17 Junho 2020
Brett Salkeld é teólogo da Arquidiocese de Regina, Saskatchewan, no Canadá. Vive em Regina com sua esposa Flannery e seus sete filhos. O livro mais recente de Brett intitula-se Transubstantiation: Theology, History, and Christian Unity (Baker Academic, 2019). Ele também tem um podcast, “Thinking Faith!” O autor, que estuda o fenômeno das teorias da conspiração na Igreja, conversou com Charles Camosy sobre o problema.
A entrevista é de Charles C. Camosy, publicada por Crux, 15-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Transubstantiation:
Theology, History, and Christian Unity
Brett Salkeld (Baker Academic, 2019)
Pode nos contar como você se especializou nas formas que as teorias da conspiração assumem? Em particular, as formas de teorias da conspiração enquanto problema pastoral da Igreja?
Ano passado, durante o Sínodo para a Amazônia, percebi um crescimento dos padrões que envolviam teorias da conspiração nas mídias sociais. Esses padrões dificultavam ou impossibilitavam um engajamento saudável, além de levar a algumas situações pastorais complicadas em que as pessoas acabavam se sentindo incompreendidas ou antagonizadas.
Levei essa consideração ao meu bispo, sugerindo que aqueles que trabalham na área pastoral, inclusive os bispos, poderiam se familiarizar com tais padrões de pensamento e que poderíamos nos beneficiar com algum desenvolvimento profissional nesse sentido. A resposta que ele deu foi me pedir para começar a estudar o assunto. Fiquei um pouco surpreso (não sou psicólogo nem filósofo), mas aceitei o desafio.
Comecei a ler e prestar atenção nos padrões que percebia nas mídias sociais. Obviamente, quando a Covid-19 e o confinamento (lockdown) se impuseram, houve uma “explosão” geral. Depois de estudar o assunto em profundidade, me senti melhor preparado para reconhecer e articular os padrões que vemos nas mídias sociais atualmente. Como muitos outros, eu costumava ter a sensação de que algo estava “errado”, de que certas coisas não faziam sentido. Agora, tenho linguagem e categorias mais claras para descrever exatamente esse fenômeno da conspiração.
Sei que você teve uma situação difícil com católicos que rejeitam a crença no evolucionismo. Aos que me perguntem sobre o assunto, sempre digo que esse tema não é um problema para os católicos, mas acho que a sua experiência provou que estou errado…
Ainda podemos dizer que, para a maioria dos católicos, o evolucionismo não representa um problema. Mas, sim, recentemente me deparei com uma situação em particular. Escrevi um artigo, publicado no blog arquidiocesano seis anos atrás, argumentando que os católicos certamente poderiam – e, provavelmente, deveriam – acreditar no evolucionismo. Recentemente, o texto chamou a atenção de um grupo autointitulado católico que escreveu uma matéria contestando o meu artigo. Quando parei para analisar os argumentos apresentados, ficou claro que o método empregado por eles era o mesmo método que eu vinha estudando a pedido do meu bispo. Era um pensamento conspiratório.
Sempre achei que o criacionismo, ao qual fui exposto na adolescência, era intelectualmente frágil, mas, hoje, tenho as ferramentas para ver como ele funciona: ele presume más intenções, faz perguntas capciosas, inverte o ônus da prova, não consegue distinguir afirmações verificáveis de afirmações não verificáveis, faz um emprego acrítico e arbitrário de fontes, etc. Escrevi uma resposta ao texto do grupo em questão e, nele, comecei a explorar a ideia do criacionismo como uma forma de conspiração.
Fiquei chocado quando, poucas semanas depois, esse texto que escrevi me rendeu uma repreensão de 53 páginas com 8 signatários! Era obviamente fútil (embora extremamente tentador) respondê-lo ponto a ponto. Essa resposta daria aos teóricos da conspiração a exposição que eles tanto desejam. Mas o que escreveram serviu como uma oportunidade excelente para que eu trabalhasse algumas ideias sobre as teorias da conspiração, pois me forneceu inúmeros exemplos daquela forma de pensar.
Há poucas semanas, publiquei este trabalho em Church Life Journal, sob o título “Catholic Creationism as Conspiracy Theory” (O criacionismo católico como uma teoria da conspiração). [1] Muitos disseram que o texto serve para entender outros tipos de coisas que vemos nas mídias sociais e que nada têm a ver com evolucionismo. Há pastores que me escreveram pedindo mais informações, porque percebem que esse tipo de pensamento tem se tornado um problema pastoral em suas congregações. Então, tenho explorado outros temas para ajudar a pensar a respeito.
Por que acha que as pessoas estão se sentindo atraídas por esse tipo de pensamento? Acha que a pandemia agravou o problema?
As teorias da conspiração parecem fazer parte da condição humana. Sempre fomos suscetíveis a esse tipo de pensamento, e a maioria de nós acredita em pelo menos algumas coisas que se assemelham ao fenômeno. É um tipo de preguiça intelectual que acaba por satisfazer o nosso desejo de compreender e que nos faz sentir como o mocinho da história (geralmente herói e vítima).
Esse tipo de pensamento conspiratório serve ainda para nos proteger da complexidade do mundo, que pode ser muito ameaçadora. É por isso que as teorias da conspiração fazem afirmações amplas, do tipo: “Isso explica tudo!” As pessoas com essa tendência coletam cuidadosamente os dados para que se ajustem à sua narrativa. Na busca por segurança e estabilidade, as teorias da conspiração desenvolvem técnicas eficazes para ignorar, descartar ou reinterpretar qualquer dado que seja contrário à teoria. Isso torna incrivelmente frustrante confrontá-las. São como doenças intelectuais que desenvolveram imunidade ao tratamento padrão.
Acho fascinante que a serpente do Jardim tenha usado uma técnica clássica da teoria da conspiração. Especificamente, havia um tipo de pergunta retórica ardilosa (“Deus realmente disse isto?”) acompanhada de uma verdade parcial (“não morrerás se a comer”). Todos vemos esse padrão – a pergunta principal acompanhada de dados cuidadosamente selecionados que dão a impressão de permitir que o ouvinte chegue a suas próprias conclusões e, portanto, se ache um pensador crítico e independente – nas mídias sociais diariamente. E o que foi tão tentador para Eva é o que torna as teorias da conspiração tentadoras para nós: conhecimento e poder.
O mundo é um lugar complexo e confuso. As teorias da conspiração nos dão a ilusão de que estamos “por dentro do assunto” e que estamos em posição de fazer alguma coisa a respeito da situação vivida. Tais teorias têm um histórico bastante notável e sórdido de levar à ação, seja a de aparecer em uma pizzaria com um rifle para resgatar crianças traficadas, seja a de recusar a vacinação ou queimar torres de telefonia celular 5G.
Não há dúvida de que a pandemia agravou as coisas. As teorias da conspiração prosperam em tempos de incerteza, ansiedade e medo, quando nossa necessidade de segurança e controle é profundamente sentida. Este confinamento significou que muitas pessoas têm passado mais tempo nas mídias sociais, o que pode exacerbar a situação. As mídias sociais difundem a falsidade mais facilmente do que a verdade, em grande parte porque seus algoritmos favorecem a reatividade em detrimento da racionalidade. Por causa disso, discutir com teóricos da conspiração nas redes sociais ajuda a aumentar a exposição dessas ideias.
Além disso, as mídias sociais nos lançam ainda mais para dentro de bolhas ideológicas, onde as teorias da conspiração podem se tornar marcas de pertencimento, uma maneira de sinalizar a pertença a um grupo de pensadores do lado da verdade, ou de reveladores heroicos dela. Isso vemos em grupos que já se sentem marginalizados ou atacados pela cultura mais ampla. Quase todos os que divulgam teorias da conspiração que conheço são usuários ferrenhos das mídias sociais.
Tenho a sensação de que muitos cristãos, frequentemente não sem razão, são profundamente céticos em relação ao que “o mundo” diz versus o que a Igreja ou a Bíblia têm a dizer. Quando um ceticismo saudável ultrapassa a linha da teorização e passa a ser conspiração?
Os cristãos têm boas razões para se mostrarem céticos com relação às declarações feitas, por exemplo, pelo governo, pela academia ou pela grande mídia. Esses grupos não têm um bom histórico em representar com precisão os cristãos ou o cristianismo. Além disso, em especial nos temas relacionados à vida, estes conglomerados estão tão obviamente comprometidos que fica difícil imaginá-los como totalmente confiáveis em outros assuntos importantes também.
E mais: conspirações realmente existem. O problema com as teorias da conspiração, como temos empregado o termo, não é que elas postulam a existência de conspirações. Nem se trata de dizer que estas pessoas sejam céticas. O caso é que são intelectualmente desonestas.
Tendemos a identificar as teorias da conspiração pelo seu conteúdo, geralmente relacionado à existência de grupos poderosos sombrios com motivos nefastos a controlar nossas instituições. Mas é a forma delas que é, de fato, interessante e merece maior atenção. O pensamento conspiratório não é apenas um raciocínio ruim, mas uma forma particular de raciocínio ruim que se inocula do raciocínio bom. Em suma, uma teoria da conspiração é impossível de ser falseável. É por isso que desbancá-la é ineficaz.
A tática mais paradigmática da teoria da conspiração, que G.K. Chesterton menciona em uma passagem famosa do livro Orthodoxy, é rejeitar reflexivamente todo e qualquer argumento exatamente da forma que se esperaria que um conspirador diga, caso a conspiração fosse verdadeira. Consequentemente, todo aquele que questione a teoria conspiratória pode ser considerado ou conspirador ou trapaceiro. O documentário “Plandemic” incorporou essa tática em seu plano de marketing, argumentando, desde o começo, que o fato de o documentário ter sido retirado das plataformas de exibição provava a sua veracidade. Existem outros movimentos semelhantes. Um deles é responder a um pedido de provas em apoio da teoria, não com provas, mas com um pedido de provas que a desaprovem (inversão do ônus da prova) ou com a sugestão de que quem pergunta deve “ir fazer a sua própria pesquisa”.
Desbancar o conteúdo das teorias da conspiração ainda é um trabalho valioso e necessário. Como se baseiam na ignorância para parecer plausível a teóricos não conspiratórios, conscientizar as pessoas sobre os fatos pode fazer com que muitos não adotem nem difundam bobagens perigosas. Enquanto uns postam coisas como: “É tudo uma farsa” ou “Finalmente, a VERDADE está sendo revelada, todos DEVEM assistir isso”, em nossas mídias sociais, também temos os que postam o mesmo material com uma pergunta honesta, do tipo: “Alguém sabe se isto é verdade?” Checar os fatos é essencial para ajudar este último grupo.
Mas também precisamos aprender a reconhecer em abstrato as formas das teorias da conspiração. Digo “em abstrato” porque podemos, todos nós, fazê-las em concreto. Não temos dificuldade em intuir quando alguém que discorda de nós se engaja nessa forma de argumentação. Mas se tivermos as categorias para ver exatamente o que a pessoa estava fazendo e por que tal pensamento é logicamente inválido, estaremos melhor preparados para evitar inclusive sermos tentados pelas teorias conspiratórias. De fato, uma vez que nos aperfeiçoamos em reconhecer o pensamento conspiratório, as teorias praticamente se desmoronam por si mesmas.
Alguma dica para se responder pastoralmente quando estas situações viram um problema?
Me parece haver dois elementos centrais. O intelectual é, na verdade, o menos importante dos dois, mas não deve ser ignorado. Precisamos modelar e ensinar o pensamento bom, e com referência particular a essa espécie de pensamento ruim. Isto é especialmente útil aos que tendem às teorias da conspiração, mas que não estão comprometidos com elas.
O elemento mais importante de uma resposta pastoral, no entanto, é abordar as questões existenciais subjacentes à atração das pessoas por teorias conspiratórias. Vivemos um momento de profunda ansiedade. Existem até meios de comunicação, incluindo alguns meios de comunicação católicos, que fazem questão de manter o público que os ouve em um estado de ansiedade perpétua. Em resposta, precisamos construir uma comunidade real.
As mídias sociais nos oferecem uma comunhão falsa que, por vezes, cria barreiras em vez de rompê-las. As pessoas que passam os dias consumindo teorias da conspiração na internet se sentem isoladas e sozinhas. É extremamente fácil se desentender com alguém nas mídias sociais. Chesterton dizia que o que um teórico da conspiração precisa não é de argumentos, mas de ar fresco. Em sua vida, o teórico da conspiração provavelmente precisa de alguém com quem conversar. E sobre algo diferente de teorias da conspiração.
Uma última observação: muitos dos teóricos da conspiração que conhecemos são pessoas, em princípio, comprometidas com uma vida espiritual e de oração. Em minha experiência, quando a conversa muda para o tema da oração, as pessoas geralmente reconhecem que o pensamento conspiratório tem destruído a capacidade delas de sentirem aquela paz interior. Espiritualmente, esse pensamento age como um vício. Não traz satisfação, mas cria uma busca frenética. O que precisamos não é desbancar as suas teorias, mas fazer com que haja um discernimento de espíritos. Quando as pessoas ouvem que estão erradas, é provável que se aprofundem mais ainda; mas se lhes perguntam se estão ansiosas, elas geralmente se abrem. Se nos engajarmos na batalha espiritual, a intelectual geralmente se seguirá naturalmente.
[1] Texto em inglês disponível aqui.
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Pandemia de Covid-19 alimenta teorias da conspiração – no mundo e na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU