10 Mai 2022
Nos últimos dez anos, mais ou menos desde a publicação de La humanidad aumentada (2013), Éric Sadin tem se destacado no pensamento contemporâneo como um filósofo da tecnologia que atualiza as características mais notáveis desse recente ramo da filosofia, ao menos desde os anos 1930: a análise crítica do impacto e significado histórico da civilização tecnológica.
Nesse sentido, Sadin pode ser considerado um herdeiro espiritual na filosofia francesa de Jacques Ellul, autor de um livro já clássico sobre o fenômeno técnico na sociedade moderna, La Technique ou l’enjeu du siècle, publicado em 1954. Naquele momento, chamava-se de “filosofia da técnica” o que mais tarde, no final do século passado, é identificado como “filosofia da tecnologia”, enquanto passa a se ocupar de técnicas com base científica. Essa mutação do objeto técnico é claramente percebida na obra de Sadin, pois nela estuda as tecnologias digitais.
Isso não quer dizer que os aspectos ontológicos, antropológicos, sociais, políticos e éticos da ordem digital do mundo sejam ignorados ou fiquem à margem. Pelo contrário, desde La silicolonización del mundo (2016), é evidente que Sadin problematiza os artefatos digitais em referência ao contexto econômico e ideológico-político em que são concebidos, constituídos e funcionam.
Em grande medida, longe de uma filosofia “engenheril” da técnica, trata-se de uma pesquisa que busca perscrutar e revelar as consequências da inteligência artificial, nanotecnologias, robótica, Internet “das coisas”, smartphone e ferramentas digitais de uso diário para a vida humana. Essa tendência do pensamento de Sadin no último livro publicado por Caja Negra, La era del individuo tirano, acentuou-se, e ao extremo.
A entrevista a seguir propõe esclarecer alguns dos conceitos e configurações deste livro, cujas intensas páginas exploram a indústria digital e as redes sociais como a superfície de emergência de uma nova subjetividade individualista e ultraliberal, egocentrada e niilista. Por isso mesmo, para explicar o complicado vínculo entre as tecnologias digitais e o “indivíduo tirano”, Sadin responde sobre a cultura neoliberal e a sociedade digitalizada, o efeito sobre os psiquismos, a vigilância e controle do digital, sobre certo “estado de ingovernabilidade permanente” das massas, o acesso direcionado à informação, acerca do Facebook, Twitter e Instagram como divindades digitais da doxa. Em suma, sobre um rompimento civilizacional de vastas projeções.
A entrevista é de Rubén H. Ríos, publicada por Perfil, 08-05-2022. A tradução é do Cepat.
Buscando chegar a uma síntese provisória de seu último livro publicado na Argentina por Caja Negra, é possível afirmar que a combinação do individualismo neoliberal e as tecnologias digitais pessoais levou a uma sociedade atomizada e anômica?
Vivemos um momento de extrema saturação em relação a uma ordem política e econômica que vigora há cerca de meio século e que potencializa em cada indivíduo a intenção determinada de não continuar sofrendo nenhuma situação de braços cruzados. Esse estado espiritual se vê estimulado pelo fato de nos vermos equipados com uma aparelhagem técnica que parece abrir novas margens de ação.
Hoje em dia, muitas pessoas se sentem divididas entre dois estados opostos. Por um lado, constatamos que não pertencemos mais a nós mesmos, que somos objeto de pressões permanentes no exercício do trabalho, que nos deparamos com situações cada vez mais precárias. Por outro, utilizamos tecnologias que nos facilitam a existência, que nos permitem um acesso imediato à informação, à formulação de nossas opiniões, e que nos dão a sensação de nos beneficiar com um aumento do próprio poder.
Essa tensão é explosiva a partir do momento em que contribui para que nos imaginemos como sujeitos autárquicos, inclinados sobre nossos instrumentos, que se presume que nos oferecem um domínio maior das coisas e que, ao mesmo tempo, liberam a expressão permanente de nossos ressentimentos. Esta seria “a era do indivíduo tirânico”: o advento de uma condição civilizatória inédita que nos mostra a abolição progressiva de qualquer limiar comum para abrir passagem a um formigueiro de seres que acreditam que foram a tal ponto enganados e traídos que se remetem unicamente à sua percepção das coisas.
Contudo, em relação aos livros anteriores, algo mudou em sua abordagem a respeito da relação entre tecnologia e sociedade. Agora, aborda muito mais a relação entre sociedade e tecnologia, nesta ordem.
Em duas décadas, vivemos uma completa inversão de nossa percepção das tecnologias digitais. De um entusiasmo inicial, passou-se a uma consciência marcada pela desilusão. Mas entre os dois momentos houve um ponto intermediário. Foi um período em que se jogou o essencial. Trata-se do fato de que, em início dos anos 2010, apareceram sistemas que começaram a tomar conta de nossas existências e que eram dotados de capacidades interpretativas, bem como da faculdade de nos fazer sugestões de todos os tipos.
Primeiro, tiveram finalidades comerciais, apontando-nos, ao longo de nossos trajetos cotidianos, quais eram os produtos ou serviços que presumiam adaptados a cada um de nós. Depois, tomaram conta de nossa existência com o objetivo de hiperotimizar diversos setores da sociedade. Penso, por exemplo, no mundo da logística, em que vemos como aqueles que trabalham recebem sinais que lhes ordenam quais gestos devem executar.
Este é o fato nodal cuja natureza analisei ao longo de todos os meus livros, bem como a extensão de seus efeitos. No entanto, ainda não o vemos completamente, e considero que continuamos sem vê-lo bem, dado que nossa preocupação segue girando em torno da violação de nossa vida privada, com total indiferença a respeito dos processos de negação da subjetividade que regem dentro de uma grande quantidade de setores da nossa sociedade. Ficamos alarmados porque somos objeto de uma vigilância digital por parte dos Estados, quando na verdade somos bem menos vigiados do que no pico que significaram os anos 2012-2013, momento das revelações de Snowden.
Como é isso?
Denunciamos o 5G, embora não constitua mais do que uma etapa complementar de um longo processo em curso. O essencial deveria ter sido visto quando ainda podíamos ter agido. Hoje, em muitos setores, já é tarde demais.
Após ter desenvolvido amplamente essas análises, para mim, tinha chegado o momento não só de elaborar uma crítica ao tecnoliberalismo, mas também de inverter a lente focal, de algum modo, e captar os efeitos do uso cada vez mais assíduo das tecnologias digitais sobre nossas psiques.
Jacques Ellul, em seu livro de 1954, referia-se à técnica como o desafio do século. Para você, em uma de suas últimas obras, já em outro século, o desafio se refere à inteligência artificial. Agora, considerando 'La era del individuo tirano', o desafio também parece assumir formas sociais e políticas associadas a certas tecnologias.
Desde o início dos anos 2010, repete-se constantemente que estaríamos assistindo a uma ascensão dos populismos. Esta grade de leitura não me parece apropriada para analisar fenômenos que são inéditos. Porque quem diz populismo presume, a princípio, aspirações comuns e promessas enunciadas por figuras fortes e que recebem a aprovação das multidões. Ora, hoje nos deparamos com o advento de uma nova condição do indivíduo contemporâneo.
Por suas feridas, e em um momento da história em que sente o peso, década após década, de um grande acúmulo de experiências que culminaram em decepção, a maioria dos indivíduos não acredita mais em nenhum projeto coletivo. Nesse sentido, as iras atuais bebem menos nas causas ideológicas do que nos afetos subjetivos, que se expressam pelo smartphone na mão e a pretensão de, agora em diante, negar a quem quer que seja que fale em nosso nome.
Esse novo ethos redistribui o baralho do pacto que tradicionalmente opera entre governantes e governados para fazer emergir o que chamo de “estado de ingovernabilidade permanente”, que, na minha opinião, é o que caracteriza de forma mais apropriada a época em que vivemos.
É possível que o neoliberalismo, como modelo de organização psicopolítica das sociedades capitalistas, por sua vez produza tecnologias isomórficas ou adequadas a seus fins?
É que durante os “Trinta Gloriosos”, a indústria elaborou produtos que sustentavam o processo de individualização. Foram o caso do automóvel, do camping, do magnetoscópio e muitas outras técnicas que davam a sensação de viver conforme o próprio capricho. E em fins dos anos 1990, surgiram simultaneamente dois dispositivos que dariam uma dimensão completamente diferente a esse movimento: a internet e o telefone celular. Permitiam maior mobilidade, um acesso ampliado à informação e davam também a ilusão de poder agir ainda mais.
A utopia da emancipação através das redes é uma fábula. Quem poderia acreditar que, por meio de trocas em fóruns online, iríamos nos libertar de nossas alienações? Entretanto, logo se tornou um mito: imaginar que, por usar essas novas técnicas, poderíamos ter mais autonomia e valorizar melhor nosso “capital humano”.
Desculpe a pergunta: por exemplo?
O “i” se tornava célebre em todas as partes, como o iMac, consolidando a doxa do indivíduo autoconstruído. As pessoas retomavam as lógicas neoliberais, mas de modo aparentemente cool e “libertador”. O smartphone ampliou de forma muito rápida o fenômeno ao nos dar a sensação de que tínhamos o mundo ao alcance da mão e que nos tornaríamos ainda mais atores de nossa própria vida.
Em 2006, a revista Time indica “You” como a personalidade do ano. Cada um de nós se transmuta em uma força empreendedora, na medida em que se beneficia das ferramentas digitais. O ciclo se fecha sobre si mesmo: o tecnoliberalismo acabou gerando um liberalismo de si.
Como o virtual, as redes sociais e os smartphones foram capazes de transformar a psicologia dos indivíduos de forma tão rápida?
Este é um ponto capital. Só hoje compreendemos até que ponto modificaram as nossas mentalidades, redefiniram nossos vínculos com os outros e com grande quantidade de marcos que determinavam nossas vidas em comum. A razão é que esses sistemas têm o dom de habilitar uma relação à la carte com a informação, uma construção das próprias narrativas, uma expressividade contínua, assim como uma experiência mais simples do cotidiano.
E para este ponto favoreceram a constituição de um imaginário que se alimenta de uma ilusão de autossuficiência que só pode levar a um distanciamento entre o conjunto comum e a pessoa, concebido dentro de uma esfera própria e situada à margem. Disso segue a experiência de uma cisão que é vivida subjetivamente, mas em escala ampla e compartilhada. É um fenômeno que contribui para instaurar o que chamo de “isolamento coletivo”.
É interessante que para você o digital não contribuiu para a emergência de um “capitalismo de vigilância”, como afirma Shoshana Zuboff.
Porque o que caracteriza a vigilância é a coleta de informação com finalidades relacionadas ao controle disciplinar. Só os Estados recorrem a isso. Para a indústria digital dá no mesmo nos espionar ou não, ao contrário, pretende penetrar em nossos comportamentos, geralmente com o nosso consentimento, com o único objetivo de demarcar perfeitamente o curso de nossa vida cotidiana. Trata-se mais especificamente de um capitalismo da “administração de nosso bem-estar”, dentro do qual não paramos de nos aninhar.
Não é o momento de denunciar apenas os gigantes do digital, isso nos desatrela de nossa parcela de responsabilidade. Também precisamos entender que nossas práticas geraram formas de surdez entre os diferentes componentes do corpo social, principalmente pelo fato da exposição ad nauseam de nossas opiniões nas redes sociais.
A propósito deste ponto, o contexto de emergência das três redes sociais históricas, Facebook, Twitter e Instagram, já demonstra essa tendência à explosão “ad nauseam” da opinião.
Sim, essas redes generalizaram uma relação inflada com o real e com os outros. Tiveram um grande desenvolvimento em fins dos anos 2000, momento em que a maioria das pessoas tinha a sensação de ser inútil e de estar socialmente invisibilizada. Então, uma plataforma permitiu se expor diante dos olhos dos outros e, ao mesmo tempo, receber sinais encantados de aprovação por meio de um polegar para cima. O Facebook funcionava como uma válvula de escape diante de nossas vidas lúgubres e sem margens.
No momento da crise financeira de 2008, que ratificou uma desconfiança talvez definitiva em relação às instituições econômicas e políticas, o Twitter deu voz ao ressentimento e à ira. Fez isso por meio de fórmulas breves que favoreceram a afirmação categórica e que depois levaram a uma brutalização das trocas.
No momento em que a indústria digital se dedicava a mercantilizar a totalidade de nossas vidas, também soube colocar à nossa disposição uma interface destinada a nos forjar uma aura simbólica. O Instagram fez com que fosse operacionalizada uma estilização pública da própria existência em favor de monetizar o próprio poder de recomendação diante dos próprios “seguidores”. Finalmente, essas plataformas só contribuíram para afirmar a primazia de si mesmo, em completa oposição à ficção da “rede social”.
Ao expor as lógicas sexistas, o movimento MeToo incitou muitas pessoas a questionar coisas que não eram debatidas. Contudo, no mesmo movimento não surge uma espécie de denúncia descontrolada que agrava a confusão?
Vivemos o momento de uma grande revanche, habilitada pelas redes sociais, de indivíduos que não querem mais sofrer nada em silêncio. O #Metoo é exatamente isso: há uma ordem injusta que persiste sob a forma de uma norma implícita e que, então, pode ser exposta graças às novas ferramentas. O drama é que após aqueles momentos saudáveis de mobilização, vimos como pessoas eram denunciadas com argumentos ad hominem. Isto provoca fenômenos de manada, pessoas indignadas e que sentem a obrigação de demonstrar empatia, compaixão.
Certamente, há um efeito estimulante em ver como a própria horda de seguidores nos dá um tipo de apoio. Os sofrimentos requerem uma reparação, e semelhantes atos de acusação pública cicatrizam as feridas, ao menos na superfície. Contudo, trazem consigo a ideia de que meu sofrimento é a razão de tudo, ou de que funciona como verdade em detrimento dos procedimentos legais que supostamente nos protegem das lógicas de tipo vendeta.
A crise da covid-19 nos mergulhou em uma intermediação do digital cada vez mais intensa, dentro do que você chama de “telessociabilidade generalizada”. Com quais consequências?
Entramos em uma nova era muito violenta da globalização, a era dos serviços. A crise da covid-19 provou que quase todas as tarefas podem ser feitas online, remotamente. As empresas agora estão inclinadas a abandonar seus escritórios e solicitar trabalhos pontuais. Ofícios que se pensava que não podiam ser terceirizados, como a expertise em informática, o ensino, as tarefas de secretariado, cambaleiam na precariedade e assumem a forma freelance.
É preciso compreender até que ponto essa crise sanitária agravou nosso estado de “isolamento coletivo” pelo fato do advento de uma telessociabilidade cada vez mais integral, de uma sociedade “sem contato” na qual a tela se tornou a principal instância de encontro entre os seres humanos. É isto o que promete o metaverso, viver um número cada vez maior de sequências da vida cotidiana por meio de capacetes de realidade virtual e avatares, e corremos o risco de que em breve nos seja imposto, sem que tenha ocorrido qualquer debate público. Vivemos uma ruptura civilizacional e todas as suas consequências representarão desafios sociais e políticos cruciais desta década.
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“Vivemos uma ruptura civilizatória”. Entrevista com Éric Sadin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU