24 Novembro 2022
“A experiência humana é a categoria e o marco adequado para compreender a subjetividade característica dos fenômenos sociais e pessoais contemporâneos. Frente a uma ciência social exclusivamente preocupada com as situações, os discursos e as identidades, devemos retomar o estudo da experiência porque nos permitirá integrar em uma síntese vital relevante estas três dimensões cruciais: as situações objetivas, os discursos culturais e as identidades sociais”, escreve Eduardo Bericat, professor de sociologia na Universidade de Sevilha e pesquisador das emoções e valores sociais, em artigo publicado por Nueva Revista, 22-11-2022. A tradução é do Cepat.
A história do pensamento demonstra que nossas ideias sobre a realidade mudam radicalmente de uma época para outra. Damos a máxima importância a tudo aquilo que a mentalidade do momento coloca no centro do palco, iluminando-o como “real”. Ao contrário, mal percebemos e valorizamos os elementos que ficam nas sombras, sem protagonismo.
Mas a que âmbito, atualmente, conferimos um estatuto de realidade superior: ao dos fatos objetivos ou ao dos subjetivos? A sociedade moderna se caracterizou por dirigir seu olhar para as coisas do mundo exterior e material, a produção econômica, o controle da natureza, o poder, a tecnologia e o conhecimento científico. No marco desta cultura, o “eu”, a interioridade, a subjetividade e as vivências das pessoas ficaram em segundo plano, ofuscadas pelos grandes desafios da modernidade.
No entanto, já há algumas décadas se observa uma tendência social de retorno à subjetividade. O mundo interior dos indivíduos cada vez adquire mais protagonismo e caminha para se tornar, paradoxalmente, o critério dominante do real. Em muitos casos, a força dos fatos subjetivos da consciência (crenças, desejos, memórias, emoções, valores, identidades, atitudes, vivências, ideologias etc.) excede a dos fatos objetivos do mundo exterior.
Pensadores como Michel Foucault já haviam intuído a importância que a subjetividade passava a adquirir na configuração do homem moderno contemporâneo. Por isso, dedicou seu esforço intelectual ao desenvolvimento de uma história da subjetividade, da Grécia clássica à sociedade moderna, buscando compreender dois fatos fundamentais: que a sexualidade está intimamente ligada à subjetividade, e que os desejos e emoções das pessoas revelam sua verdadeira identidade.
Sendo assim, não surpreende que tenha intitulado um de seus cursos, no Collège de France, como Subjetividade e verdade, e dado uma atenção especial às tecnologias do eu, que definiu como as operações que os indivíduos podem exercer sobre si mesmos, em favor do alcance de certo estado de perfeição, felicidade, pureza ou poder sobrenatural.
O atual retorno da subjetividade comporta, como resultado final, a primazia desta sobre a objetividade, mas requer, como condição necessária, um processo prévio de desvinculação entre ambas, um contexto de enfraquecimento dos vínculos entre o subjetivo e o objetivo, em que as operações do mundo interior, da consciência de si, são cada vez mais independentes do mundo externo, objetivo e material. Nessa perspectiva, o retorno da subjetividade pode ser entendido como um triunfo da liberdade, um projeto de libertação das imposições próprias do princípio de realidade.
Muitas tendências sociais contemporâneas mostram sinais dessa desvinculação e do subsequente predomínio da subjetividade. Por exemplo, a distância existente entre o “comer”, enquanto mera digestão dos alimentos essenciais para o sustento do organismo fisiológico, e a “gastronomia”, como arte culinária a serviço do prazer sensorial. A alimentação deixa de ser mera ingestão material para se tornar uma experiência subjetiva.
Também podemos observar tendências de desvinculação na orientação sexual das pessoas, tradicionalmente determinada pelos genitais do indivíduo. O sentido e a prática da sexualidade estavam indissociavelmente vinculados à reprodução da espécie, uma função que transcende o indivíduo. Hoje, no entanto, ao menos idealmente, cada indivíduo é livre para escolher uma orientação sexual, seguindo o chamado de seus autênticos desejos.
Uma tendência semelhante é observada nas identidades de gênero, imersas atualmente em um clima cultural que luta pela diluição do masculino e do feminino em um neutro indefinido. A identidade de gênero estaria se desvinculando tanto da configuração biológica do organismo quanto das restrições sociais.
A ordem econômica moderna gravitava em torno de meios de produção, forças produtivas, inputs e outputs basicamente materiais. O materialismo histórico de Marx não era a única teoria fundamentada na análise infraestrutural, ou seja, em fatos objetivos e exteriores. Essa marca materialista ainda sobrevive nos meios econômicos atuais, apesar do papel que a subjetividade desempenha em todos os processos produtivos e consumistas. É evidente, por exemplo, hoje, que um vestido, um par de tênis, um celular ou um local de férias devem estar primordialmente vinculados à subjetividade do consumidor.
No âmbito político também encontramos tendências semelhantes. Por exemplo, o fato de que os determinantes tradicionais do voto, como as condições materiais de vida, a renda ou a classe social cada vez expliquem menos o comportamento eleitoral. Fenômenos políticos preocupantes como a polarização, a insatisfação, o pessimismo, a falta de confiança, o ressentimento e as múltiplas identidades que transcendem os bloqueios ideológicos estabelecidos só poderão ser adequadamente compreendidos por meio da análise da subjetividade. Da mesma forma, as crises financeiras de 2008 e da saúde de 2020 demonstraram a importância da gestão política dos sentimentos individuais e das emoções coletivas.
Embora este retorno da subjetividade contenha ecos do movimento romântico, posto que comporta uma inegável revalorização da interioridade do indivíduo, não alimenta o desmedido culto ao eu como entidade absoluta e autônoma. O retorno atual concorda muito mais com o existencialismo de Søren Kierkegaard, cuja pedra angular sustenta que a subjetividade é a verdade. Esta concordância fica muito evidente quando substituímos a ideia de Deus de seu edifício filosófico por qualquer outra crença, fé ou dogma que faça parte do conjunto de deuses que habitam o Olimpo contemporâneo.
Kierkegaard opõe o pensador subjetivo ao pensador objetivo que persegue verdades externas, abstratas e universais. O pensador subjetivo se importa sobretudo com a existência dos seres humanos concretos, pois os indivíduos estão especialmente interessados e afetados pelas vivências de seu particular existir. Kierkegaard não nega que a realidade externa exista, mas sustenta que os fatos objetivos nunca nos determinam, não definem nossas escolhas vitais (desvinculação de subjetivo-objetivo).
Subjetividade é verdade ou, em outras palavras, o que mais importa existencialmente para cada um é a verdade subjetiva. A fé nas crenças que escolhemos define quem somos, marca a nossa identidade. Portanto, para Kierkegaard, a importância que uma ideia tem para um sujeito é um critério de verdade. Toda verdade subjetiva expressa uma íntima concordância existencial com a vida de um indivíduo em particular. Não importando tanto seus conteúdos específicos, mas o compromisso e a apropriação pessoal desses conteúdos pelo sujeito.
É por isso que, segundo Kierkegaard, a intensidade da apropriação, a paixão com a qual o indivíduo vive a sua crença, constitui um sintoma de verdade. Sem paixão, chega a dizer, não há verdade. Esta filosofia existencialista se ajusta como uma luva ao ethos contemporâneo, oferecendo uma perspectiva privilegiada para compreender muitos fenômenos sociais aparentemente paradoxais, ininteligíveis, em uma perspectiva objetivista da realidade.
No caso da juventude, por exemplo, não é possível entender seu exacerbado consumo comunicativo desconsiderando a primazia existencial da subjetividade. Desvinculados das condições e limites objetivos que antes buscavam nas famílias, empregos, municípios, ciência, estados, partidos políticos, religião, ideologias, uniões e grupos de pares, os jovens se encontram imersos em uma perpétua e angustiante busca de identidade. A Internet, as redes sociais, as séries da Netflix, os influencers, o consumo simbólico de produtos de marca e as relações parassociais são imprescindíveis para eles, pois buscam uma verdade subjetiva, concreta e pessoal.
O retorno da subjetividade, iniciado no último terço do século passado, coincide no tempo com a chamada “guinada emocional” das ciências sociais, que legitimou a análise científica dos sentimentos e emoções. As realidades subjetivas não se ajustavam bem com a orientação positivista e objetivista que essas ciências tinham adotado ao imitar as ciências naturais.
Nestes anos, diante dos estudos concentrados na melhoria das condições de vida, no aumento da riqueza e no progresso do bem-estar material, surgiram novos paradigmas preocupados com a qualidade de vida, a felicidade e o bem-estar emocional. Ed Diener, na psicologia, e Ruut Veenhoven, na sociologia, foram pioneiros na aplicação da perspectiva científica ao clássico tema da felicidade, rebatizado como “bem-estar subjetivo”, um termo novo que conferia a seu estudo a necessária pátina de cientificidade.
Apesar do progresso social experimentado, tornou-se cada vez mais evidente que a grande promessa da modernidade, ou seja, a conquista da maior felicidade para o maior número de pessoas, segundo a expressão do utilitarista Jeremy Bentham, era uma meta inatingível. Dois séculos depois, os níveis de sofrimento, insatisfação com a vida e infelicidade permanecem intoleravelmente altos. O mundo feliz parece suspenso inclusive em países mais avançados e ricos. As sociedades desenvolvidas geram seus próprios cavaleiros do apocalipse, como, por exemplo, as pandemias emocionais de solidão, depressão, ansiedade, tédio, ódio, estresse, falta de respeito, medo e falta de sentido.
Quando os aumentos do PIB não parecem garantir aumentos paralelos no bem-estar emocional da população (outra desvinculação), o estudo científico do bem-estar subjetivo se torna um instrumento fundamental para a avaliação do desempenho de nossas sociedades. Só assim poderemos saber se faz sentido continuar fomentando cegamente o crescimento econômico, e o progresso objetivo e material, à custa da destruição da natureza e da deterioração de nossa felicidade. Nessa perspectiva, é evidente que a felicidade constitui um output social.
Para além da incidência que os fatores psicobiológicos têm sobre o bem-estar subjetivo das pessoas, sabemos que todas as estruturas, processos e dinâmicas sociais acabam tendo consequências nos estados emocionais dos indivíduos. Nesse sentido, a subjetividade opera como um sumidouro individual no qual desembocam os escoamentos sociais. Daí a necessidade de analisar as estruturas afetivas e as dinâmicas emocionais que povoam o mundo interior, pois nelas ficam registradas, como em um delicado sismógrafo, a marca de todos os processos e lógicas sociais.
A análise do bem-estar subjetivo é indispensável em sociedades que continuam profundamente desiguais. Está demonstrado que as desigualdades deixam uma marca indelével no bem-estar emocional dos indivíduos. A felicidade não constitui um output que afeta uniformemente toda a população, mas um output específico que reflete a situação social de cada pessoa em particular.
Nas últimas quatro décadas, a nova ciência da felicidade avançou muito na análise dos efeitos que as diferentes características sociais têm sobre o bem-estar subjetivo. A quantidade e a qualidade das relações sociais, o nível de renda, o desemprego, o divórcio, a viuvez, o gênero, a idade, o estado de saúde, a solidão, a educação, a saúde mental, as deficiências físicas, a pobreza, a vulnerabilidade, a marginalização, trabalhar como autônomo, ser dona de casa, ser imigrante , a posição de classe, o status social, o respeito com que tratam você e, enfim, o sentido da vida são algumas entre outras muitas características pesquisadas que demonstram estar correlacionadas com o bem-estar emocional. No livro Excluidos de la felicidad, busquei contribuir para o estudo da estratificação social do bem-estar subjetivo na Espanha, mostrando as lógicas sociais do sofrimento, do mal-estar emocional e a infelicidade.
Após ressaltar que o estudo do bem-estar emocional é hoje mais necessário do que nunca e reconhecer os indubitáveis avanços que a ciência social alcançou neste campo, nas últimas décadas, gostaríamos de alertar agora que tanto a forma como medimos o bem-estar subjetivo, quanto os discursos sociais que circulam sobre o bem-estar emocional, sustentam e ao mesmo tempo reforçam uma concepção coisificada da felicidade.
O modelo de medição majoritariamente utilizado pelas ciências sociais consiste em uma escala monotônica, de zero a dez, baseada em uma única pergunta de questionário. Os três formatos mais comuns (escala de satisfação com a vida, escala de felicidade e escada de Cantril) transmitem a ideia de que a felicidade é “algo”, uma coisa que o indivíduo possui em certo grau ou quantidade.
No entanto, como bem apontaram Emilio Lledó, Émile Durkheim e Arthur Schopenhauer, entre muitos outros, a felicidade é um estado de espírito que emerge da relação entre a vida possível e a vida real, ou seja, da tensão experimentada pelo sujeito nos jogos de possibilidade e realidade. Em suma, as ciências sociais medem a felicidade por meio de uma mera autoavaliação cognitiva do bem-estar subjetivo do indivíduo.
Modelos de medição alternativos, como os baseados no conceito aristotélico de eudemonia ou em estruturas multidimensionais de estados afetivos, continuam sendo pouco utilizados. Paradoxalmente, mesmo quando proclamamos que a felicidade é muito mais importante do que o dinheiro, a verdade é que nossas sociedades utilizam um descomunal dispositivo estatístico para medir a riqueza, mas uma única variável de questionário para medir a felicidade.
O processo de coisificação também é evidente nos discursos atuais sobre a felicidade, inspirados em um padrão estritamente individualista. A “psicologia positiva” auspiciada por Martin Seligman e a multiplicidade de ofertas psicoterapêuticas que hoje são oferecidas no mercado emocional conseguiram suscitar uma grande indústria da felicidade dedicada à autoprodução e venda desse sentimento. Assistimos a uma clara mercantilização das tecnologias do eu, conforme foram definidas por Foucault.
A psicologia positiva possui um duplo sentido. Primeiro, porque supostamente se baseia em uma ciência objetiva da felicidade e, segundo, porque sustenta que manter uma atitude positiva e otimista diante da vida é garantia de bem-estar emocional. Ora, pensamos que esses discursos são alienantes porque mascaram a incapacidade de nossas sociedades em oferecer a seus membros um mínimo de satisfação com a vida.
Com efeito, desvinculam a felicidade individual das condições e lógicas sociais, mergulhando no já mencionado processo de desvinculação subjetivo-objetivo. Responsabilizam exclusivamente o indivíduo por seu infortúnio, acusando-o de ser o único culpado por seu mal-estar emocional. Em suma, esses discursos positivos prometem e promovem a busca puramente individualista de uma versão egocêntrica e coisificada da felicidade.
A coisificação e descontextualização da felicidade fazem pensar que o bem-estar emocional constitui uma realidade absoluta, o bem supremo que devemos alcançar em todos os momentos. Se isso fosse verdade, emoções negativas como a tristeza que sentimos pela morte de um ente querido, o medo que nos alerta sobre algum perigo, o tédio que impulsiona nossa criatividade e a vergonha que nos informa sobre a deterioração de algum vínculo social não teriam sentido. Se a felicidade fosse um bem absoluto, as palavras de John Stuart Mill afirmando que é melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito, que é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito, também não fariam sentido.
Em conclusão, a descontextualização da subjetividade e do bem-estar emocional, causada pela individualização, coisificação e desvinculação subjetivo-objetivo da felicidade, requer uma mudança radical na forma como abordamos o estudo do bem-estar subjetivo. Essa mudança afeta tanto a forma como as ciências sociais estudam o bem-estar emocional quanto a forma como concebemos e refletimos sobre nossa própria felicidade. Para isso, é imprescindível reintegrar a subjetividade e a emoção em seu contexto próprio, ou seja, ao da existência e a vivência, em suma, ao da experiência humana.
Segundo John Dewey, costumamos considerar que as emoções são tão simples e compactas como as palavras que usamos para designá-las, apesar de serem qualidades de uma experiência complexa que evolui e muda. Neste caso, se o bem-estar emocional constitui uma qualidade que emerge de uma determinada experiência, é óbvio que para entendê-lo será necessário primeiro compreender a última.
A experiência humana é a categoria e o marco adequado para compreender a subjetividade característica dos fenômenos sociais e pessoais contemporâneos. Frente a uma ciência social exclusivamente preocupada com as situações, os discursos e as identidades, devemos retomar o estudo da experiência porque nos permitirá integrar em uma síntese vital relevante estas três dimensões cruciais: as situações objetivas, os discursos culturais e as identidades sociais.
A experiência oferece uma perspectiva privilegiada para compreender as subjetividades contemporâneas e, por conseguinte, a felicidade e o bem-estar emocional. Como bem demonstra a obra de Foucault, as relações com o si-mesmo não são independentes das relações de poder, nem das relações de saber.
A análise das experiências humanas nos aproxima da verdade, mas ao mesmo tempo abre as portas para uma autêntica empatia. Somente uma profunda compreensão de nossa experiência, e das experiências alheias, poderá evitar que a almejada busca da felicidade acabe sendo um desafio egocêntrico, ensimesmado, e individualista, uma competição de todos contra todos ao grito de salve quem puder!
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Retorno à subjetividade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU