04 Novembro 2018
Em meio às críticas às autoridades eclesiásticas pelos casos de abusos e acobertamentos, vários grupos de leigos católicos começaram a se organizar e preparar propostas de reforma para a instituição.
A reportagem é de Juan Pablo Sallaberry, publicada por La Tercera, 01-11-2018. A tradução é de André Langer.
“O edifício está em chamas por causa dos abusos, do acobertamento, da hierarquia que renunciou, e os fundamentos também estão em franca fase de enfraquecimento. Não é possível que o laicato esteja tão passivo e silencioso diante de algo assim; fazemos parte do povo de Deus”. O economista Joseph Ramos fala em caráter de urgência. O ex-decano de Economia da Universidade do Chile deixou a academia e renunciou a todos os seus trabalhos remunerados para se concentrar em escrever e refletir sobre o assunto pelo qual está apaixonado: a religião e a fé.
Em junho passado, ele escreveu, junto com outros leigos importantes, como Alvaro Covarrubias e Jorge Mardones, um documento com propostas sobre as reformas necessárias que a Igreja católica deveria colocar em prática. O informe assinado por 50 personalidades foi entregue ao delegado do Papa Francisco para os casos de abusos no Chile, Charles Scicluna, e enviado a todos os bispos chilenos.
Eles não são os únicos leigos que começaram a se mobilizar e a pensar em soluções de longo prazo para enfrentar na raiz a crise institucional. Silenciosamente, diversos grupos estão elaborando ideias a este respeito. Na Pontifícia Universidade Católica, o reitor Ignacio Sánchez encomendou a uma equipe multidisciplinar, que inclui as faculdades de Ciências Sociais e Comunicação – além dos decanos de História, Medicina, Filosofia e Teologia –, o estudo dos problemas que a Igreja está enfrentando.
“O foco será tentar compreender melhor por que isso aconteceu e quais são as razões pelas quais existe, no Chile, uma proporção maior de padres ou religiosos envolvidos em tais fatos”, assinala Sánchez. O cronograma contempla um primeiro relatório no prazo de um ano e a realização de um fórum sobre abusos sexuais na Igreja a ser realizado no salão nobre da Universidade Católica.
Nos grupos de fiéis há uma ideia recorrente: a participação dos leigos e o fim do clericalismo, a visão do sacerdote como figura de autoridade que intervém nos assuntos políticos.
Acabar com o clericalismo foi a mensagem central do Papa durante a sua visita ao Chile. “A Igreja não é e nunca será uma elite de consagrados, sacerdotes ou bispos. A falta de consciência de pertencer ao povo fiel de Deus como servos, e não como proprietários, pode nos levar a uma das tentações que mais prejudicam o dinamismo missionário: o clericalismo. Sejamos claros: os leigos não são nossos peões ou nossos empregados”, disse o Papa em seu encontro com os bispos na Catedral de Santiago em 16 de janeiro passado.
O clericalismo está diretamente ligado à questão dos abusos, afirma o advogado e teólogo Alejandro Álvarez, da Voces Católicas: “O clericalismo produz relações de poder e dominação que não são cristãs. Isso significa que o sacerdote recebe mais poderes do que deveria ter. Fala de uma fé muito imatura e infantil que se apoia na autoridade. O clericalismo produziu várias gerações de leigos no Chile que têm dificuldades para questionar o que um padre, um bispo ou o papa disserem”.
Afirma que o clericalismo tão marcado no Chile se explica na história recente, uma vez que diante de uma Igreja política muito forte nos anos 1960 e 1970, liderada pelo cardeal Raúl Silva Henríquez, surgiu como contrapartida a figura do padre Fernando Karadima no bairro rico, onde se refugiou a elite de direita.
Proporcionar maior participação e protagonismo aos leigos na Igreja é uma prática que já vem sendo realizada, por exemplo, pela Opus Dei, onde, por ser um grupo leigo, tem um governo colegiado no qual o vigário é assistido por um número igual de mulheres e homens, de acordo com a diretora de comunicações da prelazia, Ana María Gálmez: “As pessoas acham difícil entender isso, mas os sacerdotes da Opus Dei são apenas mais um. Eles podem confessar e celebrar a Eucaristia, mas é uma vocação de serviço, como a que eu tenho como leiga. O grande problema é ter endeusado os sacerdotes e tê-los seguido sem nenhuma reflexão. O papel dos leigos para nós da Obra é central”. Ressalta que é importante que a Igreja delegue aos leigos as questões administrativas, financeiras ou de apoio.
A doutora em Teologia Moral da Universidade Católica Claudia Leal ressalta que a participação dos leigos permite maior transparência e supervisão dos trabalhos da Igreja. Álvarez, da Voces Católicas, propõe que os leigos sejam encarregados da administração da justiça na instituição.
“Acreditamos que o celibato é desnecessário para o padre do povo, para o padre de uma paróquia em Santiago. A solidão que eles vivem é muito grande. Esse clero tem uma solidão afetiva brutal. Esse é o argumento para permitir que os sacerdotes se casem. Não é nada revolucionário. Poucos sabem, mas até hoje existem padres católicos romanos que podem se casar de acordo com os ritos orientais da Igreja católica”, diz Joseph Ramos sobre um dos pontos mais controversos de sua proposta. Álvaro Covarrubias complementa: “A solidão afetiva é uma cruz desnecessária. Hoje, ser padre é ser heroico: por que exigimos tanto deles? Casar-se era a tradição dos primeiros mil anos, até que alguém disse: ‘os padres têm que ser celibatários’”. A proposta de permitir o matrimônio se aplicaria aos padres diocesanos e não aos de ordens religiosas, como os franciscanos.
Além de alguns ortodoxos, também são casados os padres de Igrejas anglicanas reconvertidas ou missionários de regiões extremas.
A Voces Católicas e a Opus Dei concordam em que o celibato não é um dogma de fé da Igreja. Por isso pode ser discutido; no entanto, consideram que o celibato é uma valiosa virtude para o sacerdócio. Para Ana María Gálmez, “o celibato é uma entrega de amor que se faz livremente, deixando os amores afetivos terrenos por Deus. As pessoas veem isso como um jugo, mas a pessoa mantém sua afetividade”.
“No século XIX, o clero era muito mais educado do que o povo. Hoje, grande parte dos leigos tem tanto ou mais preparo do que o clero”, diz Ramos. Longe estão os dias de sacerdotes intelectuais como Alberto Hurtado, que era advogado. “Acredito que os seminaristas devem estudar na universidade para que tenham mais pontos de vista e estejam em diálogo com a cultura moderna”, disse Ramos.
Para vários entrevistados, faz-se necessária uma reforma do seminário para aumentar os níveis de seleção e a exigência acadêmica nos futuros sacerdotes, apesar da queda nas vocações que ocorreu nos últimos anos. “Hoje, o sacerdócio é considerado uma vocação e não uma profissão. Mas é preciso profissionalizá-los, direitos e deveres devem ser estabelecidos. Eles são ordenados como sacerdotes e no dia seguinte acham que já sabem tudo sobre teologia”, assinala Claudia Leal.
Ela acrescenta que hoje “os padres recebem uma educação muito infantil”, onde, sendo muito poucos alunos por curso, são pressionados e controlados em sua vida privada, estudos e vida social. Eles devem ter maior autonomia para que se responsabilizem por seus atos.
Entre as propostas, não figura a ideia do sacerdócio feminino, já que não faz parte da tradição católica. No entanto, os entrevistados concordam com a necessidade de maior espaço para mulheres leigas e religiosas. “O problema que temos com o clericalismo é que os padres não sabem trabalhar com mulheres e estabelecer relações de domínio com a mulher e a religiosa”, considera Alejandro Álvarez. Ele concorda com Ramos: “Embora as mulheres sejam metade da Igreja, as freiras se tornaram secretárias ou aquelas que servem o café”.
Para Ana María Gálmez, a Igreja, assim como o resto da sociedade, precisa se encarregar de uma participação maior das mulheres, especialmente quando no catolicismo a figura feminina é central. Neste sentido, ela aprecia a recente nomeação da advogada canônica Ana María Celis Brunet como presidente do Conselho Nacional de Prevenção de Abusos, embora lamente que não lhe paguem honorários e não tenha um horário fixo.
A proposta de Ramos e Covarrubias contempla a revisão de algumas tradições dos rituais da Igreja para modernizá-la e aproximá-la das novas gerações. Por exemplo, acabar com os títulos monárquicos como “reverendísimo”, “excelentísimo” ou “príncipe”. Além disso, abandonar as roupas “arcaicas” ou as cerimônias “pomposas” que não respondem ao tempo presente. Mas também propõem a revisão de temas da doutrina, dando maior relevância a assuntos centrais como “a Santíssima Trindade, o amor a Deus e ao próximo, a presença de Cristo na Eucaristia”, acima das doutrinas que consideram de segundo e terceiro níveis de relevância como “o pecado original, as indulgências, os pecados capitais, a mariologia ou os mandamentos”. O assunto provocou debate entre os signatários da carta e nem todos a assinaram. Para Ana María Gálmez, pelo menos, a Eucaristia deveria centrar-se na comunhão e reduzir a pregação à expressão mínima.
Segundo Claudia Leal, da Faculdade de Teologia, “antes, entre os religiosos, se dizia: 'quem obedece não se engana', mas temos que rever essa concepção”. Na sua opinião, a obediência mal compreendida foi o que permitiu situações de abuso e acobertamento, pois produz nenhuma reflexão e autocrítica nas ações dos religiosos, pelo fato de o superior e a instituição estarem acima dos valores. Da mesma forma, propõe rever a figura do diretor espiritual, que tem controle sobre a vida do seu dirigido, o que facilitou casos como o de Karadima.
Para Álvarez, “a obediência bem entendida é um valor importante, sem renunciar à posição adulta da fé, de modo que não aconteça [na Igreja católica] o que acontece no mundo evangélico, onde cada um funda a sua igreja”.
De acordo com Ramos, “chama a atenção o sistema de nomeação de bispos. O problema institucional é que em uma Igreja tão hierárquica quanto o exército prussiano, o sistema de nomeação onde o núncio recomenda o padre a Roma, fez água. Na China, a nomeação dos bispos é feita por acordo entre o Vaticano e o governo chinês. Seria demais pedir que as nomeações de bispos e pastores sejam feitas com a participação dos leigos?”.
A notícia do vazamento de um novo manual de prevenção de abusos da Igreja, onde entre outras coisas recomendavam não tocar “a área dos genitais” dos menores de idade, para o mundo laico apenas revelou o atraso e a ignorância que ainda existe no clero sobre o assunto. Para Claudia Leal, é urgente que se façam aconselhar por psicólogos e profissionais nestas questões. “Não basta ter protocolos rápidos copiados de modelos estrangeiros. Nem tudo precisa ser feito em Roma. Eles deveriam ouvir os leigos e os acadêmicos”, defende, acrescentando que é importante começar a falar sobre questões de sexualidade diretamente com os sacerdotes e sem eufemismos.
Na Opus Dei não existem, até a presente data, registros de sacerdotes acusados de abusos no Chile. Uma das chaves, além de um laicismo atento para denunciar, é que cumprem um rigoroso protocolo de prevenção que indica, por exemplo, que as confissões sejam feitas apenas no confessionário ou que os presbíteros não vão sozinhos para retiros com crianças e adolescentes.
Com a finalidade de fazer um cadastro real do alcance da questão dos abusos e da pedofilia na Igreja, organismos propuseram a criação de uma Comissão de Verdade e Reparação que tenha autoridade moral, que seja independente e dê garantias a todos os setores. Que administre adequadamente a questão do sigilo e a publicidade com padrões internacionais e que fixe a questão da reparação econômica e funcione ao abrigo do Estado. A proposta inspira-se nas antigas comissões Valech e Rettig de Direitos Humanos, e estuda experiências internacionais como os relatórios sobre o tema publicados na Austrália, Irlanda e Pensilvânia.
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Chile. As 10 ideias do mundo laico para enfrentar a crise da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU