18 Mai 2023
Um determinado uso dos algoritmos pode desestabilizar o ser humano, em contato com as máquinas o ser humano achata–se cada vez mais, enquanto o viver comum se torna triste e rarefeito.
Publicamos o discurso proferido pelo Papa Francisco em 30 de abril na Faculdade de Informática e Ciências Biônicas da Universidade Católica de Budapeste.
O discurso foi publicado por Chiesa di tutti Chiesa dei Poveri, 17-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este é o último encontro da minha visita à Hungria e, com o coração agradecido, gosto de pensar no curso do Danúbio, que liga este país a muitos outros, unindo além da geografia, também a história. A cultura, em certo sentido, é como um grande rio: liga e percorre várias regiões da vida e da história colocando-as em relação, permite navegar no mundo e abraçar países e terras distantes, sacia a mente, irriga a alma, faz a sociedade crescer. A própria palavra cultura vem do verbo cultivar: o conhecimento comporta uma semeadura cotidiana que, mergulhando nos sulcos da realidade, dá fruto.
Cem anos atrás, Romano Guardini, grande intelectual e homem de fé, justamente quando se encontrava estava imerso em uma paisagem tornada única pela beleza das águas, teve uma fecunda intuição cultural. Ele escreveu: “Nos últimos dias, compreendi mais do que nunca que existem duas formas de conhecimento [...], uma conduz à imersão no objeto e seu contexto, de forma que o homem que quer conhecer tenta viver nele; a outra, pelo contrário, reúne as coisas, as decompõe, as ordena em caixas, adquire seu domínio e posse, as domina” (Lettere dal Lago di Como. La tecnica e l’uomo, Bréscia 2022, p. 55). Ele distingue entre um conhecimento humilde e relacional, que é como “um reinado que se obtém por meio do servir; uma criação conforme a natureza, que não ultrapassa os limites estabelecidos" (cf. p. 57), e outra modalidade do saber, que "não observa, mas analisa [...] não se imerge mais no objeto, ela o apreende" (p. 56).
E eis que nessa segunda forma de conhecer “as energias e as substâncias são levadas a convergir para um único fim: a máquina” (p. 58), e assim “desenvolve-se uma técnica de sujeição do ser vivente” (pp. 59-60). Guardini não demoniza a tecnologia, que permite viver melhor, comunicar e ter muitas vantagens, mas alerta para o risco de ela se tornar reguladora, quando não dominadora, da vida. Nesse sentido, via um grande perigo: “O homem perde todos os laços interiores que lhe conferem um sentido orgânico da medida e das formas de expressão em harmonia com a natureza” e, “enquanto no seu interior ele se tornou sem contornos, sem medida, sem direção, estabelece arbitrariamente seus fins e obriga as forças da natureza, dominadas por ele, a realizá-los” (p. 60). E deixava uma pergunta inquietante para a posteridade: “O que será da vida se ela acabar sob esse jugo? [...] O que acontecerá [...] quando nos encontrarmos diante da prevalência dos imperativos da tecnologia? A vida já está enquadrada em um sistema de máquinas. [...] Em tal sistema, a vida pode permanecer viva?” (p. 61).
A vida pode permanecer viva? É uma pergunta que, principalmente neste lugar, onde se estudam a fundo a informática e as "ciências biônicas", é bom fazer. De fato, o que Guardini vislumbrou parece evidente em nossos dias: pensemos na crise ecológica, com a natureza simplesmente reagindo ao uso instrumental que dela fizemos. Pensemos na falta de limites, na lógica do “pode ser feito, logo é permitido”. Pensemos também no desejo de colocar no centro de tudo não a pessoa e suas relações, mas o indivíduo centrado em suas próprias necessidades, ávido por ganhar e voraz por ter controle da realidade.
E consequentemente pensemos na erosão dos laços comunitários, de forma que a solidão e o medo, de condições existenciais, parecem transmutar-se em condições sociais. Quantos indivíduos isolados, demasiado ”mídias sociais” e pouco sociais, recorrem, como num círculo vicioso, às consolações da tecnologia para preencher o vazio que sentem, correndo de forma ainda mais frenética enquanto, tomados por um capitalismo selvagem, sentem as suas próprias fragilidades como mais dolorosas, numa sociedade onde a velocidade exterior anda de mãos dadas com a fragilidade interior. Esse é o drama. Com isso não quero gerar pessimismo – seria contrário à fé que tenho a alegria de professar – mas refletir sobre essa “prepotência de ser e de ter”, que Homero já via como ameaçadora no alvorecer da cultura e que o paradigma tecnocrático exaspera, com um determinado uso dos algoritmos que pode representar mais um risco de desestabilização do humano.
Em um romance que já citei várias vezes, O senhor do mundo de Robert Benson, observa-se “que a complexidade mecânica não é sinônimo de verdadeira grandeza e que na aparência exterior mais suntuosa se esconde o perigo mais sutil” (Verona 2014, 24-25). Nesse livro, num certo sentido "profético", escrito mais de um século atrás, se descreve um futuro dominado pela tecnologia e no qual tudo, em nome do progresso, é uniformizado: por toda a parte se prega um novo "humanitarismo" que anula as diferenças, zerando a vida dos povos e abolindo as religiões. Abolindo as diferenças, todas. Ideologias opostas convergem em uma homologação que coloniza ideologicamente.
Esse é o drama, a colonização ideológica; o homem, em contato com as máquinas, achata-se cada vez mais, enquanto o viver comum se torna triste e rarefeito. Nesse mundo avançado, mas sombrio, descrito por Benson, onde todos parecem insensíveis e anestesiados, parece óbvio descartar os doentes e aplicar a eutanásia, bem como abolir as línguas e as culturas nacionais para alcançar a paz universal, o que na realidade se transforma em uma perseguição assentada na imposição do consenso, tanto que um protagonista afirma que “o mundo parece à mercê de uma vitalidade perversa, que tudo corrompe e confunde” (p. 145).
Alonguei-me nessa análise de tons sombrios porque é precisamente em tal contexto que melhor se destacam os papéis da cultura e da universidade. A universidade é de fato, como o próprio nome indica, o lugar onde o pensamento nasce, cresce e amadurece aberto e sinfônico; não monocórdio, não fechado: aberto e sinfônico. É o "templo" onde o conhecimento é chamado a libertar-se dos limites estreitos do ter e do possuir para se tornar cultura, ou seja, "cultivo" do homem e das suas relações fundadoras: com o transcendente, com a sociedade, com a história com a criação. O Concílio Vaticano II afirma a esse respeito: “a cultura deve orientar-se para a perfeição integral da pessoa humana, para o bem da comunidade e de toda a sociedade.
Por isso, é necessário cultivar o espírito de modo a desenvolver-lhe a capacidade de admirar, de intuir, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de cultivar o sentido religioso, moral e social” (Const. ap. Gaudium et spes, 59). Já na antiguidade se dizia que o começo do filosofar é a admiração, a capacidade de admiração. Deste ponto de vista, aprecio muito as suas palavras. As suas palavras, Senhor Reitor, quando dizia que “em todo verdadeiro cientista há algo do escriba, do sacerdote, do profeta e do místico”; e novamente que “com a ajuda da ciência não queremos apenas entender, queremos também fazer a coisa certa, que é construir uma civilização humana e solidária, uma cultura e um ambiente sustentáveis. É com o coração humilde que podemos subir não só a montanha do Senhor, mas também a montanha da ciência”.
É verdade: os grandes intelectuais, de fato, são humildes. O mistério da vida, aliás, é revelado a quem sabe entrar nas pequenas coisas. A esse respeito, é muito bonito o que Dorottya nos disse: "Descobrindo cada vez mais os pequenos detalhes, mergulhamos na complexidade da obra de Deus". Entendida dessa forma, a cultura representa realmente a salvaguarda do humano. Imerge na contemplação e molda pessoas que não estão à mercê das modas do momento, mas bem enraizadas na realidade das coisas. E que, humildes discípulas do conhecimento, sentem que devem ser abertas e comunicativas, nunca rígidas e combativas.
Quem ama a cultura, de fato, nunca sente que já terminou e se acomoda, mas carrega consigo uma saudável inquietação. Pesquisa, questiona, arrisca, explora; sabe sair das próprias certezas para se aventurar com humildade no mistério da vida, que se combina com a inquietação, não com o hábito; que se abre às outras culturas e sente a necessidade de partilhar os saberes. Esse é o espírito da universidade, e agradeço por vivê-lo assim; como nos disse o Professor Major, que nos falou da beleza de cooperar com outras realidades educativas, através de programas de pesquisa compartilhados e também acolhendo estudantes de outras regiões do mundo, como o Médio Oriente, em particular da martirizada Síria. É abrindo-nos aos outros que nos conhecemos melhor. A abertura, abrir-se aos outros é como um espelho: faz com que eu me conheça melhor.
A cultura nos acompanha para nos conhecermos. Nos lembra disso o pensamento clássico, que nunca deve se pôr. As famosas palavras do oráculo de Delfos vêm à memória: "Conhece-te a ti mesmo". É uma das duas frases-guia que gostaria de lhes deixar em conclusão. Mas o que significa conhece-te a ti mesmo? Significa saber reconhecer os próprios limites e, consequentemente, conter a presunção de autossuficiência. Isso é bom, porque é sobretudo reconhecendo-nos como criaturas que nos tornamos criativos, imergindo-nos no mundo em vez de dominá-lo. E enquanto o pensamento tecnocrático persegue um progresso que não admite limites, o homem real é feito também de fragilidades, e muitas vezes é precisamente aí que ele compreende que é dependente de Deus e conectado aos outros e à criação.
A frase do oráculo de Delfos, portanto, convida a um conhecimento que, partindo da humildade, partindo do limite, partindo da humildade do limite, descobre suas próprias maravilhosas potencialidades, que vão muito além daquela da tecnologia. Conhecer-se a si mesmos, em outras palavras, pede para manter juntos, em uma dialética virtuosa, a fragilidade e a grandeza do homem. Do espanto desse contraste surge a cultura: nunca satisfeita e sempre em busca, inquieta e comunitária, disciplinada na sua finitude e aberta ao absoluto. Desejo que vocês cultivem essa emocionante descoberta da verdade!
A segunda frase-guia refere-se justamente à verdade. É uma frase de Jesus Cristo: "A verdade vos libertará" (Jo 8,32). A Hungria viu uma sucessão de ideologias que se impunham como verdades, mas não davam liberdade. E ainda hoje o risco não desapareceu: penso na transição do comunismo ao consumismo. O que ambos os "ismos" têm em comum é uma falsa ideia de liberdade; aquela do comunismo era uma "liberdade" forçada, limitada de fora, decidida por outrem; aquela do consumismo é uma "liberdade" libertina, hedonista, achatada sobre si mesma, que torna escravos dos consumos e das coisas. E como é fácil passar dos limites impostos ao pensar, como no comunismo, ao pensar-se sem limites, como no consumismo! De uma liberdade contida a uma liberdade sem freios.
Em vez disso, Jesus oferece uma saída, dizendo que o que verdadeiro é o que liberta, o que liberta o homem de suas dependências e fechamentos.
A chave para aceder a essa verdade é um conhecimento nunca desligado do amor, relacional, humilde e aberto, concreto e comunitário, corajoso e construtivo. É isso que as universidades são chamadas a cultivar e a fé a alimentar. Desejo, portanto, a esta e todas as universidades, que sejam um centro de universalidade e liberdade, um fecundo canteiro de obras de humanismo, um laboratório de esperança.