Quando a pandemia do coronavírus, depois de ter percorrido o seu trajeto, desaparecer do nosso horizonte, será útil, com base nas lições que ele nos impuser, redefinir as nossas prioridades nas agendas políticas e sociais.
A opinião é de Moni Ovadia, ator, músico e cantor italiano, em artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 13-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Eu dediquei toda a minha vida a me comprometer com o máximo de honestidade intelectual e de coerência possível para me rebelar contra as injustiças e os abusos. Eu sempre fiquei do lado dos últimos, dos explorados, dos assediados, dos discriminados e combati com todas as minhas forças contra as desigualdades geradas pela lógica do privilégio, fonte de toda depravação e crime em qualquer sociedade digna do atributo de civil.
Mesmo daquelas autodenominadas democratas, porque, onde não vigora o princípio da igualdade, não existe nem democracia nem liberdade. Nestes dias em que grande parte do mundo é afetado pela pandemia do coronavírus, e a Itália sofre isso com uma virulência particular, como milhões de outros italianos, eu fico em casa em quarentena, com disciplina, mantenho a distância recomendada até mesmo com os meus familiares, não saio de casa, cumpro as disposições emitidas pelo governo, porque, mesmo sendo “antigoverno” por vocação, mesmo em relação aos governos nos quais votei, eu pratico o princípio da máxima responsabilidade.
É uma atitude paradoxal, mas salvífica para quem pratica a profissão da cultura e do pensamento. Nesta ocasião tão dramática, como cidadão, quis dar plena confiança ao governo Conte [primeiro-ministro italiano], confiando na equidade das suas medidas. Depois, descubro que, no decreto ministerial referente às atividades produtivas, no ponto 6, alínea “d”, está escrito: assumam protocolos de segurança anticontágio e, onde não for possível respeitar a distância interpessoal de um metro como principal medida de contenção, com a adoção de instrumentos de proteção individuais.
Quais? As máscaras que não existem? Ou que são vendidas a preços de mercado ilegal por patifes que especulam sobre o pânico? E isso depois de dizer urbi et orbi que a função da máscara não é a de proteger do contágio, mas sim a de proteger aqueles que trabalham em estreito contato com os contagiados?
Por que só os operários podem ficar desprotegidos ou menos protegidos? Por que o pensamento ao direito a estar protegido do contágio não se estende automaticamente aos operários? Por que são necessários protestos, greves e duras declarações sindicais para que a questão entre na pauta do dia?
Porque a classe operária é tratada como a casta dos párias, a classe que é a espinha dorsal da economia produtiva, assim como, agora que a logística assume uma importância crucial, os trabalhadores superproletarizados desse setor que são explorados com ritmos e condições indecentes.
E agora que todo o país precisa ser realmente posto sob segurança, mais uma vez os últimos aos quais se pensa em estender o direito à segurança no local de trabalho são os trabalhadores industriais. A classe operária foi e é um dos pilares instituintes de toda grande democracia, a sua cultura baseada no trabalho não só como meio de sustento, mas também como condição da dignidade pessoal e social inervou as conquistas mais significativas das sociedades mais avançadas.
Recentemente, o professor Claudio Magris me contava que havia visitado as lendárias fábricas de aço de Lenin em Gdansk, hoje transformadas em um museu do Solidarnosc, o movimento sindical e político que, na Polônia, contribuiu para derrubar o regime do chamado socialismo real.
O grande escritor triestino expressou-se assim sobre o que pôde constatar durante aquela visita: “Eu vi plasticamente o crepúsculo da classe operária. E é uma catástrofe, porque foi a única classe, como tal, portadora do universal”.
Quando a pandemia do coronavírus, depois de ter percorrido o seu trajeto, desaparecer do nosso horizonte, será útil, com base nas lições que ele nos impuser, redefinir as nossas prioridades nas agendas políticas e sociais.
Deveremos reaprender a construir sociedades e comunidades, deveremos reaprender a respeitar os valores que nos enraízam em uma identidade democrática substancial, não em uma retórica da democracia que flutua sobre o caos das opiniões, no magma dos narcisismos contrapostos de uma classe dominante medíocre e sem autoridade.
Será necessário reaprender o respeito por aqueles que edificam e não por aqueles que fazem barulho, e a classe operária é a força edificante que pertence à centralidade democrática.
Em conclusão, permitam-me fazer uma última pergunta: o que 30 mil militares estadunidenses, totalmente armados e movendo-se sem precauções, estão fazendo na Itália e em toda a Europa neste momento? Eu respondo por conta própria, com uma mensagem de WhatsApp que recebi: a China nos envia 1.000 respiradores e 100.000 máscaras; a União Europeia, um boleto de 100 bilhões para os seus bancos; os EUA, 30 mil fuzileiros navais em formação de guerra. Talvez devêssemos rever as nossas “amizades”.
Leia mais
- Diante do Covid-19, como ficam os trabalhadores informais?
- O que o coronavírus tem a ver com as mudanças climáticas?
- Um vírus inteligente, mas agora é preciso descobrir todos os seus pontos fracos
- “Como cientista, eu peço: cancelem todas as missas”
- Clausura sanitária e abertura simbólica. Uma igreja aberta na cidade fechada?
- Nenhuma pandemia cancela as desigualdades de riqueza
- Coronavírus falirá mais pessoas do que as matará: e essa é a verdadeira emergência global
- Coronavírus, o WWF: a destruição de ecossistemas é uma ameaça à nossa saúde
- Roma vazia. A dramática visita do Papa Francisco para rezar pelo fim do vírus
- Deus ainda está presente na Itália, mais esperado do que acreditado
- Em meio à pandemia de coronavírus, Brasil enfrenta “desertos” de UTIs
- Coronavírus: Médicos podem ter de fazer 'escolha de Sofia' por quem vai viver na Itália
- Coronavírus, distanciamento social e a companhia da fé. Artigo de Massimo Faggioli
- Mundo em suspenso: o coronavírus, a incerteza e o invisível
- Campos de refugiados estão preparados para o coronavírus?
- “Enfrentar o coronavírus significa fortalecer o SUS e o trabalho dos profissionais de saúde”. Entrevista com Victor Grabois
- Mudar a política econômica e fortalecer o SUS são medidas corretas para combater coronavírus
- Pandemia em tempos de Antropoceno. Coronavírus pode nos ensinar a enfrentar a verdadeira emergência: o clima
- Coronavírus contrata o desemprego: é urgente agir!
- Estudo australiano afirma que, no melhor dos casos, coronavírus causaria 15 milhões de mortes
- “Ainda bem que temos o Sistema Único de Saúde”
- Brasil perdeu 'tempo precioso' e precisa 'agir rápido' na guerra contra coronavírus, diz especialista
- Indígenas adiam maior encontro brasileiro por causa do novo coronavírus
- Coronavírus: a hora de debater o Teto dos Gastos
- O coronavírus não é uma nova crise do subprime
- COVID-19, desmundialização e rivalidade estratégica. Artigo de Xulio Ríos
- Coronavírus: uma represália de Gaia, da Mãe Terra?
- Do coronavírus ao climatovírus, ou como manter (um pouco) o espírito crítico sem ser um péssimo cidadão
- É impensável que uma vacina contra o coronavírus esteja pronta em menos de 1-3 anos
- Qual é a real periculosidade do coronavírus? Artigo de Michael Agliardo, jesuíta e sociólogo
- Objetivo, agora, deve ser frear velocidade de contágio do coronavírus
- Coronavírus, os EUA procuram voluntários para testar a possível vacina: “1100 dólares para entrar na história”
- A ética em tempos de Coronavírus
- “O coronavírus é um sintoma da hipermodernidade”. Entrevista com Gilles Lipovetsky
- Coronavírus, a oração leiga do trabalhador: “Na fábrica me sinto em uma armadilha”
- Coronavírus, o Papa não esquece “seus” pobres. Krajewski: “Nós os ajudamos com inteligência evangélica, de acordo com as normas”
- Igrejas estrangeiras e coronavírus, entre boas práticas e atitudes inconsistentes
- O vírus do autoritarismo e da desigualdade
- China. Uma epidemia de desconfiança
- Quanto realmente custa nos EUA um teste para o coronavírus?
- Covid-19. A fotografia da enfermeira italiana que adormeceu exausta a uma hora do final do turno
- Da “Peste” de Camus ao coronavírus, aqui estão as metáforas de nossa precariedade
- O coronavírus e o “jejum de missa” na Quaresma
- Epidemia global de coronavírus: não é o momento para jogos políticos mesquinhos
- O relato oficial do coronavírus oculta uma crise sistêmica. Artigo de Joan Benach
- O coronavírus e os filósofos
- “Ciência não se faz sem recursos”, diz cientista que mapeou o coronavírus
- Surto de coronavírus é reflexo da degradação ambiental, afirma PNUMA
- A pandemia de Coronavírus (Covid-19) e o pandemônio na economia internacional
- O rei está nu. Assim, um vírus colocou em crise o modelo de negócios global. Por onde recomeçar?
- Economia global em quarentena
- A crise mostra a fragilidade do liberalismo. É hora de recomeçar pela solidariedade
- O coronavírus na economia brasileira e o fim do voo de galinha
- O vírus do medo
- Quando Milão se torna o laboratório da nova solidão
- A quarentena total da Itália
- Surto de coronavírus é reflexo da degradação ambiental, afirma PNUMA
- EUA. É preciso escolher: Medicare para Todos ou coronavírus para todos?
- Preservação ambiental é a chave para a contenção de doenças
- Coronavírus: a anestesiologista que diagnosticou o paciente número 1 na Itália
- Lições virais da China. Artigo de Yann Moulier Boutang e Monique Selim
- O coronavírus e a questão ambiental
- O retorno de doenças vetoriais é sintoma de políticas públicas não integradas. Entrevista especial com Marcia Chame
- Disseminação de informações falsas (fake news) sobre coronavírus preocupa especialistas
- O inimigo invisível
- O aval da ciência
- A cientista e o coronavírus: “Desta vez todos estamos nos movendo em um território desconhecido”
- “Antigamente contra epidemias se rezava, hoje se fecham as igrejas”. Entrevista com Franco Cardini, historiador
- Coronavírus. Vaticano registra primeiro caso
- Coronavírus: atmosfera de dúvida e medo leva a cancelar eventos em Roma
- Coronavírus über alles
- Zizek vê o poder subversivo do Coronavírus
- Coronavírus, agronegócio e estado de exceção
- África, o continente que não chora. “Bem-aventurados vocês que só têm o coronavírus”
- A política do coronavírus: ativar os anticorpos do catolicismo. Artigo de Antonio Spadaro
- Os partidos e o vírus: a biopolítica no poder
- Coronavírus? “No Vaticano, os vírus são outros...”
- Coronavírus: a militarização das crises. Artigo de Raúl Zibechi
- “Em epidemias como o coronavírus, repete-se um padrão de discurso tóxico e depreciativo”. Entrevista com Adia Benton
- Morre por coronavírus o ex-embaixador iraniano no Vaticano
- Veja as dicas da OMS para evitar o contágio e a disseminação do novo coronavírus
- O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada. Artigo de Giorgio Agamben
- Resistir ao pânico
- O coronavírus mudará a China?
- OMS alerta para 13 ameaças emergentes à saúde, incluindo possíveis pandemias
- O vírus, o imperador e o médico chinês
- A economia chinesa e mundial frente ao coronavírus
- Novo coronavírus. Todas as atenções se voltam para a China
- Vaticano envia máscaras hospitalares para ajudar na batalha contra o coronavírus na China
- Após o surto do coronavírus. Alguns depoimentos
- Racismo psicológico: quando a mente se fecha devido a um vírus. Artigo de Massimo Recalcati
- Vírus novo, medos antigos
- A chinesa e a espanhola
- O primeiro surto
- Coronavírus e o retrato de um ecossistema de desinformação
- Vaticano envia 700.000 máscaras hospitalares para a China
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A classe operária em tempos de coronavírus. Artigo de Moni Ovadia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU