11 Mai 2020
O cardeal, que chefia a Congregação para o Culto Divino, completa 75 anos de idade em meados de junho.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada em La Croix International, 08-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A pandemia de coronavírus trouxe à tona as grandes contribuições que o catolicismo contemporâneo está fazendo à humanidade e ao mundo.
Infelizmente, você não encontrará muitas delas no campo da liturgia ou da espiritualidade. Ao menos não pelo estímulo de muitos dos ministros ordenados da Igreja.
A estrela-guia do catolicismo neste tempo de crise tem sido as pessoas e organizações que se dedicam explicitamente a promover e a pôr em prática o ensino social da Igreja.
Quase universalmente, eles encontraram maneiras de continuar seu ministério de serviço, alimentando os famintos e dando assistência material aos desabrigados, aos pobres e aos desempregados.
Os católicos inspirados pelo ensino social também têm sido os mais tenazes em defender e atender às necessidades das minorias, presos, imigrantes, refugiados e todos os outros que são mais adversamente afetados pela Covid-19 e pelas medidas disruptivas para impedir a sua propagação.
E, é claro, aqueles que têm dedicado as suas vidas e talentos ao compromisso da Igreja de cuidar dos doentes são hoje corretamente vistos como heróis da sociedade e até como mártires do cristianismo.
Assim, o ensino social da Igreja Católica tem resistido admiravelmente bem à tempestade durante estes tempos estranhos e perturbadores.
Mas, infelizmente, o sistema sacramental da Igreja não tem a mesma resistência. É difícil saber onde colocar a culpa – na nossa teologia litúrgica ou naqueles que administram os sacramentos e lideram a comunidade em oração.
Os bispos não souberam muito o que fazer depois que se tornou impossível, por todas as razões, celebrar a missa diária e dominical como de costume (ou seja, na igreja com uma congregação).
Fora o fato de os padres continuarem dizendo missa para os leigos – seja irresponsavelmente, mediante reuniões “clandestinas” (e ilegais), seja virtualmente, por meio das transmissões de TV ou digitais – quase todos os bispos e muitos padres parecem ter sido pegos desprevenidos.
Podemos ser tentados a pensar na velha piada sobre o fato de se estar “tão perdido quanto um jesuíta na Semana Santa”. Mas é pior que isso. Provavelmente muito pior.
Ter pouco apetite ou aptidão para celebrar liturgias longas e ornamentadas não é nada comparado a não entender ou, pior, a desdenhar o que significa celebrar eucaristicamente – especialmente de acordo com a tradição mais antiga da Igreja cristã.
A reforma litúrgica, que já estava em andamento nas várias décadas anteriores ao Concílio Vaticano II (1962-1965), recuperou e reelaborou essa tradição.
E isso resultou em modificações significativas na missa, que Paulo VI codificou em 1972 com a promulgação de um novo Missal Romano.
Era essencial para esse rito reformado (e continua sendo!) a assembleia reunida – fisicamente presente – e a participação ativa de todos os que fazem parte dessa assembleia.
Lamentavelmente, porém, várias noções pré-Vaticano II sobre a Eucaristia permaneceram iguais após a reforma.
Algumas se baseiam nos conceitos de forma e matéria, que podem acabar tornando a celebração dos sacramentos minimalista e legalista.
Por exemplo, quando um presbítero validamente ordenado prepara licitamente os elementos do pão e do vinho usando a fórmula apropriada (as palavras de instituição e invocação do Espírito Santo) e consome esses elementos, isso é considerado uma Eucaristia válida.
A presença da assembleia pode ser desejável, mas não é necessária. A prática dos padres celebrando missas “privadas” sozinhos ou com a ajuda de um coroinha não é uma relíquia da Idade Média. É algo que continua ainda hoje.
Essa é uma visão redutiva do sacramento. E é clericalista.
Apesar das tentativas do Papa Francisco de livrar a Igreja do clericalismo, ele continua vivo e atuante, especialmente em alguns setores do Vaticano.
A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos pode não ser a pior, mas seu prefeito – o cardeal Robert Sarah – certamente tem uma visão clericalista da ordenação e da liturgia.
Ele emitiu dois decretos – “Em tempo de Covid-19” (19 e 25 de março) – que instruem os bispos e os padres sobre como e onde celebrar a Semana Santa e as liturgias da Páscoa, o que deve ser incluído ou omitido.
Como observou Andrea Grillo, um leigo que leciona liturgia no Pontifício Instituto Litúrgico (Santo Anselmo, em Roma):
“É como se se interpretasse a ‘comunidade sacerdotal’ – que a Lumen gentium 11 [a Constituição do Vaticano II sobre a Igreja] usa para definir a Igreja na sua identidade abrangente de corpo de Cristo – referindo-se apenas à comunidade dos clérigos. Mas a comunidade sacerdotal da qual a Lumen gentium fala é a comunidade eclesial de todos os batizados, não a comunidade dos clérigos... (A Congregação) parece considerar o problema do Tríduo Pascal quase exclusivamente como o das ‘práticas rituais possíveis (ou impossíveis) aos clérigos’. Os ‘não clérigos’ são evidentemente uma categoria residual.”
Um tipo semelhante de lógica clericalista pré-Vaticano II está sendo usada agora mais uma vez enquanto os bispos em lugares onde as medidas de confinamento estão sendo relaxadas tentam decidir como retomar as liturgias públicas.
Existem protocolos rigorosos decretados pelo governo que devem ser seguidos para impedir a disseminação do coronavírus. Eles se preocupam principalmente em garantir o distanciamento social e a boa higiene.
Aqui na Itália, assim como em muitos outros lugares, isso significa que apenas um número limitado de pessoas será permitido ao mesmo tempo dentro das igrejas. Elas terão que usar máscaras faciais e usar desinfetante para as mãos ao entrarem na igreja.
Então, os guardas do templo da Covid-19 farão com que os fiéis estejam suficientemente afastados para cumprir as regulamentações governamentais. As pessoas não receberão nenhum livro ou folheto.
Aparentemente, não haverá cantos. Isso impulsiona os germes, e os germes são contagiosos.
No entanto, muitos bispos e clericalistas – entre eles muitos leigos também – parecem se deleitar com o retorno à missa, sejam quais forem os custos ou os inconvenientes.
Mas Grillo não.
Ele argumenta que celebrar a liturgia, especialmente a Eucaristia, não é apenas um exercício da liberdade religiosa, mas sim uma expressão da fé eclesial. E pelo menos três dimensões dela devem ser consideradas com mais cuidado ao reabrirmos as igrejas para o culto.
Acima de tudo, “a missa é constitutivamente contagiosa”, pois envolve contato físico e reunião física.
“As distâncias se encurtam, as mãos se entrelaçam, a partilha do mesmo pão e do mesmo cálice, o canto comum...”, ele observa.
Em essência, no verdadeiro sentido da liturgia católica, os fiéis se reúnem, e não se afastam nem se distanciam.
Em segundo lugar, “a missa é puramente gratuita”.
O que isso significa quando as pessoas têm que reservar um lugar na missa ou têm que participar de uma missa pré-determinada, talvez até por meio de um sorteio, como alguns estão propondo?
“Uma missa ‘com pré-reserva’ é uma contradição em termos”, diz Grillo.
“A gratuidade do agir eucarístico não permite nem ‘reservar lugares’, nem multiplicar as ‘corridas’ para aumentar os passageiros. A missa não é um metrô que passa a cada três minutos”, diz ele, precisamente porque você não forma uma comunidade no metrô.
E, por fim, “a missa é localmente enraizada”.
Isso significa que os protocolos devem reconhecer que alguns locais livres do vírus não deveriam ser forçados a seguir as medidas idênticas necessariamente impostas àqueles que ainda apresentam muitas infecções.
Grillo é hoje um dos liturgistas mais brilhantes e mais sensatos do pós-Vaticano II na Igreja Católica. Ele também é um dos poucos que tem coragem o suficiente para denunciar as tendências neotridentinas exibidas por padres, bispos e até mesmo papas.
O cardeal Sarah completa 75 anos de idade no dia 15 de junho e terá sido chefe da Congregação para o Culto Divino por quase seis anos. Já deveria estar na hora de ele se aposentar.
Isso não vai acontecer, mas, em um momento de delírio pós-confinamento, é bom sonhar que o Papa Francisco nomeará um não clérigo – Andrea Grillo – como novo prefeito.
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Cardeal Sarah está prestes a se aposentar: e se um leigo assumisse o seu lugar? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU