03 Agosto 2024
"Viktor Orbán realmente marchará para Bruxelas e, como afirma, "ocupará" o coração da União Europeia? O garoto-problema da UE tem colidido com o bloco há anos, mas não é Nigel Farage. Ele não quer abandonar o barco; deseja comandar a embarcação danificada e corrigir o rumo", escreve Lily Lynch, jornalista, em artigo publicado por Nueva Sociedad, 01-08-2024.
O futuro da União Europeia também se escreve em Budapeste, onde Viktor Orbán desenvolve uma estratégia antiliberal com o objetivo de transformar a União de dentro para fora. Os setores progressistas frequentemente denunciam que isso representa uma afronta aos "valores europeus", mas esses valores não são evidentes, e o próprio mandatário húngaro pretende representá-los, de maneira não pouco oportunista, a partir de posições nacional-conservadoras, aliado aos populistas radicais.
Viktor Orbán realmente marchará para Bruxelas e, como afirma, "ocupará" o coração da União Europeia? O garoto-problema da UE tem colidido com o bloco há anos, mas não é Nigel Farage. Ele não quer abandonar o barco; deseja comandar a embarcação danificada e corrigir o rumo. "Nosso plano não é abandonar Bruxelas [a UE], mas assumir o controle dela", declarou Orbán a meios húngaros em dezembro de 2023[1]. O crescimento da direita populista na Europa – incluindo França, Itália e Alemanha – poderia ajudar aos planos do mandatário húngaro.
Mas não é apenas uma questão de poder; neste conflito está em jogo algo mais ideológico, até mesmo filosófico. Muitos dos detratores liberais de Orbán o caracterizam como uma ameaça para os "valores europeus" fundamentais, mas há uma estranha falta de clareza acerca de quais são realmente esses "valores". Podemos supor que aqueles que empunham a ideia dos "valores europeus" se referem à "religião do progresso universal": democracia liberal, mercados livres e, nos últimos anos, políticas de identidade neoliberais. Também há um indício de evangelismo secular no termo; esses "valores europeus" podem assemelhar-se a um imperialismo com rosto humano.
Orbán, no entanto, também se vê como o campeão dos valores europeus, e a seus críticos, como aqueles que os colocam em perigo. Portanto, nesta insurgência continental estão em jogo o próprio significado e a direção dos princípios fundamentais da UE, assim como as alternativas igualmente opacas que oferece Orbán.
No plano retórico, o conceito de Orbán de uma "Europa das nações", com valores enraizados na tradição cristã, claramente não se encaixa na visão liberal progressista de uma Europa secular baseada nos direitos humanos e na igualdade. Mas até mesmo as patologias que os opositores de Orbán lhe atribuem com razão (nacionalismo, clientelismo, autoritarismo) são, em última instância, tão europeias quanto o Eurovisão. De fato, que os "valores da UE" sejam vulneráveis a esse tipo de ataque revela uma certa vacuidade no coração do projeto europeu. Em outras palavras, é um barco vazio pronto para ser abordado, e já começou uma sigilosa tomada de controle.
Em 2022, a cadeia de televisão europeia Euronews foi adquirida por um obscuro fundo de investimento português próximo ao governo de Orbán[2]. O fundo soberano húngaro Széchenyi Funds, que é uma entidade pública, também investiu 45 milhões de euros na compra, e uma empresa de comunicações propriedade de um colaborador próximo a Orbán contribuiu com 12,5 milhões de euros a mais. A motivação não era difícil de deduzir: segundo documentos internos do Széchenyi Funds obtidos por jornalistas, a Euronews, que foi descrita como "a sétima marca mais influente na política da UE", havia sido adquirida "para mitigar o viés de esquerda no jornalismo". É uma estratégia para gerenciar meios que Orbán já aperfeiçoou em casa: cálculos recentes sugerem que o mandatário e seus associados do partido Fidesz agora possuem ou controlam até 90% dos meios de comunicação húngaros[3]. Como parte da mudança de imagem da Euronews, a cadeia transferiu recentemente sua sede de Lyon para o coração de Bruxelas. Lá, pelo menos em termos de poder brando, está em muito boa companhia.
Em 2021, o governo húngaro comprou uma enorme mansão do século XVIII na mesma rua de Bruxelas que os funcionários já chamam de "Casa da Hungria"[4]. Outras iniciativas do governo húngaro incluem o Mathias Corvinus Collegium (frequentemente denominado MCC), um think tank que abriu uma nova filial em Bruxelas em 2022 e que promove valores conservadores e debates sobre assuntos da UE conforme o pensamento orbanista. Finalmente, o governo húngaro também aporta fundos para The European Conservative, uma publicação em inglês onde se divulgam notícias europeias a partir de uma perspectiva conservadora. Em conjunto, a proliferação dessas instituições apoiadas por Orbán ressalta a escala e a seriedade de sua ambição em Bruxelas.
Na opinião de Orbán, o conflito na Europa está definido por dois bandos em disputa: seu próprio grupo, os soberanistas (ou nacionalistas), e seus opositores, os federalistas. Os federalistas querem criar uns "Estados Unidos da Europa" centralizados, minando o Estado-nação e reduzindo seus poderes. Enquanto isso, os soberanistas como Orbán acreditam que a UE deveria ser reduzida para ser um organismo flexível, majoritariamente cultural, que una os Estados nacionais europeus em seu cristianismo compartilhado. Por sua vez, os federalistas veem os soberanistas como reacionários nacionalistas "do solo e do sangue", primos ideológicos dos fascistas responsáveis pelos piores horrores do século XX.
Mas, embora a divisão entre os dois lados tenha se ampliado e se intensificado nos últimos anos, Orbán acredita que a tensão entre soberanistas e federalistas foi essencial para o funcionamento da UE. No passado, explicou recentemente, pensava-se que "se [os] soberanistas derrotassem os federalistas, então a força coesiva cessaria, mas se os federalistas eliminassem os soberanistas, então o que seguiria só poderia ser a criação de outro império opressivo". No entanto, diz Orbán, esse equilíbrio construtivo se degradou à medida que os federalistas começaram a mudar. Em sua opinião, os federalistas de antigamente eram "universalistas católicos"; não pediam a abolição dos Estados nacionais, mas sim sua proteção dentro de algo como uma cristandade unida, um Ocidente ou uma Res publica christiana[5]. O que mudou é que esses federalistas mutaram em "liberais progressistas (...) [que] se tornaram como os comunistas e agora são uma ameaça real à nossa liberdade". Há certa ironia na fusão que Orbán faz dos "valores europeus" liberais progressistas com o comunismo. Como escreveram o historiador Samuel Moyn e outros, esses valores foram frequentemente defendidos por políticos e instituições da Europa do pós-guerra em um esforço para "combater o socialismo doméstico"[6].
A Hungria tem divergido com os eurócratas federalistas desde que o Fidesz chegou ao poder em 2010. Antes disso, a elite tecnocrática dos governantes social-democratas geralmente se dava bem com os tecnocratas de Bruxelas. A UE teve um papel destacado na ajuda à Hungria para evitar a falência em 2008; juntamente com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, preparou um pacote de resgate de 25 bilhões de euros para o país. Foram adotadas rigorosas medidas de austeridade e os socialistas substituíram seu plano de combate à pobreza por um programa de trabalho para desempregados, o que representou um enorme esforço para os húngaros que já estavam em dificuldades. O Fidesz aproveitou o consequente descontentamento.
O partido fez campanha com uma plataforma oposta à globalização, às instituições supranacionais e ao conceito de uma "união cada vez mais estreita". As linhas de combate se aperfeiçoaram na época do Brexit. Os britânicos, disse Orbán em março, "sempre pensaram em termos de Estados nacionais", e com a saída do Reino Unido, os países da Europa Central ficaram como bastiões na defesa da posição soberanista[7]. Mas quase ao mesmo tempo, houve outra coisa que também provocou importantes fissuras entre o chamado Grupo de Visegrado ou V4 (Hungria, República Tcheca, Eslováquia e Polônia) e grande parte do resto da UE: a crise migratória de 2015.
Naquele ano, a famosa cerca fronteiriça da Hungria se tornou um local de disputa pelo significado dos "valores europeus". Para os liberais progressistas do bando federalista de Bruxelas, era um símbolo de brutalidade e violência, uma renúncia a esses "valores fundamentais" europeus essenciais. Para Orbán e outros do bando do V4, era uma expressão da soberania da Hungria e do conceito orbanista de "valores europeus", uma fortaleza que protegia a civilização cristã das hordas muçulmanas. Para esclarecer a questão, Orbán invocou durante a crise a invasão otomana e afirmou que "se a questão é a convivência com comunidades muçulmanas (...), bem, tivemos a possibilidade de experimentar isso durante 150 anos"[8].
Esse desacordo fundamental sobre o significado e a sustentação dos "valores europeus" é parte do que Orbán buscou explorar no contexto das recentes eleições para o Parlamento Europeu. O Fidesz abandonou o Partido Popular Europeu (PPE), de centro-direita, em 2021, após enfrentar a expulsão por deficiências democráticas crescentes e preocupações com o Estado de direito na Hungria, e ficou fora dos dois grupos políticos nacionalistas de direita no Parlamento Europeu. Esses dois grupos são divididos por um único tema: o apoio à Ucrânia. O grupo Conservadores e Reformistas Europeus (CRE), que inclui o partido polonês Lei e Justiça e os Irmãos da Itália de Giorgia Meloni, apoia firmemente a continuidade da ajuda militar a Kiev. Em contraste, o grupo Identidade e Democracia (ID), que reúne a Alternativa para a Alemanha (AfD) e o Reagrupamento Nacional (RN) de Marine Le Pen, critica a ideia de armar a Ucrânia e quer manter relações amistosas com a Rússia, uma posição que Orbán compartilha. Certas pesquisas sugerem que ambos os agrupamentos de direita estão prontos para acumular mais poder nas eleições para o Parlamento Europeu.
Alguns especularam que, apesar de suas diferenças sobre a Ucrânia, CRE e ID poderiam se fundir em um único bloco populista de direita. Em meados de abril, Orbán celebrou uma coletiva de imprensa conjunta com o ex-primeiro-ministro polonês e líder de Lei e Justiça, Mateusz Morawiecki, e com o ex-diretor da Agência Europeia de Guarda de Fronteiras e Costas (Frontex), Fabrice Leggeri, candidato do RN da França. À reunião, organizada pelo CRE, compareceram vários membros do ID, incluindo deputados da AfD, da Alemanha, e do partido nacionalista flamengo Vlaams Belang[9]. Sobre o potencial para aprofundar a cooperação, Morawiecki declarou à Euractiv: "Posso dizer que tenho uma ótima relação com meus colegas do Fidesz; sei que Giorgia Meloni e Viktor Orbán têm uma boa relação"[10]. Mas a perspectiva de uma fusão é muito improvável, já que há outros que estão muito menos entusiasmados com a ideia de dar boas-vindas aos húngaros em suas fileiras.
Alguns membros do CRE do Partido Democrático Cívico da República Tcheca (ODS) e dos Democratas da Suécia têm feito reservas à ideia de alinhar-se com o Fidesz, invocando a insistência da Hungria em manter vínculos de amizade com a Rússia. O eurodeputado tcheco Alexandr Vondra deixou claro esse ponto em uma entrevista no início do mês: "Se alguém simplesmente repete como um papagaio a propaganda de Putin, não precisa estar aqui [no CRE]. Eu já disse isso ao Fidesz e é por esse motivo que não se pode negociar agora com eles"[11]. Finalmente, em julho passado, Orbán lançou o grupo Patriotas por Europa, que com a incorporação do RN da França e do Vox da Espanha, entre outros, se transformou na terceira força do Parlamento Europeu no contexto da implosão do bloco ID.
E há mais contradições dentro deste bloco da direita emergente. Embora muitos em Bruxelas possam ter esquecido, antes de a Rússia invadir massivamente a Ucrânia em fevereiro de 2022, foi a Hungria que pressionou mais intensamente para que a ampliação da União incluísse seu "vizinhança" oriental[12]. Budapeste tem insistido há muito tempo que a UE acelere a adesão tanto da Sérvia quanto da Bósnia e Herzegovina. Esse entusiasmo se baseia, em parte, na relação pessoal de Orbán com o presidente sérvio Aleksandar Vučić e com o presidente do território da República Srpska da Bósnia, Milorad Dodik. No início de abril, Orbán foi até mesmo condecorado com a Ordem da República Srpska e se referiu a Dodik como "meu amigo Milorad" durante seu discurso de aceitação[13]. Enquanto isso, no Reino Unido e nos Estados Unidos, Dodik foi sancionado por impulsionar a secessão da República Srpska, de maioria sérvia, o que, se concretizado, provavelmente desencadearia uma nova guerra na Bósnia.
Ao receber a condecoração em Banja Luka, Orbán também falou sobre a necessidade de ampliar a UE: "Sem os sérvios, não há segurança europeia. Sem os sérvios não há uma UE saudável (...) E, claro (...) há muitas coisas ruins na UE: eu luto lá todos os dias. No entanto, hoje não existe um quadro melhor do que a UE para que nossas nações se fortaleçam". À primeira vista, essa retórica a favor da ampliação pode parecer desconcertante, mas se analisada mais de perto, é totalmente coerente: Orbán deseja um bloco maior, mas mais fortificado. Ampliar a adesão a outros cristãos soberanistas também tem o potencial de dificultar os propósitos centralizadores dos federalistas. Como explicou em 2016 Bulcsú Hunyadi, analista sênior do Political Capital Institute com sede em Budapeste: "Quanto mais a UE se expande, menos integrada ela se torna".
Orbán sempre apresentou seu euroceticismo como parte de um plano mais amplo para reformar o tecido social da própria Hungria. Mas essa retórica costuma ocultar o fato de que suas grandes visões não se alinham com seu magro histórico nacional. No início, havia algo promissor. Orbán chegou ao poder repudiando a ortodoxia neoliberal e o "pacote de resgate" ditado pelo FMI, pelo Banco Mundial e pela UE, e suas políticas econômicas intervencionistas tiveram algum sucesso inicial. No entanto, com o tempo ficou claro que esse modelo foi pouco mais do que "neoliberalismo em um só país". Como escreveu o sociólogo húngaro András Bozóki:
Orbán atacou habilidosamente os bancos (a maioria deles em mãos estrangeiras), as corporações multinacionais, os meios de comunicação estrangeiros e os funcionários da UE com base em [sua própria preferência por] nacionalismo econômico e independência soberana, mas também combinou isso com uma política interna favorável aos negócios, como a introdução de um imposto fixo, a redução de direitos trabalhistas e ataques a pessoas sem-teto, desempregados e sindicatos[14]. Em dezembro de 2018, por exemplo, o governo de Orbán adotou a chamada "lei da escravidão", que permite aos empregadores exigir 400 horas extras por ano, um aumento dramático em relação às 250 horas permitidas anteriormente[15]. A lei também permite que os empregadores atrasem o pagamento das horas extras por até três anos.
Enquanto isso, Orbán transformou o Estado em um veículo para seus próprios interesses, e os contratos públicos financiados pela UE criaram uma nova classe de oligarcas amigos do poder. Por exemplo, Lőrinc Mészáros, amigo de infância de Orbán, que em 2018 se tornou o homem mais rico da Hungria[16]. Mészáros havia trabalhado como encanador por décadas, mas naquele ano suas empresas ganharam as licitações públicas com maior financiamento fiscal do país. Esses contratos totalizaram a quantia exorbitante de 826 milhões de euros, 93% dos quais vieram da UE. Orbán também designou aliados para cargos-chave do Estado e manteve um controle total sobre o ministério público, garantindo que ele e seus associados pudessem estar protegidos de qualquer forma de escrutínio.
E enquanto Orbán afirma ser o defensor da Europa cristã, a quantidade de pessoas que se identificam como religiosas na Hungria está em declínio: mais de 50% do país diz não praticar nenhuma religião ou se recusa a declarar sua fé[17]. A quantidade de pessoas que admitem praticar uma religião atingiu o nível mais baixo da história: um nível mais baixo do que durante o período socialista, quando a prática religiosa era mal vista pelo Estado. Orbán mesmo, segundo se diz, não frequenta a igreja[18]. Ele também se desentendeu com importantes líderes religiosos da Hungria, incluindo aqueles que uma vez foram seus parceiros próximos. O pastor Gabor Ivanyi, o homem que celebrou o casamento de Orbán e batizou dois de seus filhos, agora está entre seus críticos mais ferozes, enfurecido pela decisão do mandatário húngaro de privar mais de 200 instituições religiosas[19] do reconhecimento oficial do Estado, o que deixa muitas igrejas à beira da falência. "O cristianismo de Orbán é um cristianismo político", disse o pastor Ivanyi. "Não tem nada a ver com Cristo, com o humanismo ou com a Bíblia".
Apesar de sua retórica nacionalista e conservadora, isso revela um vazio essencial no projeto de Orbán. Assim como Vladimir Putin, a estratégia cultural de Orbán o encontra principalmente lutando contra moinhos de vento, tornando-se inimigo de um "wokismo" surgido das batalhas culturais anglo-americanas, que têm pouca ou nenhuma ressonância interna; como era de se esperar, entre seus alvos estão drag queens e departamentos de estudos de gênero. Sua fixação com o "antiwokismo" em uma Hungria homogênea pode dar a impressão de que ele prefere simular estar preocupado com estudantes universitários americanos do que enfrentar a dura realidade econômica de seu país, onde a inflação atingiu um pico de mais de 25% em 2023 (a mais alta da UE) e os preços dos alimentos acumularam aumentos de mais de 45%[20] durante o ano. No entanto, além da mera distração interna, inflamar a batalha cultural cumpre uma função adicional: permite a Orbán posicionar-se como uma figura proeminente da direita transnacional e erguer Budapeste como um farol de "antiwokismo": um discurso que será útil se seu objetivo é unificar as forças populistas de direita em toda a Europa.
Orbán também precisa lidar com sua própria batalha cultural sexual. Em fevereiro, revelou-se que a presidente Katalin Novak havia concedido um indulto a um homem preso por encobrir abusos sexuais a menores cometidos pelo diretor de um orfanato estatal. A presidente Novak e a então ministra da Justiça Judit Varga, duas das mulheres mais destacadas do Fidesz, foram posteriormente forçadas a renunciar, quase com certeza por ordem de Orbán. Mas logo surgiram mais detalhes. Antes da visita do papa a Budapeste em abril de 2023, Novak indultou o ex-subdiretor de um lar infantil que havia chantageado crianças para que retirassem seu testemunho contra o diretor do orfanato, um pedófilo contumaz.
Quando a história completa veio à tona, as ruas de Budapeste se encheram de manifestantes. Então, o governo foi acusado de agir de maneira hipócrita: Orbán, o grande defensor da "família", se viu protegendo um crime imoral. O escândalo se amplificou com a deserção de Peter Magyar, ex-marido de Varga e ex-membro do Fidesz, que em março publicou uma gravação de Varga detalhando até que ponto os membros do círculo íntimo da elite de Orbán haviam interferido na ação judicial por um caso de corrupção. Desde então, Magyar se apresenta como o novo rosto da oposição. E assim demonstrou nas últimas eleições europeias, quando surpreendeu ao obter quase 30% dos votos e ofuscar, com seu segundo lugar, a vitória de Orbán[21].
No entanto, a autoridade de Orbán, embora um pouco abalada, continua intacta. Sua credibilidade foi afetada, mas ele sobreviverá, embora ainda esteja por ver se a persistência demonstrada dentro de suas fronteiras nacionais poderá ser traduzida em uma onda antiliberal que engula toda a Europa. Ele se mostrou um sobrevivente político e um camaleão, ascendendo primeiro como um jovem dissidente liberal e chegando depois ao topo do poder como um Svengali antiliberal[22]. Isso levou alguns de seus críticos húngaros a afirmar que a virada antiliberal de Orbán foi inteiramente oportunista e desprovida de princípios ou ideologia. O jornalista Paul Lendvai escreveu sobre a esmagadora derrota do então liberal Fidesz nas eleições de 1994, que transformou o partido no menor do Parlamento[23]. Ele sustenta que foi nesse momento que o Fidesz começou a se inclinar para a direita, e Orbán trocou seu visual de cabelo comprido e jeans por um visual mais conservador: "Não parecia haver um exame de consciência ideológico profundo, mas apenas cálculos astutos sobre o que seria necessário para ganhar o poder". Logo, seus discursos se encheram de referências à tradição e à pátria. Nesse sentido, talvez Orbán não seja tão diferente da UE, com a qual tem discordado há muito tempo: vazio e politicamente maleável, invocando "valores europeus" supostamente firmes para mascarar um núcleo espiritual empobrecido.
Mas nada disso deve fazer subestimar a extensão de sua ambição. Na Conferência Política de Ação Conservadora (CPAC) realizada na Hungria em 2024, Orbán sugeriu que uma "ordem mundial soberanista" poderia substituir a ordem liberal atual, e que isso poderia acontecer ainda este ano, com eleições cruciais em ambos os lados do Atlântico. "Que venha finalmente a era dos soberanistas", disse ele. "Make America Great Again! Make Europe Great Again! Vamos, Donald Trump! Vamos, soberanistas europeus!". O mandatário húngaro enfatizou que a ordem mundial soberanista não teria ideologia, e podemos supor que a China, com a qual a Hungria mantém relações amistosas, também estaria incluída nessa ordem. Essa competição posideológica, que os liberais progressistas chamam de competição entre autocracias e democracias, chegou para ficar.
A pergunta então continua sendo: quem e o que é verdadeiramente "europeu", ou o que representa melhor os "valores europeus"? Por mais amplamente adotados que possam parecer hoje em dia, os valores liberais progressistas são um fenômeno relativamente novo e – alguns dirão – um pouco enganoso. Como escreveu Jean-Paul Sartre em 1961, durante a guerra de independência da Argélia frente à França: "Vocês, que são tão liberais, tão humanos, que levam o amor à cultura até a afetação, simulam esquecer que têm colônias onde se cometem massacres em seu nome". O ícone anticolonial Frantz Fanon concordou naquele mesmo ano, ao afirmar que "é em nome do Espírito, ou seja, do espírito da Europa, que a Europa justificou seus crimes e legitimou a escravidão na qual mantinha as quatro quintas partes da humanidade".
Se os evangelizadores europeus da "europeização" perguntassem a pessoas não ocidentais quem encarna melhor os "valores europeus" (eles mesmos ou Orbán), a resposta talvez não lhes agradasse. Por mais que assuste os liberais iluminados de Bruxelas, o nacionalismo excluente de Orbán é parte integrante da história europeia, e certamente também será parte de seu futuro.
1. "PM Orbán: Nosso Plano Não É Sair de Bruxelas, Mas Assumi-la" em About Hungary, 23/12/2023.
2. "A Sombra de Orbán Paira Sobre a Aquisição da Euronews" em Le Monde, 11/4/2024.
3. Henry Ridgwell: "Isolado na Europa, Primeiro-Ministro Húngaro Espera pelo Retorno de Trump" em VOA News, 21/2/2024.
4. Suzanne Lynch: "Ocupa Bruxelas! O Plano de Viktor Orbán para a Europa" em Politico, 8/4/2024.
5. Charles A. Coulombe: "A União Europeia Pode Ser Salva?" em The European Conservative, 23/8/2023.
6. Wim Weymans: "Uma História Crítica do Uso dos 'Valores Europeus'" em Regina Polak e Patrick Rohs (orgs.): Values – Politics – Religion: The European Values Study, Springer, Cham, 2023.
7. "Discurso do Primeiro-Ministro Viktor Orbán na Cerimônia de Premiação Hunyadi János" em About Hungary, 20/3/2024.
8. Ishaan Tharoor: "Orbán da Hungria Invoca Invasão Otomana para Justificar a Exclusão de Refugiados" em The Washington Post, 4/9/2015.
9. Eddy Max: "‘Para Dançar o Tango, É Preciso Dois’: Ex-Primeiro-Ministro Polonês Se Recusa a Excluir um Único Grupo de Extrema-Direita no Parlamento da UE" em Politico, 16/4/2024.
10. Max Griera: "Morawiecki, Orbán Planejam Reorganização no Parlamento da UE com Le Pen" em Euractiv, 23/4/2024.
11. "Não Queremos Orbán no ECR, Diz Conservador Tcheco" em Euractiv, 7/2/2024.
12. Lili Bayer: "A Visão de Viktor Orbán de uma Europa Maior e Mais Solta" em Politico, 6/6/2016.
13. "Discurso de Aceitação do Primeiro-Ministro Viktor Orbán Após Receber a Ordem de Republika Srpska" em About Hungary, 5/4/2024.
14. Cit. em Luke Cooper: "Nacionalismo Autocrático na Hungria: Viktor Orbán como um Ator Hegemônico" em "Democracias Illiberais" na Europa: Uma Resposta Autoritária à Crise do Liberalismo, Illiberalism Studies Program, The George Washington University, Washington, DC, 2023.
15. "O Que É a Polêmica ‘Lei da Escravidão’ Que Gerou as Maiores Manifestações na Hungria Desde o Fim do Comunismo" em BBC News, 19/12/2018.
16. Katalin Erdélyi: "O Império Mészáros Venceu Licitações Públicas no Valor de €826 Milhões no Ano Passado, 93% dos Quais Vieram de Fundos da União Europeia" em Atlatszo, 28/11/2022.
17. Alex Faludy: "Recenseamento Registra Queda de 30% na População Católica da Hungria" em National Reporter Catholic, 25/10/2023.
18. Suzanne Schneider: "Uma Aliança Impiedosa" em Aeon, 13/10/2022.
19. Orla Barry: "Este Pastor Oficiou o Casamento de Orbán: Agora Ele É Um de Seus Críticos Mais Feroces" em The World, 2/11/2022.
20. Justin Spike: "A Inflação Está Atingindo os Populares Mercados de Natal da Hungria: Cachorro-Quente de $23, Alguém?" em AP, 12/12/2023.
21. Thomas Laffitte: "Na Hungria, Como Péter Magyar Arapuca Orbán" em Le Grand Continent, 15/6/2024.
22. Svengali é um personagem do romance Trilby de George du Maurier (1894). O nome é atualmente usado para se referir a um indivíduo manipulador e com más intenções [n. do e.].
23. Bulent Kenes: "Viktor Orbán: Passado e Presente" em ECPS, 2/8/2020.
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A insurgência antiliberal de Orbán e os valores europeus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU