“Quando falamos sobre mudança climática e aquecimento global, achamos que se trata somente de calor, mas não é. Trata-se de um desequilíbrio”, diz a pesquisadora
O aumento da frequência das ondas de calor e dos eventos meteorológicos extremos indica um desequilíbrio do clima. “Quando existe um desequilíbrio, há uma manifestação de um extremo, tanto de um lado quanto de outro. Alguns dizem que este foi o ano mais quente dos últimos 50 anos, outros afirmam que em determinado lugar fez o dia mais frio dos últimos 30 anos. Ou seja, isso mostra que estão ocorrendo extremos, isto é, o desequilíbrio do clima”, explica Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho, pesquisadora do Laboratório de Poluição Atmosférica e Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Na entrevista, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Micheline esclarece que é difícil associar todos os eventos extremos às mudanças climáticas, antes, pontua, eles estão relacionados às interferências antrópicas no microclima. “Tenho dificuldades de dizer que tudo que está acontecendo está relacionado à mudança do clima; muitas vezes está relacionado ao próprio microclima da cidade porque não foi somente o clima que mudou, nós mudamos [o ambiente]: asfaltamos muito, derrubamos muitas árvores, fizemos muitas construções, ou seja, alteramos o microclima de uma cidade”.
Segundo ela, apesar de os eventos extremos serem um indicativo das previsões climáticas que estão sendo feitas nas últimas décadas, não é possível saber como será o futuro. “Não tem como cravar e dizer: ‘vai acontecer’, porque o estudo da natureza é probabilístico. Diante disso, precisamos nos adaptar a essas mudanças e procurar mecanismos para evitar a deterioração. Esse deve ser o foco. Não adianta dizer que vamos evitar as mudanças; elas já aconteceram. Não sei afirmar se o clima está em ebulição, mas há um pouco de exagero. O que acontece, hoje, está dentro dos parâmetros do que já falávamos anteriormente”, observa.
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho (Foto: Reprodução | Youtube)
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho é graduada em Meteorologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Matemática pela Universidade Paulista (Unip), em Ciências Médicas pela University of Technology Sydney, na Austrália. É mestre em Meteorologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, doutora em Ciências pela USP. Desde 2002, pesquisa os impactos do clima e da poluição atmosférica na saúde humana. Em 2005, como pesquisadora do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), desenvolveu o primeiro modelo híbrido (estocástico e matemático) que estima desfechos de saúde a partir de variáveis ambientais para cidades brasileiras. É representante do Brasil no Multi-Country Multi-City Collaborative Research Network e pesquisadora do Laboratório de Poluição Atmosférica e Experimental da Faculdade de Medicina da USP.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 04-10-2023.
IHU – O que são as ondas de calor, quais são as causas desse fenômeno e desde que período ele tem sido observado pelos pesquisadores?
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho – Quando se lê sobre ondas de calor, encontram-se várias definições técnicas a partir de critérios, como um número determinado de dias de calor ou ondas acima de tal temperatura. Mas o fato é que está aumentando a frequência das ondas de calor, ou seja, dos eventos extremos em termos de tempo – porque existe uma diferença entre tempo e clima. Tempo é o que está acontecendo perto de nós, diz respeito a algo mais imediato; clima é quando se estuda há mais de trinta anos um determinado local e se conhece sua história.
Tenho dificuldades de dizer que tudo que está acontecendo está relacionado à mudança do clima; muitas vezes está relacionado ao próprio microclima da cidade porque não foi somente o clima que mudou, nós mudamos [o ambiente]: asfaltamos muito, derrubamos muitas árvores, fizemos muitas construções, ou seja, alteramos o microclima de uma cidade e isso faz com que ela se torne mais quente. Também existe o aspecto do clima, mas essas duas coisas estão juntas. Existe também poluição em vários lugares, seja por causa do uso do automóvel, seja por causa da indústria, o que contribui para o aumento da temperatura. Provavelmente o aumento da temperatura não é decorrente de uma coisa só; há um conjunto de fatores que, associados, faz com que as ondas de calor e de frio fiquem mais frequentes.
Quando falamos sobre mudança climática e aquecimento global, achamos que se trata somente de calor, mas não é. Trata-se de um desequilíbrio. Quando existe um desequilíbrio, há manifestação de um extremo, tanto de um lado quanto de outro. Alguns dizem que este foi o ano mais quente dos últimos 50 anos, outros afirmam que em determinado lugar fez o dia mais frio dos últimos 30 anos. Em outras palavras, vemos que estão ocorrendo extremos, isto é, o desequilíbrio do clima.
IHU – A ação antrópica é um fator preponderante no desequilíbrio climático?
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho – Sim, estamos mudando os ambientes onde vivemos e, com isso, provocamos uma mudança no clima das regiões. São Paulo, 20 anos atrás, tinha garoa, hoje, não tem mais. Mas isso não é consequência da mudança do clima em si, mas da mudança da própria cidade, com muitas construções e pavimentação. É complicado dizer que tudo está associado a uma mudança que vem ocorrendo por causa de algo meio genérico. Nas mudanças que temos observado, há uma influência do próprio microclima das regiões e, associado a isso, existe a mudança climática, que é algo mais global, mas o que nos impacta é o conjunto de todas essas coisas.
IHU – O secretário-geral da ONU, António Guterres, e alguns pesquisadores dizem que a expressão “ebulição climática” expressa melhor o que estamos vivendo do ponto de vista climático, em vez dos termos mudança climática, aquecimento global ou emergência climática, porque já passamos desses períodos. Concorda com o uso da expressão ou ela é exagerada?
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho – Sou mais reticente com isso porque usamos vários modelos matemáticos para estimar probabilisticamente uma mudança no clima e não consigo falar disso sem mencionar o nosso comportamento no microclima. A situação está do mesmo jeito que antes. O que acontece é que nada foi feito para mudá-la. Há mais de 20 anos avisamos que a temperatura do globo está aumentando e nada foi feito efetivamente. Vemos muitos acordos, mas não foi feito nada e os países mais ricos continuam poluindo do mesmo modo.
Quando comecei a estudar a questão climática, minha abordagem era de conscientização das pessoas, mas percebi que as pessoas não vão se conscientizar porque querem consumir. Ninguém renunciará ao seu iPhone, seu carro. É preciso ter mecanismos econômicos para inibir o consumo. O que acontece é que usamos a natureza como se ela fosse gratuita. Derruba-se uma árvore para construir uma mesa, a mesa é produzida e vendida, mas não se coloca o custo da árvore que foi derrubada no produto. Da mesma forma, quando se compra um iPhone, não se acrescenta o custo do que foi minerado para fazer o metal. Na verdade, as coisas estão baratas e nós consumimos e consumimos como se a natureza não tivesse valor; é como se usássemos ela gratuita e indefinidamente.
Nos países que estão evoluindo economicamente, observamos um desperdício, como acontece nos EUA e agora na China. Móveis novos são jogados fora, o pessoal troca de carro com frequência. Nós temos esse costume, foi nos dado essa forma de comportamento, e será difícil mudar por consciência. Alguém que mora na Zona Leste de São Paulo, longe de vários locais, trabalha uma vida inteira para comprar um carro e não precisar mais andar de ônibus, não vai abrir mão de ter o carro por causa do clima. O tratamento dessa questão deve ser mais efetivo, para além das discussões. Já estamos discutindo há 20 anos o que está acontecendo.
Além disso, não sabemos o que acontecerá; estimamos o que vai acontecer, mas, no fundo, não sabemos. Não tem como cravar e dizer: “vai acontecer”, porque o estudo da natureza é probabilístico. Diante disso, precisamos nos adaptar às mudanças e procurar mecanismos para evitar a deterioração. Esse deve ser o foco. Não adianta dizer que vamos evitar as mudanças; elas já aconteceram. Não sei afirmar se o clima está em ebulição, mas há um pouco de exagero. O que acontece, hoje, está dentro dos parâmetros do que já falávamos anteriormente.
IHU – Em 2018, a senhora disse que “todos os modelos mostram que no Brasil aumentarão a frequência e a intensidade de ondas de calor e, por sua vez, aumentará o número de mortes”. Pode explicar o que são e como funcionam esses modelos construídos pelos pesquisadores sobre as ondas de calor?
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho – São modelos estatísticos epidemiológicos. Na área da saúde, quando queremos fazer uma pesquisa com medicação, colocamos um ratinho dentro de uma estufa e controlamos tudo a partir de determinados parâmetros, como a temperatura, por exemplo. Quando estudamos a atmosfera, não temos esse controle. Não tem como colocar a atmosfera, o mundo, dentro de uma caixinha. Então, estudamos a partir de equações matemáticas, ou seja, os modelos são feitos com equações matemáticas que têm a capacidade de fazer previsões.
Nos modelos epidemiológicos realizados junto com os dados da área da saúde, analisamos um determinado período, uma determinada onda de calor, quantas pessoas morreram em decorrência, quantas pessoas internaram, quais doenças as pessoas tinham, e outros fatores. Fizemos muitos estudos no Brasil, analisando várias doenças, e formulamos modelos estatísticos a partir de cálculos matemáticos, da sazonalidade, para saber a relação entre uma coisa e outra.
Não é que a onda de calor tenha sido a única responsável por matar alguém, mas é um dos fatores contribuintes para o acontecimento do fenômeno que estamos estudando. Em alguns casos, há uma chance grande de uma onda de calor ser o fator preponderante para que um doente idoso, cardíaco, que sofresse um golpe de calor na França, por exemplo, fosse a óbito. Nesse caso, o calor teve um impacto fundamental. Em outros casos, o calor tem um impacto somado a outras coisas porque a doença nunca é causada só pelo ambiente; também são considerados aspectos da nutrição, aspectos sociais etc. Esses modelos conseguem fazer estimativas também sobre quantas pessoas poderiam ser internadas se a temperatura atingisse determinado grau, em quantos dias as pessoas começariam a internar. Ou seja, os modelos conseguem responder a essas questões; são modelos estatísticos nos quais usamos variáveis da saúde, meteorológicas, de poluição.
IHU – Seu estudo, publicado na revista científica PLOS Medicine em 2018, destaca a possibilidade de o número de mortes aumentarem em decorrência das ondas de calor, como efeito das mudanças climáticas, entre 1971 e 2020. Os países mais afetados seriam Brasil, Colômbia e Filipinas. Os menos afetados seriam EUA e países da Europa. Por quais razões essas regiões tendem a ser mais ou menos afetadas?
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho – Quando utilizamos um banco de dados robusto, o próprio dado dá uma identidade do local; é como se mostrasse uma fotografia do local. A partir dessa fotografia, conseguimos fazer as estimativas. Como, nos países mais vulneráveis, as pessoas têm menos poder de se proteger, no decorrer do tempo essas pessoas foram sempre mais afetadas do que as de países mais ricos. Diante de uma onda de calor como a que ocorreu no último domingo, uma coisa é estar em um ambiente ou hospital com ar-condicionado, e não estar tomando um golpe de calor o tempo todo; outra coisa é estar em um país onde não existe acondicionamento nos ambientes e as pessoas já estão doentes.
As condições sociais têm um impacto muito importante em relação à mudança no ambiente. Nos países mais pobres ou em desenvolvimento, o impacto será maior, vão morrer mais pessoas porque elas têm uma alimentação e uma saúde mais precárias. As estimativas são relativas aos países mais pobres ou em desenvolvimento onde há uma vulnerabilidade maior das pessoas.
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IHU – O que as pesquisas atuais sugerem sobre as ondas de calor e seus efeitos? Que mudanças são perceptíveis nos últimos cincos anos, por exemplo?
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho – Na última pesquisa que publicamos na Nature, conseguimos mostrar, usando os modelos de previsão climática, que os fenômenos extremos meteorológicos, os extremos de tempo, como ondas de calor e chuvas intensas, estão ficando mais intensos e o tempo de retorno está ficando cada vez menor.
Imagine um gráfico com uma média temporal de cem anos e, no decorrer desse período, uma ou duas vezes as médias ficaram acima ou abaixo do padrão. Hoje, a média temporal não é mais a de cem anos, mas de 20 ou 10 anos. O tempo de retorno de temperaturas altas em alguns lugares, como São Paulo, está variando entre 2 e 5 anos. Em outros países, a média tem sido de cinco anos. Ou seja, os eventos extremos estão mais frequentes. Antigamente, demorava muitos anos para acontecer eventos extremos e alguns eram raros; hoje, eles se repetem com mais frequência. Isso, sim, é um indicativo de que o clima está passando por uma mudança. O clima está nos extremos, totalmente desequilibrado.
IHU – O que tem observado no âmbito público, especialmente na área da saúde, tanto sobre a receptividade das pesquisas sobre ondas de calor e eventos extremos quanto acerca de propostas para o enfrentamento dessa problemática? Quais os desafios no enfrentamento dos eventos extremos?
Micheline de Sousa Zanotti Stagliorio Coêlho – Trabalho com essas questões há mais de vinte anos e, efetivamente, não vejo muita coisa sendo feita; vejo somente manchetes. Moro na Austrália há doze anos, tenho feito artigos extremamente robustos sobre o Brasil, os quais são publicados em revistas importantes, como JAMA, The Lancet, Nature, PLoS Medicine e não vejo, aqui no Brasil, eles serem usados para implementar nada. As implementações, para evitar determinadas situações na área da saúde, são muito simples. Não é preciso fazer uma grande obra; é preciso fazer uma adaptação do que já existe. Por exemplo, os hospitais estão em condições de atuar? Eles têm ar-condicionado para aguentar as ondas de calor? Uma escola tem estrutura para suportar os próximos anos com calor forte? São coisas simples. Não é preciso de uma política do outro mundo. Particularmente, não tenho a informação sobre o que está sendo feito. Os pesquisadores se colocam à disposição de fazer a pesquisa, mas a parte pública é muito complexa.