08 Mai 2020
O Estado tem todo o direito de considerar a missa uma “cerimônia pública”; mas a comunidade cristã deveria, acima de tudo, preservar a qualidade comunitária da própria reunião.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 07-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma tia-avó minha, idosa, mas de indiscutível sabedoria, costumava dizer que a primeira coisa que ela fazia aos domingos, ao voltar da missa, era lavar as mãos, por ter tocado as mãos de diversos desconhecidos no sinal da paz.
Toda vez que ouço repetirem as “normativas dos cuidados de saúde” – que, desde o início de março, são repetidas por todos os canais de comunicação civil – penso novamente na minha tia-avó e na sua profecia da desconfiança. Não só na grande Igreja, mas também nas nossas pequenas Igrejas domésticas, temos inoxidáveis profetas da desventura infortúnio, que sempre fizeram da distância, do asseio e da máscara um “sacramento”.
Por que começo com a tia-avó “higienista”? Porque a recordação dela e das suas “fixações” nos é útil para considerarmos o dissídio no qual todos caímos, a partir do momento em que, por causa do “distanciamento imposto” e da “proibição de aglomeração” que a autoridade sanitária e pública dispôs em nível nacional, demo-nos conta de que entramos em um grave dissídio.
Tal dissídio afeta plenamente o “culto cristão”, porque o deforma, o emudece, o marginaliza, o silencia, o deprecia. Mas nos é útil nos deter por um momento em uma reflexão que eu gostaria de propor em três momentos. Após uma passagem preliminar, de exame da realidade que nos investiu, tento distinguir as questões “formais” das questões “substanciais”. Porque uma coisa é a “garantia da liberdade de culto”, outra é “o que fazer com a liberdade garantida”.
Como a doença mortal é transmitida “por contato”, e vemos os seus efeitos devastadores em tantos irmãos e irmãs, todas as formas de tato relevantes publicamente são alteradas: nenhuma verdadeira proximidade, a mão protegida pela luva e sempre “higienizada”, o rosto coberto pela máscara. A proxêmica do espaço, o tato da mão e o olhar do rosto e sobre o rosto são bloqueados, censurados, impedidos.
Esse “bloqueio do contato” age em todo o lugar que não seja a “casa privada”. A “clausura” define de modo muito mais claro do que de costume uma diferença entre “âmbito público” – sujeito a uma lei não negociável – e “âmbito privado”, que continua – do lado de cá do limiar – a gerenciar proximidade, intimidade, tato, abraço, beijo: pode-se reconhecer o rosto alheio e pode-se mostrar o próprio rosto despudoradamente nu.
O fato culturalmente mais relevante, pelo menos para gerir corretamente o problema eclesial, é que o “estado de exceção” aprofunda radicalmente a diferença público/privado, quase anulando totalmente os “espaços intermediários”, nos quais se cultivava um “não privado”, que, no entanto, permanecia “não público”. São os lugares da “gratuidade social”, que hoje são todos sugados pela emergência pública.
Por assim dizer: tudo o que não é privado se torna “ex lege” público. E a Igreja, todas as igrejas, recaem nessa redução de emergência e são sugadas nesse turbilhão do anonimato.
É notável o fato de que, pelo menos em primeira instância, uma parte da Igreja soube responder a esse desafio mantendo-se rigorosamente no mesmo nível. De fato, se eu contraponho à lógica da emergência, que elimina a mediação comunitária entre privado e público, o “meu direito à liberdade de culto”, aceito permanecer no nível formal.
Levanto uma questão que diz respeito a “sujeitos individuais”, cujos direitos seriam (eventualmente) violados. De mim, padre, que não posso exercer o “direito de dizer missa”. De mim, não padre, que não posso exercer o “direito de ir à missa”. A resposta é de “privados” diante da “lei pública”. Não importa se, a esse propósito, até mesmo homens políticos, cuja fé é bem conhecida há séculos, se prestaram a defender os direitos violados pelo tirano.
Resta o fato de que a resposta em termos de “liberdade de culto” – por mais que possa ser justificada – implica uma consideração meramente formal do próprio culto. E corre o risco de reduzir a questão à possibilidade que pode ser reservada ao sujeito individual – ministro ou simples fiel – de exercer um “direito” que pertence ao próprio sujeito. Defendemos a fé privatizando-a e publicizando-a, mas ignorando o perfil comunitário, do qual ela vive.
A verdadeira questão diz respeito não apenas à forma, mas também à substância do culto cristão. De fato, se aceitarmos reduzir a questão do culto aos direitos dos sujeitos que a levantam ou que o fruem, ficamos imediatamente presos em uma má teologia: uma consideração meramente “formal” – jurídica ou administrativa – do culto cristão corre o risco de falseá-lo irremediavelmente.
Tentemos examinar melhor esse perfil, em uma série de pontos:
a) Se a missa é reconhecida como “ação da comunidade sacerdotal” – composta por todos os batizados que se reúnem sob a presidência do presbítero/pároco – ela constitutivamente tem um caráter comunitário e, por isso, se enquadra no âmbito das normativas comuns a todos os espaços públicos.
Somente se a pensarmos como “ato do padre” ao qual “assiste” –adequadamente distanciados, isolados e protegidos – um número máximo de fiéis é que podemos seguir em frente e realizar atos que inevitavelmente contradizem o que se faz.
O Estado tem todo o direito de considerar a missa uma “cerimônia pública”; mas a comunidade cristã deveria, acima de tudo, preservar a qualidade comunitária da própria reunião.
b) A missa é lugar de contato, de reconhecimento, de proximidade: a mão enluvada, o rosto encoberto e a distância “de segurança” são formas corpóreas de contratestemunho simbólico, pois falam de desconfiança, não confiança. Elas podem ser suportadas, mesmo que com dificuldade, apenas para “ritos de passagem”, não para “ritos de estruturação comunitária”.
Não por acaso, os funerais, ou eventualmente os matrimônios, podem suportar as limitações formais, porque estão inseridos em percursos vitais irreversíveis e tendencialmente não procrastináveis.
Uma coisa são os funerais, outra coisa é a celebração eucarística: a clara diferença entre um rito necessário em vista de outra coisa (como o funeral) e um rito gratuito, que é um fim em si mesmo (como a missa), deveria ajudar não apenas a compreender, mas também a providenciar soluções mais equilibradas.
c) A Igreja Católica sabe que encontra no culto, ao mesmo tempo, o ápice e a fonte de toda a sua ação. Em um longo percurso de reflexão e de experiência, que começa no início do século XX, a tradição eclesial começou a recuperar a “dimensão comunitária” do culto. Esse também é o fruto dos traumas que duas guerras mundiais trouxeram às vidas.
Mas tudo isso ocorreu muito lentamente, contra dois “inimigos” que permanecem sempre à espreita e que são a captura privada e a captura pública do culto. Se reduzirmos o culto a devoção privada ou a “função institucional”, caímos em contradição com a nossa história mais alta dos últimos 100 anos.
E aqui devemos dizer: há 100 anos, começamos a ver melhor aquilo que hoje podemos preservar! O culto vem antes tanto da sua versão privada, quanto da sua versão pública: ele vive da comunhão comunitária, da intimidade do contato, do reconhecimento do olhar, do contato direto – de palavras e de refeição – da Igreja com o seu Senhor.
d) As nossas linguagens são velhas: e o seu atraso emerge precisamente “in extremis”. Assim que a “pandemia” chegou, a comunicação eclesial como que enlouqueceu. Comunicamos “oficialmente” que o papa teria “celebrado em forma privada” (qual contradição nos piores termos poderia ser inventada?).
Enfatizamos a autossuficiência do padre em relação à missa; fizemos normativas “sobre o culto” que diziam respeito apenas aos ministros, não ao povo. Assim, descobrimos que temos, precisamente no coração das nossas instituições, aquilo que nos imuniza de uma leitura verdadeira e comunitária do culto.
Por um lado, é fácil pensar, ainda hoje, que toda a liturgia ainda é simplesmente “ofício eclesiástico”. Por outro, pode-se ler, no fim do Código de Direito Canônico, que toda a estrutura jurídica tem, como “lex suprema”, a “salus animarum”.
Precisamente aí, nesse “salto mortal” entre público e privado, está o curto-circuito que vivemos hoje de modo traumático. O sujeito da salvação – como disse Guardini ainda em 1918 – não é a alma, mas sim o ser humano. Pelo menos no culto, não podemos nos virar “saltando” do público ao privado, da cerimônia à alma. Ou elaboramos uma estratégia “de comunidade” ou não saímos disso.
e) Por isso, uma liturgia “de número limitado” continua sendo uma contradição em termos: só pode ser suportável se um “rito de passagem” tiver a sua própria razão fora de si. Mas, quando a Igreja se reúne para celebrar a sua própria intimidade com o Senhor, ela pode fazer isso somente sob certas condições. Se as condições não existem, a Igreja deve falar e fazer experiência nos únicos lugares onde ainda se dá uma intimidade e uma gratuidade da experiência e da expressão: ou seja, nas casas. Que, com os seus limites “privados’, satisfazem apenas algumas das condições de vida da Igreja, mas pelo menos não a contradizem.
f) Aqui, por fim, acrescento uma última questão delicada, que diz respeito à vida “celibatária” dos ministros ordenados. A clausura civil evidencia um aspecto dessa vida que hoje se tornou muito relevante. A vida celibatária é uma vida “sem casa”. Uma vida que, profeticamente, faz da comunidade cristã a sua própria casa.
Mas as condições de pandemia violentam profundamente essa vocação: pois transformam a comunidade em espaço público, subtraindo dos padres a sua casa. Isso justifica, pelo menos em parte, algumas reações “afetivas” projetadas sobre a vida “confinada”.
Obviamente, isso parece diferente para aqueles padres que, com uma lógica nova, aceitaram há muito tempo “viver juntos”. Para eles, há também a casa da comunidade presbiteral. Mesmo nessas casas, uma possibilidade pode ser que o jejum eucarístico da Igreja corresponda a uma escolha dos próprios ministros. Que podem ser consolados pela palavra proclamada e pela palavra rezada. Lugar de presença e lugar de salus animarum et corporum, sobre o qual a comunidade pode florescer.
Por enquanto, ela poderá fazer isso nas “casas”, para voltar em breve à “casa do Senhor”, com um novo e mais explícito desejo de palavras e de refeição, para que o coração arda e os olhos reconheçam. E o corpo ressuscitado do Senhor se torne visível na comunidade daqueles que fazem do amor a sua lei.
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O sacramento da máscara: forma e conteúdo do culto cristão. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU