15 Junho 2022
Éric Sadin enche auditórios. Seus livros são destacados por celebrities do mundo intelectual como Jorge Carrión, no New York Times, ao mesmo tempo em que é destinatário de seminários e está presente nos suplementos culturais de mídia gráfica e digital desta região. Nos últimos dez anos, este escritor e ensaísta francês se tornou uma referência cotidiana na hora de pensar as mutações que a tecnologia introduz no que entendemos por humano.
A centralidade que seus livros adquiriram na Argentina está em sua capacidade de se posicionar em favor da comunidade humanista, em tempos em que sua definição parece hackeada pelas mediações tecnológicas. A solidariedade humana, o pensamento crítico e o encontro – ofuscado, por certo – com o real estão para Sadin no centro da exigência do “ser-com-os-outros”, de criar comunidade.
É evidente que essa solidariedade está em disputa ao menos desde a Modernidade com o solipsismo cartesiano e o atomismo calculista da filosofia política de Hobbes.
No fio dessas tensões, em La era del individuo tirano, seu último livro traduzido para o espanhol, Sadin aborda as mudanças em nosso modo de ser no mundo. Uma mudança de ethos que remonta ao individualismo liberal do século XVIII. No texto, um conjunto de gravuras que combinam a leitura do liberalismo com a paixão pela expressividade das sociedades contemporâneas, Sadin volta a expressar sua inimizade com o novo mundo.
Existe uma condição necessária, comum, sobre a qual nossa sociedade se afirma? Que figuras emergem do sonho da razão no século XXI? Essas questões, que orientam a leitura do livro, desembocam, segundo seu autor, na tirania do eu.
Conversamos com Éric Sadin sobre sociabilidade, tecnologia e solipsismo em tempos de silicolonização do mundo.
A entrevista é de Facundo Carmona, publicada por Clarín-Revista Ñ, 13-06-2022. A tradução é do Cepat.
Que mundo se abre a partir da quarentena que se estendeu entre 2020 e 2021?
Esta pandemia nos forçou a realizar muitas das nossas ações habituais online. Trabalho, escola, universidade, acesso a obras culturais, intercâmbios habituais, em síntese, grande parte do que se chama “vida social” se viu transposta a pixels.
Neste aspecto, ocorreu um fenômeno crucial: a tela se ergueu como a principal instância de encontro nas relações entre as pessoas. Como se, com a velocidade de um raio, fosse inaugurada outra era da humanidade, na qual nossas “máscaras de pixels” passassem a viabilizar a medida de “distância social” exigida pela ameaça do coronavírus.
Os diferentes confinamentos não representaram um acontecimento biopolítico só por causa de nosso internamento sanitário forçado. Foram também um choque psicológico pelo fato de ter que viver uma “telessociabilidade generalizada”. Contudo, não há nada menos natural do que essa conjuntura que nos desorientou ou que ao menos confirmou para muitos um estado latente.
Tal estado provém de lógicas econômicas cada vez mais descontroladas, vigentes há décadas e que geraram a sensação de não podermos nos remeter a nós mesmos, para o bem ou para o mal. Isso permitiu o surgimento do que chamo de estado de “isolamento coletivo”.
Qual é o lugar da palavra em um período no qual sua circulação nas redes sociais se acelera?
O contexto de surgimento das redes sociais coincide com a intensificação das desilusões e uma grande desconfiança em relação ao político e o econômico. As redes ganham forte impulso no final dos anos 2000.
O contexto é importante: a Segunda Guerra do Golfo e as mentiras do governo Bush. Eram tempos em que se constatava que a ordem neoliberal havia cometido uma grande quantidade de excessos, em primeiro lugar as práticas fraudulentas do mundo das finanças, às vezes alcançadas com a cumplicidade da política.
Foi também o momento em que as técnicas de management estavam sendo incansavelmente aperfeiçoadas, o que fez com que os indivíduos se sentissem cada vez menos donos de si e forçados a se submeter a condições que os privavam de seu poder de ação. E de repente – não foi planejado desse modo, obviamente – surgiu o Facebook, uma rede dentro da qual o “like” contrabalanceava a invisibilização de si mesmo.
A partir daí, muitos indivíduos se deixaram levar pela embriaguez dessa recompensa, por esse devaneio a respeito de si mesmos. Mais tarde, o Twitter possibilitou libertar a própria palavra, acentuando muito rapidamente a vontade de confrontar com os outros através do verbo, através de uma interface que obrigava o uso de fórmulas breves e que estimulava, então, a asserção, a fórmula definitiva e que, mais do que favorecer a liberdade de expressão, gerou muito rapidamente formas de surdez entre as pessoas, fora de qualquer procedimento de troca e escuta possivelmente frutífera.
É neste aspecto que me permito discordar do mito da emancipação através das redes: nunca existiu para além de alguns geeks exaltados que acreditavam que teclando iríamos nos libertar de nossas correntes. Quem poderia acreditar em tais absurdos?
Em vez disso, do início dos anos 1990 até o presente, formou-se uma crença sólida: se utilizarmos todas essas tecnologias pessoais, seremos capazes de encarnar a fábula do indivíduo autoconstruído, a ideologia do autoempreendedorismo acerca da própria vida e, além disso, ser mais protagonistas da mesma.
No entanto, a Primavera Árabe, no Oriente Médio, e o ‘Ni Una Menos’, na Argentina, significam para muitos a possibilidade de construir movimentos políticos a partir das redes sociais. É possível um ativismo marcado pelos usos e costumes dos nativos digitais?
Tenho minhas reservas. Vivemos como nunca uma assimetria entre a palavra e os atos. Os anos 2010 mostraram uma politização das consciências, mas esta politização, mais do que assumir a forma de ações concretas no campo de nossas realidades cotidianas, manifestou-se principalmente sob a forma de um dilúvio do verbo.
Existem muitas pessoas tomadas pelo rancor – e muitas vezes com razão – que não param de denunciar as derivas da atual ordem política e econômica, mas com total indiferença em relação ao fato de que todas essas postagens cairão imediatamente no esquecimento do presente e gerarão lucros para as plataformas siliconianas [do Vale do Silício]. Esse paradoxo demonstra a dimensão de nossa impotência em sair do entrave e transformá-lo em uma abundância de ações com objetivos virtuosos.
No livro, você debate a ideia de capitalismo de tecnovigilância e antepõe a ideia de um capitalismo que se enraíza nas emoções, que estimula e premia a expressão. Que mudanças ocorreram nos últimos quarenta anos? Qual é o resultado da argamassa de postagens, dos discursos de transparência e digitalização do eu?
Houve um momento em que o “eu”, o indivíduo, era celebrado em todos os lugares. Vimos isso no início dos anos 2000, com a onipresença da “i” (iMac, iPod, iPhone etc.), seguida mais tarde pelo “You” que nos chamava a nos apropriar de todos os sistemas, como o YouTube, por exemplo.
Em 2006, a revista Time escolheu You a personalidade do ano. Foi o reconhecimento do fato de que, de agora em diante, o mecanismo especialmente ativo das sociedades era a força empreendedora de cada indivíduo, chamado particularmente a se beneficiar de todas as tecnologias digitais colocadas à sua disposição.
Contudo, no mesmo período, vivenciamos formas de desapropriação de nossa capacidade de controlar nosso destino, tanto individual quanto coletivamente, pelo fato de terem surgido certas cominações de ordem neoliberal para que nos alinhássemos a certos objetivos definidos de antemão, que apontavam somente para a otimização de cada situação.
Simultaneamente, as tecnologias pessoais nos deram a ilusão de sermos mais autônomos, móveis, reativos etc. Essa tensão entre a desapropriação de si mesmo e a sensação de poder quase total é tão desorientadora como explosiva. A próxima escala na gradação é obviamente o fato de que existem sistemas cada vez mais destinados a garantir nosso suposto bem-estar de forma hiperpersonalizada e a nos orientar em todas as circunstâncias.
Por essa razão, em minha opinião, não estamos diante de um “capitalismo de vigilância”, mas diante de um capitalismo que interpreta nossos comportamentos, na maior parte do tempo com o nosso próprio consentimento, em vista de garantir nosso suposto conforto, e que se coloca cada vez mais como um “capitalismo da administração de nosso bem-estar”, para o qual não deixamos de contribuir continuamente.
Neste esquema, onde fica a possibilidade de construir um horizonte comum?
Hoje, certos grupos (étnicos, de gênero, sociais...) chegam ao ponto de defender interesses particulares sem sequer imaginar que possam se inscrever em um marco comum, na medida em que consideram que é essa mesma ordem comum que nos prejudicou implacavelmente.
É o tempo da profusão do que chamo de “subjetividades revanchistas”, que buscam impor a todo custo sua própria visão das coisas, gerando uma atomização e uma crispação da sociedade que estão em ascensão.
É perigoso porque a política é a expressão da pluralidade, dos interesses divergentes e da necessidade de negociar para agir por um bem comum maior.
No livro, que foi publicado em francês em 2020, você aponta que os anos posteriores à pandemia podem levar a um novo tipo de fascismo. Isso está acontecendo, agora, com a Europa em guerra?
Ao contrário do que se afirmou ao longo dos anos 2010, não estamos vivendo um momento populista. Nada mais eram do que efeitos de superfície, em detrimento da multiplicação dos regimes “iliberais”.
Na verdade, enfrentamos o advento de um novo indivíduo contemporâneo: desiludido e munido de tecnologias, muito decidido a não ser enganado e que não adere mais às representações majoritárias que, com frequência, avaliam como enganosas.
Neste ponto, entramos em uma era de “ingovernabilidade permanente”, que nos mostra multidões que não atribuem mais o mínimo crédito a uma ordem considerada injusta e que, ao mesmo tempo, predomina há um longo tempo.
É o motivo pelo qual se torna imperativo retomar os laços com o nosso poder de ação em todas as escalas da sociedade, para nos envolvermos mais no curso das coisas, em oposição à expressão infindável de nossos ressentimentos, que nos mina e remete incansavelmente a nosso isolamento e a uma impotência mortífera.
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“É o tempo da profusão do que chamo de subjetividades revanchistas.” Entrevista com Éric Sadin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU