03 Setembro 2019
“A social-democracia não surgiu porque alguns líderes éticos decidiram, de repente, tornar o capitalismo “mais bonito”. Foi porque duas guerras mundiais, a revolução bolchevique, o crescimento dos partidos social-democratas e comunistas, e seus vínculos com sindicatos fortes, provocaram uma mudança no curso da burguesia, sob a sombra da ameaça de desordens sociais e expropriações. O capitalismo não se transformou graças à benevolência da direita, mas, sim, porque as classes altas, castigadas por sua experiência passada, decidiram seguir seu próprio e bem formado interesse: ceder algo para poder preservar mais”, escreve o economista Branko Milanović, ao analisar a obra The Future of Capitalism, do também economista Paul Collier, especialista mundial em desenvolvimento econômico.
O artigo é publicado por Ctxt, 28-08-2019. A tradução é do Cepat.
O último livro de Paul Collier, The Future of Capitalism, não é fácil resenhar. Apesar de ser breve (215 páginas), cobre um amplo espectro, desde a interpretação socioeconômica dos últimos 70 anos, no Ocidente, aos apelos por empresas “éticas”, famílias “éticas” e, inclusive, um mundo “ético”, passando por uma bateria de propostas de reforma para as economias avançadas.
A afirmação menos caridosa que seria o caso de fazer é que, em algumas passagens, o livro beira (e enfatizo o termo) o nacionalismo, “a eugenia social”, os “valores familiares”, como do tipo do movimento da Maioria Moral, e o conservadorismo no sentido literal do termo, já que apresenta um passado idealizado e exorta a retornar a ele. No entanto, também é possível afirmar que o diagnóstico de Collier a respeito dos problemas atuais é com frequência preciso e exposto com clareza meridiana, e algumas de suas recomendações, convincentes e sofisticadas, ainda que de senso comum.
Collier se apresenta como um “pragmático” que luta (1) contra ideólogos: utilitaristas, rawlsianos (que são acusados, um tanto estranhamente, de ter introduzido as políticas de identidade) e marxistas, e (2) contra populistas que carecem de ideologia, mas que jogam com as emoções das pessoas. As três primeiras ideologias se equivocam, de acordo com Collier, porque seguem seu próprio roteiro, que não é adequado para os problemas atuais. Os populistas, por outro lado, nem sequer se preocupam em melhorar as coisas, só por governar e passar um bom tempo. Em consequência, somente faz sentido uma aproximação pragmática.
O pragmatismo, não obstante, é uma ideologia como qualquer outra. É errôneo acreditar que se está livre de armadilhas ideológicas só por se afirmar “pragmático”. O pragmatismo reúne as ideologias dominantes desse dia e as reordena. Como qualquer outra ideologia, proporciona um marco interpretativo. Os pragmáticos são, como disse Keynes em um contexto semelhante, “homens práticos que acreditam ser livres de qualquer influência intelectual, [mas] em geral são escravos de algum economista falecido [ou ideólogo; acrescento]”.
O segundo pilar do livro de Collier é sua interpretação de Adam Smith. A leitura que se apresenta se tornou popular recentemente e tenta “suavizar” as arestas do Adam Smith de A Riqueza das Nações (interesse próprio, lucro e poder), com o Smith mais agradável da Teoria dos Sentimentos Morais. Este é um velho debate que remonta quase 200 anos.
Há, acredito, se não dois Smith, ao menos um para dois tipos diferentes de circunstâncias. O Smith da Teoria dos Sentimentos Morais está preocupado com o nosso comportamento com a família, amigos e a comunidade, ao passo que em A Riqueza das Nações se ocupa de nossa vida econômica e comportamento como “agentes econômicos” (detalho esta ideia em meu próximo livro, Capitalism, Alone). David Wotton sustenta, convincentemente, o mesmo em Power, Pleasure and Profit. O próprio Collier diz o mesmo no final de seu livro (p. 174), mas em suas primeiras páginas ainda argumenta que o Adam Smith da Teoria dos Sentimentos Morais também pode ser aplicado à economia.
Para um economista, só importa o Smith de A Riqueza das Nações. Os economistas não afirmam (ou asseveram não afirmar) ter conhecimentos particularmente valiosos sobre como as pessoas se comportam fora da esfera econômica. Por este motivo, os economistas empregam o modelo de homo economicus de Smith, que persegue somente um lucro monetário ou, em termos mais amplos, seu proveito próprio. Isto não exclui, é claro, a cooperação com outros, como Collier e alguns outros escritores parecem acreditar.
É óbvio que muitos de nossos objetivos monetários são melhor conquistados através da cooperação. Saio melhor cooperando com as pessoas de minha universidade, que montando minha própria universidade. Contudo, faça uma coisa ou outra, persigo meu próprio interesse egoísta. Não faço as coisas por motivos altruístas, como talvez ocorreria em minhas interações com minha família ou meus amigos.
É certo (e faço esse comentário em Capitalism, Alone) que sob as condições da globalização hipercomercializada, a esfera econômica de Smith está se ampliando velozmente e “devorando” as áreas referidas pelo Smith da Teoria dos Sentimentos Morais. Em outras palavras, a mercantilização “invade” as relações familiares e nosso tempo de ócio. Collier e eu concordamos. Mas, enquanto eu penso que esta é uma característica inerente da globalização hipercomercializada, Collier acredita que os ponteiros do relógio podem ser atrasados para retornar a um “mundo ético” que existiu no passado e, ao mesmo tempo, manter a globalização assim como está hoje. Isto não é mais que uma ilusão, o que me conduz à nostalgia de Collier.
Do ponto de vista de Collier, a social-democracia que trouxe a época dourada de 1945-75 agiu por motivos éticos. Em vários lugares, repete esta assombrosa afirmação: “[Roosevelt] foi eleito porque as pessoas reconheceram que o New Deal era ético” (p. 47). A origem da social-democracia descansa em um (bonito) movimento cooperativo, argumenta, ainda que, na realidade, as reformas que seguiram à primeira e segunda guerras mundiais foram o resultado de uma luta, muitas vezes violenta, de uma centena de anos, travada pelos partidos social-democratas para melhorar as condições dos trabalhadores.
A social-democracia não surgiu porque alguns líderes éticos decidiram, de repente, tornar o capitalismo “mais bonito”. Foi porque duas guerras mundiais, a revolução bolchevique, o crescimento dos partidos social-democratas e comunistas, e seus vínculos com sindicatos fortes, provocaram uma mudança no curso da burguesia, sob a sombra da ameaça de desordens sociais e expropriações. O capitalismo não se transformou graças à benevolência da direita, mas, sim, porque as classes altas, castigadas por sua experiência passada, decidiram seguir seu próprio e bem formado interesse: ceder algo para poder preservar mais. (Para uma leitura similar, ver Samuel Moyn, Avner Offer).
Esta diferença em como interpretamos a história é importante. Quando a aplicamos a nossos dias, o ponto de vista de Collier apela ao surgimento de dirigentes éticos. Minha interpretação é que nada mudará a menos que haja robustas forças sociais que combatam os excessos do setor financeiro, a evasão fiscal e a elevada desigualdade. O que importa não é a ética ou os líderes éticos, mas os interesses de classe e o poder relativo.
No relato de Collier, os “trinta gloriosos” do século XX foram uma Arcádia onde gigantes morais percorriam a Terra, as grandes empresas se preocupavam por suas famílias e as famílias eram “plenas” e “éticas”. Esta utopia, na verdade, nunca existiu, não ao menos no modo como descreve no livro. Como muitos outros, destaquei que os anos de 1945 a 1975 foram muito bons para o Ocidente, tanto em termos de crescimento e certamente em termos de redução das desigualdades em riqueza e salários. Contudo, não houve nenhuma Arcádia, e em muitos aspectos eram muito piores que o nosso presente.
A “família ética” de Collier, em que “o marido era a cabeça visível” (p. 103), em que cada membro (supostamente) se preocupava com os outros e várias gerações viviam sob um mesmo teto, era um patriarcado hierárquico que proibia legalmente a formação de outros tipos de famílias.
Nos Estados Unidos, a época dourada foi também a do mimetismo e o conservadorismo, uma ampla discriminação racial e a desigualdade de gênero. Com frequência, esquece-se que durante essa época dourada a França esteve à beira de uma guerra civil, em duas ocasiões: durante a Guerra da Argélia e em 1968. Espanha, Portugal e Grécia eram governados por regimes quase fascistas. Os anos 1970 trouxeram o terrorismo do Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas. Se aqueles anos eram tão bons e tão “éticos”, por que ocorreu a rebelião universal de 1968, de Paris a Detroit?
Esse mundo imaginado nunca existiu e é muito improvável que voltemos a ele. Não só já porque nunca existiu, mas também porque nosso mundo é completamente diferente. Collier ignora o fato de que o mundo de sua juventude, para o qual quer que retornemos, era um mundo de descomunais diferenças de renda entre o primeiro e o terceiro mundo. Por esse motivo, a classe trabalhadora inglesa podia (como ele escreve) se sentir muito orgulhosa e superior às pessoas do restante do mundo. Não podem se sentir tão orgulhosos e superiores agora porque outras nações se aproximam delas. Implicitamente, afirma-se que a recuperação do restante da classe operária inglesa exige o retorno à estratificação mundial de salários.
Este livro é construído, pois, sobre areias movediças, ao se basear em um mundo que não existiu e nunca existirá. A próxima década não será o 1945 que se imagina, não importa o quanto peçamos aos gritos. Mas, isto não significa que as análises de Collier de nossos problemas e suas recomendações sejam equivocadas. Muitas delas são, na verdade, muito boas.
Collier defende que para ser vistas como éticas e oferecer a seus quadros trabalhos que valem a pena, as empresas deveriam incluir os trabalhadores na gestão diária, dar a eles muito mais poder nos níveis intermediários e introduzir a redistribuição de lucros. Todas estas são recomendações valiosas. Assim como Collier, acredito que, além de proporcionar “melhores trabalhos, estas medidas ajudariam a aumentar os lucros das empresas. A questão, não obstante, é quantas companhias podem se permitir, atualmente, proporcionar estes trabalhos que valem a pena e são (relativamente) estáveis, em razão das velozes mudanças impulsionadas pela globalização. De qualquer modo, a ideia está correta.
Na sequência, Collier passa para a que, talvez, seja a recomendação mais intrigante do livro, uma que vai além do habitual “aumentemos os impostos e introduzamos mais impostos progressivos”. O autor observa a enorme brecha entre as cidades globais prósperas (como Nova York e Londres) e as zonas de interior, abandonadas.
O êxito das metrópoles se baseia nas economias de escala, na especialização e na complementaridade (o lucro da aglomeração). As pessoas podem se especializar porque a demanda de habilidades especializadas é alta (os melhores contadores especializados estão em Nova York, não em pequenas cidades dilapidadas). As empresas podem sacar proveito das economias de escala porque a demanda é elevada, e os trabalhadores especializadas se beneficiam da complementaridade das habilidades de outros trabalhadores com os quais estão em estreito contato geográfico e intelectual.
Quem são, pois, os principais ganhadores do êxito das metrópoles?, pergunta-se Collier. As pessoas que possuem solo e moradias (na medida em que os preços da moradia disparam) e os profissionais altamente qualificados que, inclusive após pagar aluguéis mais altos, continuam ganhando mais nestas cidades globais que em qualquer outro lugar do mundo. A sugestão de Collier, baseada em seu trabalho com Tony Venables, é aumentar consideravelmente os impostos sobre estes dois grupos de contribuintes, introduzindo, por exemplo, impostos suplementares que poderiam ser baseados em sua localização geográfica: imposto à moradia e imposto às rendas altas que vivem em Londres, por exemplo.
Como é possível ajudar o restante do país para que se equipare? Utilizando o dinheiro recolhido em Londres e Nova York para oferecer subvenções a grandes companhias de tipo cluster (como Amazon), caso estabeleçam seus negócios em cidades menos favorecidas como Sheffield ou Detroit. Trata-se de uma ideia que pode ser discutida, mas a lógica de seu argumento é bastante convincente, e o tipo de impostos sugerido por Collier tem a vantagem de ir além do indiscriminado aumento de impostos para todos. Aqui, estamos falando de impostos com objetivos e de subvenções com objetivos. Esta é a parte mais consistente do livro de Collier.
Sou menos entusiasta no que diz respeito às sugestões de Collier sobre a chamada “família ética”. Aqui, surge o Collier mais conservador, ainda que seu conservadorismo social esteja envolvido em uma roupagem de estudos científicos que mostrariam como os filhos que vivem em famílias “plenas”, com pais heterossexuais, vão melhor que aqueles que vivem com um só pai ou mãe solteira. O que Collier diz, praticamente, implica que as mães deveriam suportar relações em que não existe afeto, ou que inclusive exista maus-tratos, para que possa existir um pai e uma mãe na família.
Tais familiares, de acordo com o autor, deveriam receber apoio, e as creches deveriam ser gratuitas para todas as crianças (algo muito razoável). Collier também descreve convincentemente as muitas vantagens que as crianças dos ricos possuem, não só através da herança, como também do capital intangível de conhecimento e das conexões de seus progenitores. Investigou-se muito pouco a respeito deste tipo de capital social herdado e espero que isso mude porque sua importância na vida real não é pouca.
Collier exibe uma clara preferência pela família “padrão” e inclusive por algum tipo de “eugenia social”, por exemplo, quando critica uma política britânica que proporciona moradia de maneira gratuita e, desde 1999, subsídios extraordinários para as mães solteiras, o que estimulou “muitas mulheres... a ter filhos que não receberão uma boa educação” (p. 160).
O argumento de que os pais deveriam se sacrificar (sem importar o custo psicológico) por seus filhos é também perigoso. Conduz-nos à formação da família no século XIX, quando as mulheres, muitas vezes, viviam em casamentos horríveis por causa da pressão social para que não se considerasse que abandonavam ou não se preocupavam com seus filhos. Esta não é uma solução possível, nem desejável hoje. Uma família ética deveria considerar por igual os interesses de todos os seus membros, não sacrificar a felicidade de alguns (quase sempre as mães) em favor do restante.
Collier tem surpreendentemente pouco a dizer sobre o mundo ético. Seu mundo ético é um mundo em boa medida fechado à nova imigração, que Collier rejeita sobre a base da incompatibilidade cultural entre os migrantes e os nativos, um ponto de vista que remonta a Assar Lindbeck e George Borjas. É interessante que não cite nenhum deles, nem tampouco outros autores (o livro é dirigido a um público amplo, sendo assim, as menções a outros autores são muito raras).
É desconcertante que Collier, que passou mais de três décadas trabalhando sobre a África, não tenha quase nada a dizer sobre como se a África e a imigração africana fica neste “mundo ético”. Para o autor, só há duas maneiras de gerir a imigração: na primeira, os imigrantes ou refugiados deveriam permanecer em países próximos geograficamente aos seus: os venezuelanos, na Colômbia, os sírios, no Líbano e Turquia, os afegãos, no Paquistão, e assim sucessivamente. Por que o peso da imigração deveria recair sobre países que, com frequência, são muito pobres é algo que nunca se explica. Sem dúvida, um mundo ético exigiria muito mais dos ricos.
Em segundo lugar, Collier argumenta que o Ocidente deveria ajudar as boas empresas a investir nos países em desenvolvimento para aumentar os salários locais e reduzir a emigração. Contudo, não explica como fazer isso. Menciona a questão quase de passagem e lhe dedica apenas duas frases (em duas partes diferentes do livro). Tudo isso contrasta com uma explicação detalhada, citada mais acima, sobre como os governos deveriam incentivar e subvencionar grandes empresas a se transferir para cidades menos favorecidas. Seria possível esboçar um esquema similar para os investimentos na África? Não se diz nada.
Além disso, onde ficam os imigrantes africanos que cruzam atualmente o Mediterrâneo? Não há nenhum país geograficamente perto para o qual possam ir, nem podem esperar durante anos, em Mali, que as empresas ocidentais gerem trabalho. Novamente, nada se nos diz sobre isto. Pouco surpreendentemente, Collier apoia Emmanuel Macron – cuja política anti-imigração é bastante óbvia – e os social-democratas da Dinamarca, que estão a caminho de criar um tipo de social-democracia nacional, com a aprovação de novas leis que permitem a imigração a conta-gotas. Collier parece favorecer a fortaleza Europa, ainda que não diga isso explicitamente.
Mantendo esta postura anti-imigração, Collier defende que a imigração não é uma parte integral da globalização. Por que os bens, serviços e um dos fatores da produção (capital) podem circular livremente, ao passo que outro dos fatores da produção (a força de trabalho) não? Certamente, o fato de que o comércio seja impulsionado pelas vantagens comparativas e a imigração pelas absolutas (p.194) não é uma razão para se opor à imigração. Seria possível se opor ao movimento de capital com os mesmos argumentos.
Em conclusão, acredito que Collier acerta em suas recomendações sobre a “empresa ética” e a divergência entre campo e cidade. Suas sugestões para uma “família ética” são uma combinação de opiniões muito perspicazes e agudas e uma visão da família que, em certas oportunidades, procede de uma época diferente, e praticamente nada diz a respeito de qual aspecto teria um “mundo ético”. Este último é uma enorme omissão na era da globalização, mas talvez Collier estivesse exclusivamente interessado em como melhorar os Estados-nação.
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O futuro do capitalismo e a utopia que nunca foi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU