15 Setembro 2022
“Quem é o chefe de Estado é matéria importante. O direito de primogenitura não é o caminho certo para escolher um. O Parlamento é o lugar para decidir se a Grã-Bretanha precisa de uma monarquia enxuta – ou se é que precisa de uma. Há um apelo a uma posição soberana acima da briga em uma época de populismo político. Mas os parlamentares não devem se curvar à herança e à posição de poder. A Grã-Bretanha moderna pouco necessita de ornamentos e privilégios que pertencem a outra época”, manifesta em editorial o jornal inglês The Guardian, 12-09-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A saída de um monarca e a chegada de outro levantam questões que os britânicos têm perdido na transição. A morte da rainha é sentida como a perda não da direção, mas da própria bússola da nação. A monarquia é uma forma de religião. Em uma era secular, é mais fácil repudiar Deus que a monarquia. Claramente grande parte do país está sofrendo, embora a proporção dos que estão inertes ou comovidos seja desconhecida. Mas o advento do rei Charles III traz um sentimento de mudança – e pressentimentos.
Mesmo entre os mais desapegados, tocados por uma dor insuspeitada, o novo soberano ganhará apoio. Mas o novo rei não é tão popular com o público quanto sua mãe. Isso é um problema para Charles III e a instituição que ele dirige, porque em uma democracia as monarquias dependem do consentimento público. Basta olhar para o príncipe Andrew. A malfadada entrevista do irmão mais novo do rei na BBC Newsnight – na qual ele defendeu sua associação com o criminoso sexual condenado Jeffrey Epstein – viu seus índices de aprovação caírem para 7%. Andar atrás do caixão de sua mãe na segunda-feira é um raro passeio público para um príncipe que já foi o segundo na linha de sucessão ao trono.
As sociedades modernas esperam que suas instituições mudem e acompanhem os valores e aspirações do público. O grande sucesso de Elizabeth II como monarca foi manter seu considerável exercício de soft power fora da vista do público para que não fosse ameaçado pelo escrutínio. O poder do soberano baseia-se no fato de que o consentimento monárquico deve ser obtido antecipadamente antes da introdução de qualquer projeto de lei que interfira nos poderes prerrogativos da coroa e afete os interesses privados da coroa. O rei Charles, como sua mãe, terá a capacidade de exercer influência antes que as decisões finais sejam tomadas. Ambos os aspectos do consentimento devem ser abandonados.
Deve haver uma consideração mais ampla da reforma da realeza pelo parlamento. Enquanto a falecida rainha se ofereceu para pagar algum imposto de renda na década de 1990, seu filho não pagou imposto sobre herança – e a propriedade privada de 650 milhões de libras do Ducado de Lancaster passou para o rei Charles sem impostos. Esse negócio precisa ser revisto. As finanças reais são obscurecidas pelo que é propriedade privada e pública. Um quarto dos lucros da propriedade da coroa é dado ao monarca reinante na forma de uma subvenção. No ano passado, isso valia cerca de 85 milhões de libras. Mas a conta da segurança real é paga pelo Estado – elevando o custo anual da monarquia para 350 milhões de libras. Apesar de todos os protestos contra as traças do palácio, a crise do custo de vida ainda não chegou às manchetes da casa real.
Uma Grã-Bretanha dividida, a qual a finada rainha amalgamava, não pode ignorar as consequências de sua partida. O Brexit abriu fissuras constitucionais – principalmente quando a Suprema Corte decidiu como sendo ilegal a prorrogação do parlamento em nome da coroa. A tomada de poder por Boris Johnson para assumir a prerrogativa real de dissolver o parlamento continua contestada por especialistas constitucionais.
Quem é o chefe de Estado é matéria importante. O direito de primogenitura não é o caminho certo para escolher um. O Parlamento é o lugar para decidir se a Grã-Bretanha precisa de uma monarquia enxuta – ou se é que precisa de uma. Há um apelo a uma posição soberana acima da briga em uma época de populismo político. Mas os parlamentares não devem se curvar à herança e à posição de poder. A Grã-Bretanha moderna pouco necessita de ornamentos e privilégios que pertencem a outra época.
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Monarquia não é religião. O parlamento não deve se curvar. Editorial do The Guardian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU