11 Março 2013
"Não há moral possível sem a liberdade do seu agente. A moral somente pode estar referida a atitudes e decisões livres tomadas no santuário de sua consciência, único absoluto moral", afirma o editorial "Igreja e consciência", publicado pela revista Perpestiva Teológica, no. 124, setembro/dezembro 2012.
Segundo a revista, "a catolicidade da Igreja não significa anulação da singularidade das consciências e da especificidade das tradições culturais. A verdade pode encontrar diferentes expressões históricas".
A revista Perspectiva Teológica é uma publicação quadrimestral do Departamento de Teologia (Programa de Pós-Graduação) da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teolgia de Belo Horizonte, MG.
"O magistério é um ministério exercido a serviço do Povo que é de Deus e do Corpo cuja cabeça é Cristo" - explica a revista. "Portanto, - continua o editorial - o Magistério não é uma entidade supraeclesial que tem o monopólio do Espírito. Entretanto, a aura transcendente criada em torno da figura do Pontífice, servus servorum Dei, como supremo intérprete da Palavra extrapolou o carisma petrino além dos limites da Revelação. É preciso afirmar que as normas pastorais particulares aplicadas a problemas contextuais e históricos não são objeto do seu magistério infalível".
Eis o editorial.
O tema da consciência tornou-se questão central do nosso tempo. Horizontes alargados resignificam conceitos, linguagens, práticas e atitudes. O fenômeno do pluralismo cultural, ideológico e religioso, a secularização, as novas antropologias, novos modelos de família, a biomedicina e a biogenética, o acesso irrestrito à informação, a consolidação da democracia e dos direitos humanos, a ampliação das opções morais, o sujeito pós-moderno e sua relativização das normas objetivas, a emancipação da sociedade e do cidadão do controle das religiões, extrapolaram consideravelmente a noção da consciência como árbitro dos comportamentos vinculados à moral. A intimidade do indivíduo não está condicionada apenas pela religião. O acúmulo e aceleração das mudanças exigem esforço de escuta atenta das diferentes experiências, convicções e paradigmas. Os impasses éticos desafiam não apenas a consciência cristã, mas a consciência de toda a humanidade.
Em tema tão delicado e central, a Igreja, com sua complexidade, vive tensões internas. Constata-se a retomada de modelos autoritários recheados de pessimismo que, apoiados em certa ideia de consciência, quer a todo custo coadunar discurso condenatório com a boa notícia do Evangelho. São tentativas reais de controle das consciências através do “policiamento ostensivo” do pensamento e dos comportamentos cotidianos do fiel. Pretensos representantes de uma visão de Igreja tridentina, reforçada por certa interpretação do Concílio Vaticano I, manipulam textos bíblicos, instrumentalizam o Direito Canônico, dogmatizam o Catecismo e servem-se das declarações da hierarquia. A obsessão denunciante e intransigente os torna coadores de mosquitos que engolem camelos (Mt 23,24). Intolerantes, pervertem o sacramento da Penitência para atemorizar o fiel com uso indiscriminado da ideia de pecado. Por entender a consciência como órgão de ressonância das normas institucionais pregam a submissão rigorosa à autoridade. Uma moral de absolutos, do tudo ou nada, sem matizações, cujo único intérprete é a hierarquia, vale por si mesma. Consciências afônicas, cuja voz silenciada cultiva uma vida moral infantilizada e de fiéis amedrontados ante o risco do pecado e intimidados pela ameaça da censura.
São pessoas e entidades que, ao sentirem-se ameaçadas na identidade religiosa, beiram o fundamentalismo. “Atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los” (Mt 23,4). A intransigência nota-se em alguns movimentos eclesiais (novos e antigos). Para parcelas do clero, da vida religiosa e do laicato ser “catolicamente correto” equivale a submeter-se, sem questionar, à disciplina moral determinada pela hierarquia. Diante desse restauracionismo arcaico, incentivado muitas vezes por representantes de estruturas eclesiásticas hostis ao Concílio Vaticano II, não há como não parafrasear Bernhard Häring: “Sofro com a Igreja quando vejo partes dela escravizadas por tradições mortas, em contradição com nossa fé num Deus vivente que age com seu povo em todas as épocas”.
Tal conceito fossilizado de consciência contradiz frontalmente a doutrina do Concílio Vaticano II, “o grande catecismo dos nossos tempos” (Paulo VI), “a bússola com a qual orientar-se” (João Paulo II). Todo cristão está obrigado a seguir suas decisões, pois promanam da suprema instância da Igreja no ensinamento da fé e da moral. Rejeitar o Concílio é provocar o cisma e militar como Igreja paralela. João XXIII colocou toda a Igreja em sintonia dialogal e respeitosa com o sujeito contemporâneo. A Igreja não tem resposta para tudo, quer aprender da história. Com este espírito ela está a oferecer sua compreensão sobre a consciência.
O esquema preparatório De ordine morali christiano apresentado pela Cúria Romana, descrevia a ordem moral como absoluta, com elenco de preceitos, proibições e autorizações. Ele foi rejeitado pelos padres conciliares. Era uma síntese da ideia de consciência antes do Concílio. Não estaríamos assistindo à recomposição das forças defensoras do citado esquema? O quadro descrito anteriormente não seria a revanche dos “pretensos derrotados” no debate conciliar? Monsenhor Lefebvre e cismáticos não declarados não seriam apenas a ponta do iceberg? O Concílio não compôs um documento exclusivo sobre a consciência. Tratou dela em contexto mais amplo da relação da Igreja com o mundo contemporâneo, expressada na Constituição Pastoral Gaudium et spes. A partir da compreensão de consciência como o nucleus secretissimus atque sacrarium hominis, in quo solus est cum Deo (Santo Agostinho) afirma-se a doutrina da dignidade da consciência moral: “No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo” (Gaudium et spes, 16).
Essa conceituação representa uma autêntica volta às fontes do cristianismo. Suas raízes bíblico-teológicas identificam a consciência como o coração, a interioridade da pessoa. Chamado à Aliança com Deus, o ser humano está em escuta contínua de sua Palavra e a conserva no coração. Na interioridade Deus escreve a lei (Jr 17,1; 31,31-34; Ez 14,1-5; 36,26). Toda conduta brota desse centro cujo único habitante é Deus (Jr 11, 20). Encontra-se semelhante significado no Novo Testamento. O Evangelho de Jesus, manso e humilde de coração (Mt 11, 28-30), germina no mais íntimo da pessoa (Mt 13, 19). A mesma interioridade é fonte das palavras, ações, atitudes e comportamentos desumanos (Mc 7, 18-23). O apóstolo Paulo interpreta a tradição semítica do coração e assume sua globalidade na noção grega de consciência (syneidesis) como expressão íntima da nova criatura, do existir em Cristo (Hb 9, 12). Nessa intimidade, o cristão descobre o sentido último da vida. A consciência se entende como propriedade fundamental do ser sujeito cuja dignidade exige que aja de acordo com uma opção consciente, livre e por convicção pessoal, não por mera coação externa (Gaudium et spes, 17).
Já ensinava Santo Tomás que quem cumpre a lei simplesmente porque é um preceito não age moralmente, já que não é livre. Nenhuma ação pode considerar-se boa ou má, se não faz referência à consciência, como eco da voz de Deus. A consciência é lugar teológico sagrado e inviolável. Toda pessoa, pelo fato de ser criada à imagem e semelhança de Deus, tem em si a capacidade de desenvolver as potencialidades humanas em busca do bem. A experiência de fé favorece o dinamismo da consciência e seu amadurecimento. Por isso o Concílio pede que a doutrina moral da Igreja seja renovada através do contato vivo com o mistério de Cristo e com a história da salvação (cf. Optatam totius, 16). Tal interioridade, como sacrário do homem, não é de isolamento, mas de comunhão. É um encontrar-se tu a tu com Deus, um escutar a Sua palavra que aguarda resposta (cf. Gaudium et spes, 12). A consciência não é ensimesmamento, mas reciprocidade e convivência. “Na fidelidade à consciência, os cristãos se unem aos outros homens para buscar a verdade e para encontrar saídas a tantos problemas morais que surgem tanto na vida individual quanto na social” (ibidem, 16). Na medida em que a verdade e os valores objetivos estiverem envolvidos, a consciência humana nunca será infalível. A consciência pode se tornar insensível e cega, mas jamais perde a dignidade (Gaudium et spes, 16).
É uma doutrina da consciência que brota da própria Revelação explicitada na Constituição Dogmática Dei Verbum. A concepção “relacional” da Revelação desdobra os efeitos no âmbito da formação da consciência. A Revelação não se reduz a conteúdo de verdades a acreditar ou de preceitos morais a cumprir, mas é uma experiência de encontro com Deus que “no seu grande amor fala aos homens como a amigos, e convive com eles, para convidá-los e recebê-los em comunhão com Ele” (Dei Verbum, 2). Em Jesus Cristo, Deus se autocomunica de maneira definitiva. A raiz última da oferta é a consciência (ibidem, 5). Em face da Palavra Revelada a consciência integra a dupla atitude religiosa e atitude moral. Ser cristão vai muito além da dimensão do dever. A consciência adulta se mostra quando a liberdade e responsabilidade da consciência são assumidas diante de Deus e interpretadas na existência histórica. Catálogos de normas e códigos disciplinares são importantes quando estão em função desta experiência fundamental. Original na consciência é a graça de Cristo, nunca o pecado, pois fé e consciência são inseparáveis (1Tm 1,5.19).
A Constituição Dogmática Lumen gentium é outro documento conciliar importante no tema da consciência. A prática oficializada no Decretum decreta (1142) de Gratianus entre Igreja docente e Igreja discente foi abolido pelo Concílio Vaticano II também no que se refere a problemas de consciência. Há uma volta às fontes para afirmar a Igreja como comunidade de iguais. Cristo não quer servos, mas amigos (Jo 15, 15). Todo fiel é templo do Espírito, sem distinção de classes ou categorias, pois “em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres; todos fomos impregnados do mesmo Espírito” (1Cor 12,13). O Espírito faz da Igreja “povo de Deus” e “Corpo de Cristo” um reflexo da comunhão trinitária e um sinal eficaz do Reino de Deus. Se, por um lado, os apóstolos recebem a missão do único Mestre (Mt 23, 10), de transmitir a Palavra e manter o Povo de Deus na fé (Lumen gentium, 24), por outro, o mesmo Mestre soprou seu Espírito sobre toda a comunidade eclesial (Jo 16,13; 19, 22). Esta comunhão dá conteúdo real às palavras “irmãos e irmãs” em diálogo na busca da unidade. Jesus não quer chefes sentados à sua direita e esquerda. A sua Igreja se constrói pela koinonia de iguais (Mc 10, 35-45). A função da hierarquia é entendida a partir desta eclesiologia. O magistério é um ministério exercido a serviço do Povo que é de Deus e do Corpo cuja cabeça é Cristo. Portanto, o Magistério não é uma entidade supraeclesial que tem o monopólio do Espírito. Entretanto, a aura transcendente criada em torno da figura do Pontífice, servus servorum Dei, como supremo intérprete da Palavra extrapolou o carisma petrino além dos limites da Revelação. É preciso afirmar que as normas pastorais particulares aplicadas a problemas contextuais e históricos não são objeto do seu magistério infalível.
Consciência, como saber compartilhado¸ como a própria etimologia insinua, incide diretamente na vida do “Povo de Deus”. Se o laicato, juntamente com os pastores, participa da mesma missão de Cristo, a verdade deve ser buscada através da reciprocidade das consciências. “Os leigos podem esperar dos sacerdotes luz e força espiritual. Mas não pensem que seus pastores são sempre tão competentes que tenham solução concreta para cada questão, mesmo a mais grave, ou que esta seja sua missão” (Gaudium et spes, 43). O Concílio também incentiva aos fiéis à liberdade de investigação, de pensamento e de informar-se, humilde e corajosamente, no campo de sua competência (ibidem, 62). Além da comunidade de fé, a ciência, a cultura, as outras tradições éticas e religiosas contribuem na formação da consciência. Neste sentido a Igreja é o espaço privilegiado onde seus membros dialogam, dissentem e deliberam sobre as questões morais advindas das diversas realidades que integram a vida dos fiéis. Vale lembrar que “todos os que se dedicam ao estudo das ciências sagradas gozam da justa liberdade de pesquisar e de manifestar com prudência o próprio pensamento sobre aquilo em que são peritos, conservando o devido obséquio para com o magistério da Igreja” (Código de Direito Canônico, 218). Não existem documentos eclesiais proibindo os fiéis de pensar, decidir e avaliar. O cristianismo não é fideísta. A fé informa a razão, nunca a substitui. Contudo, a excessiva exposição da hierarquia acaba por eclipsar o sensus fidelium enfraquecendo assim a Igreja como comunidade de iguais no Senhor. Nem sempre se podem culpar unicamente os fiéis (christifideles) - ou a mídia - pela não recepção das instruções morais da Igreja. Muitos fiéis já não se sentem representados no discurso moral da Instituição. Nesse monólogo, reina a desconfiança recíproca. De fato, nem sempre a indiferença e a discórdia são fruto da desobediência. O fiel, ao ver invadida a intimidade e o santuário da consciência, retira-se em atitude de defesa e de protesto.
O Concílio conferiu uma compreensão sapiencial da consciência. É ela a fonte da identidade do cristão como alguém chamado ao discipulado de Cristo na Igreja reunido pelo Espírito em uma comunidade de discernimento: “que possais discernir o que é melhor ou o que é bom, o que é mais importante ou o que mais convém e agrada a Deus” (cf. Rm 2, 18; 12, 2; Fl 1, 10; Ef 5, 10). Através do batismo, o Espírito Santo é derramado sobre todos os que acreditam em Cristo (cf. 1 Jo 2, 20.27). O discernimento aponta para o caráter pneumático da consciência, e torna o fiel adulto na fé. Todo cristão, tornado conforme à imagem do Filho, recebe «as primícias do Espírito» (Rm 8,23). Sua responsabilidade se aplica a toda a vida eclesial. A consciência é norma do apostolado dos leigos (Apostolicam actuositatem, 5). O amadurecer da própria consciência permite assumir as responsabilidades empenhadas pelo Espírito de Cristo (ibidem, 12). Portanto, deve-se buscar a maturidade da consciência para colaborar na construção da sociedade (ibidem, 13). Em tempos pós-conciliares, os preceitos e juízos sobre o comportamento moral do fiel não podem continuar sob o monopólio dos clérigos ou autoridades eclesiais. A superação da tendência de reduzir a consciência ao campo da mera obrigação moral passa pela redescoberta do valor do discernimento (Hb 5,14). Norma alguma substitui o discernimento. Toda norma necessita interpretação. Ela própria, na sua origem, foi fruto de uma interpretação da vontade de Deus para contextos concretos.
Não obstante, algumas instâncias da hierarquia insistem em governar a Igreja como se o Concílio não tivesse acontecido. A confusão entre unidade e uniformidade faz com que qualquer iniciativa, movimento ou palavra discordante sofra suspeita e seja alvo de denuncismo típico de tempos obscuros. Uma coisa é dissentir "em" Igreja, sentindo-se Igreja e na Igreja. Outra é dissentir "da" Igreja estando fora dela. Por que temer o dissenso em questões morais não ensinadas de modo definitivo? Por que sempre tomar posição a favor da lei e da autoridade eclesial? Se a consciência é o sacrário secretíssimo onde ressoa a voz de Deus, ela está acima do magistério como expressão vinculante da autoridade eclesial. Ora, “a consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo”! (Catecismo da Igreja Católica, 1778 - citação de Neumann). A autoridade eclesial consiste em apoiar as consciências na busca da verdade, não impor-lha (cf. 2Cor 13,10). Sua intransigência escandaliza os pequeninos (1Cor 10, 23-33). A interpretação rigorista da novidade cristã afasta as pessoas de Deus (Santo Afonso Ligório). O apego obsessivo às normas e princípios manifesta falta de confiança na capacidade humana de discernimento.
Essa perspectiva convida a Igreja a confiar mais no sensus fidelium. Se o sensus fidelium ajuda para a intelecção da fé, muito mais competência têm os fiéis, quando se trata de questões morais que dizem respeito diretamente às suas vidas. Se "os fiéis leigos devem ter consciência não só de pertencer à Igreja, mas de ser Igreja" (Catecismo, 899), o laicato tem o direito e inclusive o dever, em razão de seu próprio conhecimento, competência e reconhecimento, de manifestar aos pastores sua opinião sobre aquilo que pertence ao bem da Igreja e de manifestá-la aos demais fiéis (Código de Direito Canônico, 212,3). Uma forma de evitar a mescla perigosa de fideísmo, autoritarismo e rigorismo é levar em conta as posturas de teólogos, de cristãos com experiência em suas respectivas áreas de atuação social. Muitos problemas morais precisam de especialistas. Questões de bioética, economia, política, afetividade, gênero ultrapassam o âmbito da Igreja na variedade das culturas e diversidade de contextos dos envolvidos. A multiplicidade de experiência acumulada e vivida nas comunidades cristãs forma um acervo ético importante. Relegá-la é ceder ao autoritarismo que não respeita a consciência individual e coletiva.
O Concílio, sabiamente, reserva à liberdade de consciência a última palavra a respeito das prescrições morais concretas da Igreja. Cada fiel, deixando interpelar-se pela sua consciência, pela Palavra de Deus e pela Tradição está chamado a assumir-se fazendo a escolha ética de forma consciente e responsável. O Magistério é uma instância que pode ajudar na decisão que leva em conta a sua realidade. “Deus quis ‘deixar o homem entregue à sua própria decisão’” (Eclo 15, 14). Sem liberdade não se podem exigir responsabilidades morais, pois “só na liberdade que o homem se pode converter ao bem” (Gaudium et spes, 17). O homem tem o direito de agir com consciência e liberdade, a fim de tomar pessoalmente as decisões morais. Ninguém pode ser forçado a agir contra a própria consciência nem sequer em assuntos de religião (Código de Direito Canônico, 748, 2). O Concílio não deixa margem a dúvidas ou interpretações distorcidas: “Os seres humanos devem ser imunes à coerção por parte dos indivíduos, de grupos sociais e de qualquer poder humano, de modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência nem seja impedido, dentro dos devidos limites, de agir em conformidade com ela: privada ou publicamente, em forma individual ou associada” (Dignitatis humanae, 2). Ao reconhecer a diversidade religiosa como um “sinal dos tempos”, a Igreja coloca-se em sintonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos: Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião (art. XVIII).
A catolicidade da Igreja não significa anulação da singularidade das consciências e da especificidade das tradições culturais. A verdade pode encontrar diferentes expressões históricas. “De fato, tudo o que neles há de bom e verdadeiro, considera-o a Igreja como preparação ao Evangelho e como dom daquele que ilumina todo homem para que afinal tenha a vida” (Lumen gentium, 16). O cristianismo não é uma supermoral aplicável de maneira homogênea a todas as situações e contextos históricos. O Evangelho não oferece soluções acabadas e a Igreja não tem obrigação de dar respostas para todos os problemas. Novos problemas nem sempre combinam com soluções automáticas apoiadas em uma compreensão patriarcal, ocidental e clerical da consciência. Não se aceitam mais posturas cesaropapistas ou da cristandade gregoriana. A obsessão de responder a tudo e a todos deve ser superada por uma busca coletiva, em diálogo com todas as pessoas de boa vontade (cf. Gaudium et spes, 33 e 43). Uma coisa é manifestar reservas a respeito de algumas práticas, outra é pretender impô-las aos demais em uma sociedade que já não compartilha da mesma visão. Quando os princípios são questionados pelas novas situações, já não basta aplicá-los sem mais. A credibilidade da Igreja depende, em grande parte, do reconhecimento da pluralidade, das novas sensibilidades e da diversidade típica do mundo contemporâneo. Não só a religião, mas outros inúmeros fatores influenciam na formação da consciência. As dimensões intelectuais, afetivas e espirituais precisam ser levadas em conta.
Não há moral possível sem a liberdade do seu agente. A moral somente pode estar referida a atitudes e decisões livres tomadas no santuário de sua consciência, único absoluto moral. “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). A liberdade cristã é, em definitivo, “o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que ele nos deu” (Rm 5,5). Antes de tudo, a liberdade é um dom que capacita a pessoa a responder à autocomunicação de Deus. Portanto, é a única garantia de termos cristãos responsáveis e adultos na fé. A consciência aparece como espaço sagrado da liberdade, seu evento central e o núcleo da interioridade cristã. A liberdade de consciência é a pessoa inteira. O homem é sua consciência. Invadir, controlar ou sufocar a consciência é negar aquilo que todo homem possui de mais sagrado: “Pecando contra vossos irmãos e ferindo suas consciências... é contra Cristo que pecais” (1Cor 8,12). O mesmo vale não só dos cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente (cf. Lumen gentium, 16). Portanto, “as tentativas para violentar as consciências... desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador” (Gaudium et spes, 27).
O Concílio é ponto de não retorno no tema da consciência e colocou a Igreja em processo de aprendizagem. À distância de 50 anos, é mais do que nunca necessário retornar àquele momento de graça. Para desempenhar bem o papel de contribuir na formação de consciências adultas, a mensagem da Igreja deve brotar de um olhar sobre o Evangelho anunciado por Jesus e outro sobre a condição humana, histórica e cultural do fiel (cf. Gaudium et spes, 46). A sintonia com as novas sensibilidades sem renunciar ao Evangelho atualiza o conselho da tradição agostiniana: “no essencial, a unidade; na dúvida, a liberdade; em tudo, a caridade”.
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Igreja e Consciência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU