de bricolage no português é “fazer você mesmo”. Na tradução optamos por utilizar a palavra improviso, pois a frase se refere a algo feito sem muitos recursos e na condição momentânea. Na gíria brasileira é a popular “gambiarra”, uma solução improvisada, um remendo.
[3] Nota das tradutoras: No original altermondialistes. Para explicar o sentido expresso no texto selecionamos uma passagem de Massiah (2009): “O movimento altermundialista em seus diferentes significados é portador de uma nova esperança nascida da recusa da fatalidade. É esse o sentido da afirmação ‘um outro mundo é possível’. Não vivemos nem ‘o fim da História’ nem ‘o choque de civilizações’” (Publicado no Le Monde Diplomatique, edição 18, de 2009).
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Covid-19 e saúde global: o fim do grande compartilhamento? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU