10 Outubro 2023
"Francisco rejeita o otimismo fácil. Laudato Si’ nos convida a ouvir o 'clamor da terra' (n. 49), e Laudate Deum detalha o dano irreversível que já causamos. (...) Cascatas de eventos de mudanças irreversíveis podem já estar se desenrolando, como o colapso das florestas tropicais, o derretimento das calotas de gelo e o descongelamento do permafrost. Ele admite o perigo real: que, uma vez que esses eventos comecem, será 'sempre demasiado tarde, porque nenhuma intervenção pode deter o processo já iniciado' (n. 17). Palavras fortes para um momento exigente".
A opinião é de Vincent J. Miller, teólogo católico e professor associado de Teologia Religiosa e Estudos da Religião na Universidade de Dayton, nos Estados Unidos, em artigo publicado por America, 05-10-2023.
Em Laudate Deum, o Papa Francisco revisita os temas de Laudato Si' depois de oito anos – um sinal claro de urgência para uma Igreja Católica que pensa em séculos. Laudato Si' combinou um apelo a uma resposta moral às nossas crises ecológicas com a alegria de louvar a Deus junto com o restante da comunidade da criação. Laudate Deum continua esses temas, mas com um tom muito mais sombrio. Se Laudato Si' desejava envolver todos os que vivem em nosso planeta sobre "nossa casa comum" (n. 3), em Laudate Deum, Francisco fala a "irmãs e irmãos do nosso maltratado planeta" (n. 2) sobre "danos e riscos" à medida que fenômenos climáticos extremos se tornam comuns e nos aproximamos do limite de 1,5ºC acordado no Acordo de Paris sobre o Clima.
É informativo lembrar o contexto do lançamento de Laudato Si' no verão de 2015. O Papa Francisco desafiou os líderes mundiais à ação em meio à esperançosa preparação para a reunião climática de Paris. Isso foi amplamente recebido com entusiasmo, como evidenciado no inédito editorial na principal revista científica Nature, intitulado "Esperança do Papa". Francisco se dirigiria às Nações Unidas e ao Congresso dos Estados Unidos ainda naquele ano. Líderes religiosos e da sociedade civil, bem como grupos comunitários, se manifestaram, e as Nações Unidas aprovaram os Acordos de Paris em dezembro daquele ano. Eles entraram em vigor em abril de 2016, quando os Estados Unidos e a China (responsáveis juntos por 40% das emissões atuais), juntamente com outras 192 partes, assinaram o acordo. Laudato Si' falou com firmeza, mas diplomaticamente, a um sistema de governança global que parecia capaz de enfrentar o desafio civilizacional das mudanças climáticas.
Oito anos após um progresso inadequado, com as emissões continuando a aumentar e os níveis de dióxido de carbono atmosférico subindo de 405 partes por milhão naquela época para 423 ppm neste verão, Laudate Deum é muito mais crítico, dedicando mais de um terço de seu comprimento às fraquezas da política internacional e da ONU em lidar com as mudanças climáticas. Embora a escrita papal seja normalmente conhecida pela diplomacia, Francisco é surpreendentemente direto: "Deixará de ser útil apoiar instituições que preservem os direitos dos mais fortes, sem cuidar dos direitos de todos" (n. 43).
O papa apela para a democratização da tomada de decisões internacionais, o que exigiria "espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão" (um apelo que ele pode fazer com mais legitimidade à medida que o Sínodo sobre a Sinodalidade está em andamento). Ele defende as ações de grupos ativistas pelo clima, frequentemente retratados de forma negativa como "radicalizados", como grupos que na realidade "preenchem um vazio da sociedade inteira, que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos" (n. 58).
Se Laudato Si' olhava com esperança para a reunião da COP21 da ONU sobre Mudanças Climáticas em Paris, Laudate Deum fala com apreensão sobre a reunião da COP 28 do próximo mês, que está sendo realizada nos Emirados Árabes Unidos, "grande exportador de energia fóssil" (n. 53). Francisco observa que, embora os Emirados Árabes Unidos tenham "investido muito nas energias renováveis (...) as companhias petrolíferas e do gás têm a ambição de realizar novos projetos para expandir ainda mais a sua produção" (53). A esperança no processo climático da ONU permanece, mas é apresentada como uma escolha marcante em relação a uma alternativa sombria: "adotar uma atitude renunciante a respeito da COP28 seria auto lesivo, porque significaria expor toda a humanidade, especialmente os mais pobres, aos piores impactos da mudança climática" (n. 53).
A COP28 pode tanto ser "um ponto de viragem, comprovando que era sério e útil tudo o que se realizou desde 1992" ou "será uma grande desilusão e colocará em risco quanto se pôde alcançar de bom até aqui" e ser interpretada "como mero jogo para entreter" (n. 54-55).
Francisco oferece mais do que princípios morais. Ele especifica que a COP28 deve fazer compromissos políticos drásticos e intensos em relação a "fórmulas vinculantes de transição energética que tenham três caraterísticas: eficientes, vinculantes e facilmente monitoráveis" (n. 59).
Laudato Si’ falava das mudanças climáticas, mas aqui Francisco relata enfaticamente as evidências científicas, referindo-se à negação de suas evidências avassaladoras "mesmo dentro da Igreja Católica" (14). A carta é profundamente realista sobre os interesses poderosos que facilitam tal negação: "marketing e (...) informação falsa, mecanismos úteis nas mãos de quem tem maiores recursos para influenciar a opinião pública (n. 29). Nossos líderes priorizam "máximo lucro ao menor custo" (n. 31) e, portanto, são incapazes de ver o mundo se deteriorando ao nosso redor.
Francisco rejeita o otimismo fácil. Laudato Si' nos convida a ouvir o "clamor da terra" (n. 49), e Laudate Deum detalha o dano irreversível que já causamos. O aumento das temperaturas dos oceanos (que atingiram níveis sem precedentes neste verão) já está matando nossos companheiros criaturas que deixaram "de ser nossas companheiras de viagem para se tornar nossas vítimas" (n. 15). Sua discussão sobre as mudanças climáticas agora inclui a recusa em deixar que "diagnósticos apocalíticos" nos distraiam da "real a possibilidade de alcançar um ponto de viragem" (n. 17). Cascatas de eventos de mudanças irreversíveis podem já estar se desenrolando, como o colapso das florestas tropicais, o derretimento das calotas de gelo e o descongelamento do permafrost. Ele admite o perigo real: que, uma vez que esses eventos comecem, será "demasiado tarde, porque nenhuma intervenção pode deter o processo já iniciado" (n. 17). Palavras fortes para um momento exigente.
As bases teológicas de seu argumento permanecem firmemente enraizadas em uma teologia bíblica que vê os seres humanos como parte da comunidade da criação. O obstáculo permanece no que Laudato Si' chamou de "paradigma tecnocrático", que vê a "realidade não humana" como um "mero recurso ao seu serviço" (LD, n. 22). A linguagem de Francisco aqui é sombria: "a admiração pelo progresso não nos permitiu ver o horror dos seus efeitos" (n. 24). O ser humano está "nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar" (n. 24). Francisco, que cunhou muitas frases memoráveis, oferece aqui uma especialmente sombria: o "pragmatismo homicida" da crença de que nossos problemas podem ser resolvidos apenas por "intervenções técnicas" (n. 57).
A exortação termina de forma austera — não com uma oração formulística ou uma observação formal de encerramento —, mas com o equivalente teológico de uma saída dramática:
"'Laudate Deum' é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo" (n. 73).
A idolatria mata.
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A Igreja Católica pensa em séculos. Mas quando se trata de mudanças climáticas, o Papa Francisco não o faz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU