21 Julho 2014
Ele diz que a misericórdia de Deus é para todos, mas, ao mesmo tempo, "é preciso se arrepender do mal que se faz". E, com mais razão, devem se arrepender os padres pedófilos, porque, com os seus atos, "profanaram o corpo de Cristo".
A reportagem é de Paolo Rodari, publicada no jornal La Repubblica, 19-07-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Promotor de Justiça da Doutrina da Fé durante o pontificado de Bento XVI, Charles Scicluna é agora bispo auxiliar em Malta. Poucos como ele conhecem os dossiês do Vaticano sobre os chamados delicta graviora, entre eles "os atos impuros" cometidos por um padre com um menor.
Eis a entrevista.
Comecemos pelos números: o papa, na conversa com Eugenio Scalfari, disse que 2% do total dos pedófilos no mundo são padres. As indicações que chegaram ao ex-Santo Ofício nos últimos anos parecem ser menores. É possível esclarecer a situação?
Fui promotor de Justiça na Congregação para a Doutrina da Fé de 2002 até 2012. Estudamos e decidimos centenas de casos, mas nunca fizemos estudos de natureza estatística. Os bispos dos Estados Unidos encomendaram um estudo científico publicado em 2004 [conhecido como Relatório John Jay]. Dos 109.604 padres que trabalharam nos EUA entre 1950 e 2002, 4.392 foram denunciados por abusos sexuais de vários tipos contra pessoas com idade inferior aos 18 anos.
O cálculo, portanto, é de 4% do total dos padres denunciados. Fala-se de denúncias, simplesmente. Não conheço outras fontes confiáveis. Infelizmente, os percentuais para o clero católico parecem estar no mesmo nível de outras profissões e categorias. O condicional aqui é obrigatório, porque faltam estudos científicos abrangentes.
Recentemente, o Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Infância, divulgou um relatório em que se pede que sejam "imediatamente removidos" e entregues às autoridades civis todos os prelados que estão envolvidas em abusos de menores ou que sejam suspeitos de estar. Por que a denúncia não é obrigatória na Igreja?
A indicação clara que sempre se deu é que é preciso seguir a legislação local [no jargão internacional, domestic law]. Se o legislador obriga a denúncia, é preciso seguir a lei. Se a denúncia é deixada pelo legislador à escolha livre da vítima, é preciso respeitar a escolha da vítima ou do seu tutor e ajudá-la no livre exercício dos seus direitos. Mas não se deve, de forma alguma, tentar dissuadir a vítima do exercício livre da denúncia.
Francisco, voltando da viagem à Terra Santa, disse que os padres pedófilos cometem atos semelhantes a uma "missa negra". O que mudou dentro da Igreja em relação à pedofilia nos últimos meses?
Um estudo mais aprofundado sobre o significado teológico do pecado de abuso sexual de menores por parte dos clérigos. Na verdade, o magistério de Francisco considera tal abuso como uma profanação: a corrupção de uma pessoa inocente é semelhante à profanação do corpo de Jesus na Eucaristia. A criança inocente é ícone límpido do discípulo de Jesus: corrompê-lo é como profanar o corpo de Jesus.
O senhor já trabalhou na Doutrina da Fé nos anos em que João Paulo II e o então cardeal Joseph Ratzinger, que depois se tornou papa, eram acusados de encobrir os abusos. O Vaticano respondeu que os responsáveis eram os bispos locais.
É princípio teológico e prático que o bispo diocesano é responsável pelo governo pastoral da diocese. Podiam-se evitar muitas tragédias se tivessem sido seguidas as indicações do Código de Direito Canônico. A Santa Sé oferece o seu próprio serviço jurisdicional para facilitar o ministério de governo nas Igrejas locais. A decisão de reservar algumas causas para a Santa Sé, como no caso dos abusos sexuais cometidos por clérigos, é indicativo da gravidade do caso e da vontade de facilitar uma resposta adequada nos casos individuais.
O papa instituiu recentemente uma Comissão para a Proteção dos Menores, em que também há uma vítima. Que resultados essa comissão pode obter?
A comissão é uma ocasião propícia que permite que a Santa Sé aproveite a experiência e a competência de diversos especialistas na avaliação das suas próprias políticas de formação, de prevenção e de proteção, além do ministério humilde de compartilhar a própria sabedoria.
Em 2010, enquanto se enfureciam as acusações na mídia contra a Igreja, o senhor fez uma homilia na basílica vaticana em que disse que, para aqueles que cometem abusos, "o inferno será mais duro". Por causa dessas palavras, o senhor recebeu críticas, mas Francisco usou palavras semelhantes várias vezes. Retrospectivamente, o senhor diria novamente essas coisas? Realmente o inferno será mais duro para os pedófilos?
Naquela meditação, eu citei um comentário de São Gregório Magno, que usava as categorias teológicas da sua época. Não cabe a mim mandar alguém para o inferno. Eu rezo para que todos possamos nos deixar abraçar pela misericórdia de Deus. Mas é preciso se arrepender do mal que se faz. Jesus fala da pedra de moinho e do mar. Fala também da necessidade de cortar pé, mão e de cavar o olho para não se perder. Cromácio de Aquileia comenta as palavras de Jesus e diz que os pés da Igreja são os diáconos, as mãos são os padres, os olhos são os bispos. Eis um critério teológico para a demissão do estado clerical de quem pode causar escândalo aos pequenos inocentes.
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''A tragédia dos abusos podia ter sido evitada'', afirma Dom Charles Scicluna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU