26 Junho 2024
"A tradição é precisamente a passagem do passado e do presente para o futuro: é possibilidade de futuro não na forma rígida da missa, mas do encontro entre o Senhor e a sua Igreja, que hoje pode ser celebrado em tantas línguas diferentes e que por isso é enriquecido pela fé expressa em culturas muito diferentes daquela latina", escreve Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em debate com Messainlatino, publicado no seu blog Come Se Non, 26-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois de dias de discussão, hoje Messainlatino (lit., missa em latim), num post mais dialógico, resume o que eu disse e propõe uma série de refutações. Pode ser útil retomar uma por uma as passagens destacadas, assim como propostas pela MIL e analisá-las com calma.
Messainlatino - Mas deixemos agora de lado a questão do latim porque, por mais importante que seja, é apenas um aspecto do problema essencial, que é a querela sobre a perdurante legitimidade canônica da Missa de sempre. Os contra-argumentos apresentados pelo Prof. Grillo em sua entrevista podem ser resumidos nestes termos:
- Uma única forma ritual é condição necessária para a comunhão com Roma; os ritos locais talvez possam ser justificados justamente por serem locais e particulares, mas não assim o vetus ordo que tem pretensões universalistas tanto quanto o novus.
- A presença e vitalidade dos grupos tradicionais são irrelevantes, pois nada mais são do que uma seita.
- Os frutos negativos da reforma litúrgica são de pouca significância ("raciocinam apenas com números”) e talvez transitórios (“a ‘carestia de seminaristas’ e a ‘fuga dos jovens’ não é apenas um fato negativo: é o sinal de um intenso trabalho necessário para toda a Igreja”); em qualquer caso, relacionar tais efeitos com o Concílio é um post hoc ergo propter hoc, porque as causas da crise são bem anteriores.
- “As ‘capas magnas’ ou as ‘línguas mortas’ reforçam apenas formas de fundamentalismo e intransigentismo.”
- A frase de Bento XVI "o que foi sagrado para as gerações passadas não pode deixar de ser sagrado também para as atuais” é um princípio errado, que vem “não da teologia, mas da emoção nostálgica do passado"
Andrea Grillo - O resumo, embora bastante sucinto, parece-me substancialmente fiel
Messainlatino - Essas afirmações nos impressionam não tanto pela sua crueldade, mas, não leve a mal o nosso ilustre Contraditor, pela sua pobreza argumentativa e pela inconsistência lógica.
Andrea Grillo - a pobreza argumentativa está ligada à brevidade da entrevista. Mas por trás de cada resposta há um argumento que não é facilmente contornável, que me parece deva ser melhor considerado, como tentarei mostrar para cada objeção individual.
Messainlatino - Comecemos por este último ponto: negar validade à afirmação de puro bom senso de Ratzinger, segundo a qual não pode ser proibido hoje o que era sagrado ontem, é uma falácia lógica porque lesa o princípio da não contradição. O que é desastroso para uma instituição, a Igreja, que não tem mais os meios para obrigar, mas que deve persuadir para poder ser acreditada. Como observava justamente Ratzinger na sua autobiografia, como poderia a Igreja convencer-me da bondade e da veracidade do que afirma hoje, depois de ter repudiado o que propugnava ontem? De fato, o que diz hoje poderia não ser mais válido amanhã. A liturgia (infelizmente para Grillo que no momento teria o ouvido do Legislador) não pode sucumbir ao positivismo jurídico, segundo o qual só conta o comando da lei atualmente em vigor, mesmo que seja contrário a regras de natureza, de perene e universal validade: e deixemos que esta observação antilegalista seja feita justamente por um membro profissional do 'clube de advogados e notários', como nos zomba Grillo (touché).
Andrea Grillo - A objeção proposta não capta o sentido da minha afirmação. Para Ratzinger aquilo é o fundamento sistemático da Summorum Pontificum - SP, não o fundamento jurídico. Ele faz do “sagrado” para uma geração o que permanece sagrado para todas as sucessivas. Mas é aqui que o argumento não funciona. O rito romano é aquele que vocês costumam chamar de o “rito de sempre”. Mas sua forma mudou ao longo dos séculos. Essa modificação não significa de forma alguma contradição, mas sim desenvolvimento. Se São Cipriano, como parece, foi o primeiro a inserir o Pai Nosso na celebração eucarística, ele introduziu na forma da missa um elemento que antes não existia. Talvez já na época algum notário da Messainlatino terá objetado que não podia alterar a “missa de sempre”... Quero dizer que a forma ritual ao longo do tempo sofreu transformações: uma descontinuidade que não impediu a continuidade, então como hoje. Portanto, o argumento da “sacralidade” não justifica a permanência de uma forma anterior em relação à forma sucessiva, desde que a transição ocorra com a solenidade e a competência exigidas. O positivismo jurídico não tem nada a ver com isso: trata-se da evolução das formas rituais. A forma nova substitui a forma anterior. Uma “convivência” só pode ser compreensível por uma geração, para garantir a todos a transição gradual de uma para a outra [como defendia Paulo VI e Von Balthasar]
Messainlatino - De fato, devido à conhecida correlação entre a liturgia (lex orandi) e fé (lex credendi), proibir, aliás, até desvalorizar a Missa celebrada pela Igreja do Ocidente e pelos seus Papas durante séculos, senão milênios, não é muito diferente de negar a validade de um dogma; é um pouco como revogar a definição da Imaculada Conceição ou a proibição, expressamente definida como infalível por São João Paulo II, da ordenação feminina. Ao contradizer o passado, tudo o que se pretende ensinar no presente também é prejudicado e, para ser mais claro, se corta o tronco sobre cujo ramo foi construído o ninho.
Andrea Grillo - A semelhança entre rito e dogma não se sustenta. O dogma é formalmente definido, e isso vale para a Imaculada Conceição, mas não vale para a Ordinatio Sacerdotalis, que não é proposição dogmática. O rito serve a tradição de uma maneira diferente: não de uma forma definitiva, sancionada de uma vez por todas, mas numa transição gradual entre formas, línguas, costumes diferentes, em relação às culturas e à história. A linguagem ritual é elementar, enquanto a linguagem do dogma é uma linguagem da reflexão conceitual. O dogma está a serviço da experiência ritual, feita de Palavra e de Sacramento A correlação entre “lex orandi” e “lex credendi” não é entre dogma e rito, mas entre ato de fé e ação ritual. O desenvolvimento dos ritos não é contradição, desmentida ou traição, mas evolução e crescimento
Messainlatino - Da mesma forma, é contraditório sustentar, por um lado, que seria melhor ”trabalhar 'numa única mesa', para que todos pudessem contribuir para enriquecer 'a única forma ritual vigente’", e logo em seguida acrescentar, sempre em crítica a Bento XVI, que “a aposta de uma melhoria mútua entre NO e VO foi uma estratégia e uma teologia totalmente inadequadas, alimentadas por uma abstração ideológica". Mas então, de onde deveria vir aquele trabalho de enriquecimento à forma ritual vigente? E por que o programa ratzingeriano de enriquecimento mútuo entre os dois ritos seria uma abstração ideológica? De fato, sabe-se bem que os sacerdotes que experimentaram o antigo rito infundem, também no novo, um rigor e uma atenção aos gestos rituais que infelizmente já não são mais comuns: e isso não é “abstração ideológica”, é concretude prática. Se há aqui um ideólogo que raciocina superficialmente e por um amor irracional pelas suas próprias ideias, sem se preocupar com os fatos e sem qualquer sugestão concreta que vá além de proibições e perseguições, certamente não é Bento XVI, último grande Doutor da Igreja.
Andrea Grillo - Talvez não me tenha explicado bem: quando falo, há 17 anos, que a única forma de remediar os problemas é uma "única mesa", quero dizer que só se pode discutir sobre o rito vigente, não aquele que foi reformado por ser inadequado. Quando se constrói, como parecia pensar Bento XVI, uma “concorrência entre formas/usos diversos do mesmo rito” não se produz um “equilíbrio superior”, mas uma “laceração mais grave”.
É justamente a história após o 7 de julho de 2007 que demonstra que a diferença ritual se tornou uma diferença eclesial, espiritual, grupo separado, seita. O que chamo de “única mesa” é o interesse legítimo de todos os componentes da Igreja em celebrar o único rito romano com as suas atenções diferenciadas pela língua, pela música, pelos paramentos, em substância pela “forma”. Com o Rito de Paulo VI pode ser feito. Não pode ser feito com o rito de Pio V. Quem quer o pluralismo tem à disposição a forma ritual. Uma forma única que contém em si muitas possibilidades diferentes, e não duas formas em conflito devido à sua história: uma forma que nasceu para corrigir a anterior não pode ser usada sem uma carga agressiva em relação à igreja que fez a reforma.
Messainlatino - A ideologia, no sentido marxiano do termo (pois a ideologia em Marx é precisamente a distorção da realidade, sub-repticiamente substituída por mistificações conceituais e ideias ou preferências pessoais), é justamente a constante subjacente aos lábeis argumentos do Prof. Grillo: isso transparece, evidentíssimo, naquelas passagens em que, como vimos, por um lado desvaloriza como irrelevantes os fatos objetivos e estatísticos (a crise nas igrejas e nos seminários conciliares, em comparação com a vitalidade do Tradicionalismo; no entanto, a árvore é julgada pelos seus frutos, Alguém já ensinava); por outro lado, exibe cega intolerância ao pluralismo litúrgico - e ao bem das almas que poderiam se beneficiar daquele pluralismo - ao ponto de se revelar muito mais sectário e intransigente do que aqueles que diz querer combater por serem, na sua opinião, 'seita não em comunhão com Roma'.
Andrea Grillo - Não só não sou sectário, mas repito apenas aquilo que o bom senso dos teólogos que têm o dom da palavra, o Cardeal Roche e o Papa Francisco vêm repetindo há anos. Dizer a verdade não é ser sectário ou intransigente. Só sei que a ideia de fazer valer contemporaneamente duas formas rituais, uma das quais nasceu para corrigir a outra, não me pareceu uma ideia nem fundamentada nem eficaz. Se vocês dizem que os meus argumentos são "lábeis", e que, portanto, sou ideológico, vocês deveriam demonstrar no que são fracos. Talvez para vocês seja suficiente eu não concordar com vocês para dizer que sou ideológico. Essa tendência de chamar de stalinistas todos aqueles que discordam não me parece uma grande demonstração. Eu quero defender a tradição. Por isso, não posso deixar de contestar os tradicionalistas, que são filhos do mundo tardio-moderno em não entender mais a tradição.
Messainlatino - Então, quem é 'seita'? A característica da seita é a exclusão, cortar as raízes, mudar de tudo e rejeitar o legado familiar. Ou seja, a atitude que o Prof. Grillo escolhe para si e gostaria de impor a todos. Assim como sectário é não se render à evidência factual e nisto o Prof. Grillo assume a boutade hegeliana: se os fatos não concordam com a sua teoria, tanto pior para os fatos! Portanto, se os frutos do Concílio não são aqueles prometidos, minimizemos, ignoremos e falemos de outra coisa. Na mente de pessoas como ele, a Missa de sempre, é tão abominada precisamente porque evidencia a contrário o fracasso daquela moderna e torna, por oposição, mais visíveis aqueles fatos desagradáveis (igrejas vazias e desleixo litúrgico) que, em vez disso, se gostaria de esconder.
Andrea Grillo - Os fatos são as novas formas rituais, que alimentam a Igreja há 60 anos. Essa passagem era necessária, mas não é suficiente. Vocês contestam a necessidade. Em vez disso, eu a defendo, mas admito a sua insuficiência. Em tudo isso eu não me escondo atrás de uma “missa de sempre” diferente do rito romano vigente. A “missa de sempre” não é diferente do Missal de Paulo VI e de João Paulo II. Essa é a missa de sempre que é preciso fazer entrar em estilos de celebração novos, nos quais não exista um celebrante e a congregação à sua frente, mas exista uma assembleia que celebra, com ministros e uma presidência. Aqui todos podemos tentar encontrar a “missa de sempre” desde que não queiramos “cortar” a história e refugiarmo-nos a “antes de 1963”
Messainlatino - É de fato evidente que as razões substanciais da luta da qual os tradicionalistas são alvo não residem no fato deles serem maus, ou violentos, ou perigosos, ou insubordinados a Roma, ou a qualquer outra coisa - isto é, não residem no que eles fazem – e nem no que eles pensam: eram por acaso rebeldes ou perversos os franciscanos da Imaculada?
As razões de tanto ódio residem no simples fato de existirem porque, ao existirem, são - somos - a desmentida concreta da eficácia da alardeada revolução litúrgica e doutrinária, ou seja, somos, per speculum mas não in aenigmate, o testemunho tangível do seu fracasso. E assim como Pinóquio atira o martelo no Grilo Falante que o confronta com as suas contradições, também os arautos do novo pensamento único litúrgico querem atirar o seu martelo contra quem tem a coragem de não os seguir. Com a significativa diferença de que os tradicionalistas, ao contrário do Grilo Falante, geralmente nem sequer tentam dar um chá de moral nos inovadores, mas se contentariam em viver a sua fé em paz, una cum Papa nostro.
Andrea Grillo - Imagem curiosa de quem gostaria de viver em paz “una cum papa nostro”, mas construindo para si um papa fantoche, uma espécie de papa de borracha, a ser adaptado aos seus gostos, talvez no modelo de um papa que tinha iludido os tradicionalistas de poder estar em comunhão com Roma celebrando com a forma ritual que Roma quis reformar por ser inadequada. Aqui não é importante ser rebeldes [mesmo que em palavras às vezes vocês o sejam de forma bastante pesada], mas estar dispostos a aceitar o Concílio Vaticano II e a Reforma que dele surgiu. Caso contrário, em palavras de vocês são “una cum”, mas nos fatos vocês são “sine”, para não dizer “versus”.
Messainlatino - E se os tradicionalistas fossem realmente ovelhas perdidas, gostariam de ser tratados como fez Jesus (Lucas 15,4-6); ou melhor ainda, receber encontros e visitas papais, com honras, lavagens e beija-pés e tudo o mais reservado aos 'distantes' e aos inimigos da Igreja.
Andrea Grillo - As ovelhas podem sempre vestir-se de lobos, mas continuam a ser ovelhas. No entanto, procurar os distantes como modelo de quem faz da "messainlatino" o seu objetivo parece-me um tanto forçado. Um certo sentido do limite poderia ser útil a todos.
Messainlatino - Por fim, encerramos o nosso comentário como o iniciamos, com uma nota irênica e de concordância, se não com o espírito, pelo menos com a letra de um trecho da entrevista do Prof. Grillo. Que afirma: “A tradição não é passado, mas futuro”. Assinamos em baixo, com apenas dois acréscimos (uma letra maiúscula e um advérbio): a Tradição não é apenas passado, mas futuro. O que, aliás, corrobora o lema horaciano deste site: multa renascentur quae iam cecidere (Muitas coisas que já caíram hão de renascer). Lema que temos o conforto de ver concretizado, ano após ano, apesar de grilos e pinóquios.
Andrea Grillo - A tradição é precisamente a passagem do passado e do presente para o futuro: é possibilidade de futuro não na forma rígida da missa, mas do encontro entre o Senhor e a sua Igreja, que hoje pode ser celebrado em tantas línguas diferentes e que por isso é enriquecido pela fé expressa em culturas muito diferentes daquela latina. Encerro com uma imagem: a tradição vive de tradução. Saber traduzir a experiência ritual cristã numa forma nova é preservá-la. Enrijecê-la numa forma ultrapassada é traí-la. Nunca se deve esquecer que justamente na língua de que vocês mais gostam, “tradere” significa certamente “entregar”, mas também “trair”.
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Conjecturas e refutações: debate de Andrea Grillo com Messainlatino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU