07 Dezembro 2022
Renata Salecl é filósofa, socióloga e teórica jurídica eslovena. Professora da Universidade de Ljubljana e da Universidade de Londres, também ministra cursos sobre psicanálise e direito, e sobre neurociência e direito. Sua obra, original e profunda, mergulha nas dores contemporâneas, como em Angustia (2018) e El placer de la transgresión (2021).
Em La tiranía de la elección, problematiza o número avassalador de opções que a vida cotidiana pode impor (começando pela simples compra de um eletrodoméstico), mas, por outro lado, a ilusão acerca da possibilidade de escolher naquelas coisas que realmente são importantes. E daí vêm a contradição, a culpa, a agonia e o burnout que vemos hoje.
“Uma história extraordinária sobre o nosso drama contemporâneo”, destacou o escritor britânico Hanif Kureishi a respeito de seu livro.
De Londres, via Zoom, Salecl conversa com o jornal La Tercera sobre as falsas opções, a angústia da decisão, o impacto das redes sociais - ampliadoras dessa ansiedade - e a ascensão dos autoritarismos, como uma consequência. “Lamentavelmente, as redes sociais não estão mudando apenas as relações humanas, mas também estão afetando profundamente as crenças das pessoas. São, além disso, novos mecanismos de manipulação e lugares onde parece muito fácil expressar a agressão”, disse em uma entrevista, no ano passado.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 02-12-2022. A tradução é do Cepat.
Conforme você argumenta, não estamos mais concordando nem mesmo sobre o que é verdadeiro. Como considera que podemos mudar o impacto negativo das redes sociais em nossas vidas e na sociedade?
É importante lembrar que os líderes autoritários estão, de fato, usando essa descrença (sobre a verdade) a seu favor, especialmente quando se observa a forma como Putin está agindo, mas também Orbán, na Hungria, e Bolsonaro, no Brasil. As pessoas não concordam sobre o que é verdade, mas em algum momento se rendem diante da pergunta: “O que é verdade e o que não é?”
Penso que esse próximo passo, render-se, realmente ajuda os líderes autoritários. Porque esse tipo de descrença ou dúvida total está contribuindo a que as pessoas se fechem em sua vida privada, em suas pequenas bolhas, e a que se desconectem dos grandes meios de comunicação, das notícias bem documentadas.
Sabemos bem que uma opinião muitas vezes pode ter mais peso, mais força nas redes sociais, do que qualquer dado científico bem pesquisado ou textos jornalísticos muito bem pesquisados. Então, de certa forma, as pessoas hoje frequentemente abandonam a ideia sobre “o que é um fato” e “o que é verdade”, e a apatia está aumentando.
Como você definiria essa forma de apatia?
Apatia no sentido de se desconectar, mas também no sentido de pensar na vida individual e em renunciar a se envolver. Vi em muitos países que as pessoas se fecham, principalmente depois da pandemia.
O Chile é interessante para mim. Tive a oportunidade de passar um mês no Chile, em 2018, e fiquei muito interessada em saber como o seu neoliberalismo funciona, pois são o berço do neoliberalismo, e vi a interiorização da ideologia, o que foi inacreditável.
De que forma?
Mesmo as pessoas muito pobres acreditam que tudo está em suas mãos, que ainda podem chegar lá, ou que talvez seus filhos cheguem, se apenas tomarem as decisões certas, ou se apenas tiverem sorte ou trabalharem ainda mais. Observei que possuem uma das semanas de trabalho mais longas, se não me engano, são 46 horas?
São 45 horas por semana e agora um projeto de lei está tentando reduzi-las para 40…
Então, é uma das semanas de trabalho mais longas, e muitas pessoas que conheci (no Chile) também já tinham um segundo emprego... Vocês também possuem um acesso desigual a uma boa educação, pessoas muito ricas também têm acesso à educação no exterior. E quando viajei pelo Chile, senti essa grande divisão, mas a crença na mesma ideologia, a ideologia do neoliberalismo...
Muitas vezes, mesmo os pobres se culpam por seus fracassos e não pensam tanto no quadro social que, de fato, não permite que façam escolhas que possam lhes abrir a porta para sair da pobreza. Quanto às pessoas muito endinheiradas que vi, conhecendo alguns de seus psicanalistas, falando sobre o tipo de, digamos, sofrimento pelo qual estão passando, vi uma divisão bastante interessante, muitas vezes, de pessoas com uma vida dissociada.
Em que sentido?
Senti que mesmo as pessoas muito ricas, ou da classe média alta, que trabalhavam com finanças e afins, sofriam, não economicamente, mas mentalmente, porque o neoliberalismo está nos afetando. Estamos tendo um aumento de ansiedade, de sentimento de culpa, de sentimento de ser pouco apto, de automutilação.
Parece que uma pessoa em uma sociedade neoliberal é a dona de sua vida, mas, na realidade, isto é uma ilusão, e essa é uma espécie de autodestruição profunda. A autodestruição se mostra, hoje, como esgotamento ou burnout. Quase todo mundo fala em esgotamento, nunca me lembro dos meus pais ou da geração deles [comentarem a esse respeito], mesmo quando trabalhavam em serviços muito pesados, como nas fábricas: ficavam cansados, mas não com burnout.
Em seu livro ‘La Tiranía de la Elección’, você se referiu a essa ilusão de ter muitas opções, quando não é assim. O que poderia aprofundar a esse respeito?
Sim, exatamente, porque analisava que as pessoas estão tomando decisões vinculadas ao que é a escolha socialmente esperada, ao que outras pessoas estão escolhendo e, claro, vinculadas aos mecanismos inconscientes que nos levam a tomar decisões, às vezes, muito autodestrutivas também. E as escolhas são muito menos racionais do que pensamos.
Também podemos ser facilmente manipulados pelas redes sociais. Foi o que vimos com o Brexit, a Cambridge Analytica, os algoritmos, as notícias falsas... O medo do que está acontecendo, por meio das redes sociais, afeta as pessoas e muda suas crenças políticas, de modo que começam a seguir ideias que vão contra o seu bem-estar. E muitas vezes as pessoas escolhem o que as prejudica.
Pode dar um exemplo desse erro na tomada de decisões?
Lembro-me que nos Estados Unidos até as pessoas muito pobres foram contra o atendimento médico universal, na época do presidente Obama, com base na ideia de escolha. Desse modo, os republicanos habilmente estimularam a ideia de escolha dizendo que o Obamacare impedia a escolha do provedor médico...
Contudo, as pessoas pobres não tinham nenhuma seguridade, nenhum seguro, nenhum acesso a esse atendimento médico para que pudessem tomar decisões. E continuavam acreditando no direito de escolher. Isto foi inacreditável.
Você também escreveu sobre a pressão diária para decidir muitas coisas, o que acaba cansando as pessoas.
Sim, sou testemunha disto: precisava comprar uma geladeira nova e, após um dia procurando, desisti. Porque, literalmente, há tantas opções para algo tão banal com o qual nós, como consumidores, temos que nos envolver, que você constantemente sente que tomou uma decisão errada, mesmo em relação a objetos de consumo.
E o que acontece com a direção de nossas vidas, com o que colocamos em nossos corpos, com os problemas de saúde etc.? Então, sinto que aquilo que escrevi no livro La Tiranía de la Elección ainda permanece. Nada mudou. A ideologia do neoliberalismo é tão forte que, na última década, de fato, nada a minou.
Penso que seu poder é o individualismo reforçado com todos esses mecanismos psicológicos de ansiedade, culpa, autoculpa, falta de reflexão nas escolhas sociais, quando se pensa constantemente que tudo é uma escolha individual. Considero que isso é o mais prejudicial para a sociedade: que as pessoas estejam pensando em opções individuais, mesmo em tempos de crise.
A pandemia mudou isto?
Você viu que as pessoas começaram a pensar em se vacinar e usar máscaras como uma opção individual, ao passo que a pandemia é definitivamente um problema social. É uma doença que penetra em toda a sociedade, não depende de uma única pessoa pensar: uso máscara ou não.
Quando estamos lutando contra uma doença social, temos que fazer determinados acordos na sociedade, e estamos cada vez menos dispostos a assumir compromissos e acordos. E, claro, nós nos identificamos cada vez menos com a ciência, o que é um grande problema.
Os cientistas, especialmente agora que lidam com a mudança climática, estão inclusive pensando em recorrer a alguns atos de desobediência, como uma desobediência civil, para impactar, para realmente transmitir a mensagem, porque escrever em revistas científicas, falar sobre a mudança climática não nos levou a lugar algum. Estamos na pior situação da história. Tivemos o pior verão da Europa. O calor que experimentamos foi simplesmente inacreditável.
Em outras pandemias, você disse que primeiro veio a negação, depois, ter que lidar com ela e, por fim, esquecê-la. Por quê?
Penso que o desejo de esquecer, o desejo de não ver, é muito forte quando estamos lidando com algo traumático e tão difícil, como problemas de saúde, quando estamos doentes, ou em uma pandemia que abrange a saúde de todos nós, indivíduos, mas também como sociedade.
A negação se fortalece com as novas redes sociais, notícias falsas e teorias da conspiração que, claro, estão em alta em tempos de crise. Então, precisamos deste entendimento para os próximos tipos de crise que enfrentaremos, como a mudança climática, a fome, a crise econômica ou outra pandemia. Crises assim abrirão espaço para o pensamento mágico. As pessoas começam a acreditar em qualquer coisa.
[...] Houve muita pesquisa sobre o que leva ao fim da civilização, e pode ser uma doença, pode ser a mudança climática ou alguma catástrofe natural e também o colapso social. Com uma catástrofe natural vem o colapso social, a desconfiança na autoridade e a incapacidade das autoridades em manter as sociedades unidas. E as portas ficam abertas às autoridades que oferecem falsas esperanças, sejam elas autoridades religiosas, líderes de cultos ou líderes populistas.
Então, devemos nos preocupar com o que as catástrofes que enfrentamos significarão para o nosso tecido social. Porque podemos imaginar mais líderes autoritários. Temos três quartos do mundo governados por regimes autoritários. A democracia está ladeira abaixo.
A ideia que tivemos em determinado momento da pandemia, de que estávamos todos no mesmo barco, acabou sendo uma fantasia?
Sim, definitivamente. Isso faz parte de um novo livro que escrevi na Eslovênia, enquanto estava em casa com o vírus. Neste livro, falo sobre a mudança nas relações intersubjetivas. Esta fantasia de que estamos todos no mesmo barco caiu muito rapidamente, pois vimos que as diferenças de classe, raciais, entre outras, eram extraordinariamente importantes em relação a como as pessoas sofriam a pandemia. Quem recebeu o melhor tratamento de saúde, quem conseguiu se isolar ou quem tinha trabalhos que podiam ser feitos em casa não foram os trabalhadores braçais.
Falando em redes sociais, você disse que é totalmente contra a chamada cultura do cancelamento, no sentido de que não deveríamos criar um mundo de censura.
Sim, também devemos entender que a censura pode impedir, de forma muito rápida, as críticas ao governo. Portanto, se temos uma censura muito forte contra algo que percebemos como odioso, isso pode repentinamente se tornar leis que impeçam criticar autoridades em determinadas sociedades, como vimos.
No passado, na Iugoslávia e em outros países socialistas, existiam leis que impediam a crítica ao Partido Comunista, você já sabe, e hoje temos muitos países autoritários que não permitem nenhuma crítica às estruturas de poder. Portanto, há um risco de censura.
Nosso problema, hoje, é lidar com pessoas com opiniões diferentes. Sou totalmente contra o discurso ofensivo, ataques agressivos, ataques pessoais, mas estou aberta ao diálogo, a pensar fora da caixa. E a começar a imaginar o que o outro está pensando: por que o outro está adotando determinadas crenças que percebo como problemáticas [?].
Hoje, devido ao fato de vivermos tão fechados em nossas bolhas de informação, sequer nos encontramos com outros tipos de pensamento. A maior parte de nossa vida social é online com pessoas que acreditam em coisas semelhantes às nossas.
Desse modo, também me interessa analisar tipos de pontos de identificação. Por que algumas pessoas de quem discordo adotam determinadas crenças? Quais são as lutas de poder por trás? Porque sabemos que determinadas crenças, muitas vezes, não estão sendo disseminadas porque as pessoas necessariamente acreditam nelas de forma individual e apaixonada, mas porque existe toda uma estrutura, especialmente agora com as redes sociais, que está ajudando a disseminá-las.
Como restaurar um sentido de bem comum em uma sociedade individualista?
Penso que é uma longa batalha trazer ideias de bem comum. A ideia de bem comum está muito baseada no fato de que temos que nos limitar e de também esperarmos que os outros se limitem. Essa já era a ideia de Freud: que, de certo modo, a justiça social se baseia em nos limitarmos e depois esperarmos que os outros façam o mesmo. E, claro, muitas vezes, ficamos com raiva quando os outros não fazem o mesmo.
Eu diria que é necessário refletir sobre novos tipos de organização da sociedade. E, claro, as ideias do socialismo muitas vezes são percebidas como vinculadas às estruturas que tínhamos, que tinham muitos problemas no socialismo do passado. Contudo, talvez, precisemos inventar uma nova palavra para um novo tipo de cooperação social, onde o bem comum seja defendido, em primeiro lugar, criando novas formas de organização do trabalho, novas cooperativas, cooperativas habitacionais, por exemplo...
Sabemos que não podemos resolver a questão da mudança climática, a não ser que realmente comecemos a pensar em comunidade no sentido mais amplo, no planeta como tal, e nisto definitivamente estamos fracassando. E o maior problema dos últimos dois anos é que não conseguimos criar a ideia de comunidade, usando a pandemia como uma espécie de trampolim para um novo pensamento de comunidade. Monopolizar vacinas, não compartilhar a patente e não pensar na pandemia como um problema mundial foram os maiores erros.
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“A autodestruição se mostra, hoje, como esgotamento ou ‘burnout’”. Entrevista com Renata Salecl - Instituto Humanitas Unisinos - IHU