11 Setembro 2018
"Quero abrir as janelas da Igreja para que possamos ver para fora e para que os fieis possam olhar para dentro".
A frase foi dita na Roma de 1959 por Angelo Giuseppe Roncalli, mundialmente conhecido como João XXIII, pouco depois de anunciar a realização de um concílio ecumênico, que com o tempo seria conhecido como o Concílio Vaticano II.
O evento – sem exageros – foi um dos marcos históricos do século XX, na medida em que teve como objetivo a abertura da Igreja ao mundo, a todos os homens e para que fizesse um exame de consciência geral para adaptar a apresentação da mensagem evangélica aos tempos modernos, que já eram evidentes.
O Pontífice, conhecido como o "Papa bom" abriu o encontro em 1962, mas não pôde ver suas conclusões, já que morreu logo depois. O Concílio foi concluído por Paulo VI em 8 de dezembro de 1965, com quase 2.500 bispos participantes.
Para o catolicismo, foi um antes e um depois.
E assim continua entendendo o padre Felipe Berríos, para quem a resposta para a crise eclesial chilena e mundial passa por revisar e colocar em prática as conclusões do Concílio que já ultrapassou meio século. Segundo o jesuíta, as mudanças no interior da instituição e da hierarquia devem ser radicais, com o objetivo de modificar as estruturas do catolicismo, uma tarefa em que demonstra confiança no papa Francisco, mas um enorme desânimo para com a cúria mais conservadora.
"Que os leigos assumam a Igreja", propõe.
A entrevista é de V. Toloza Jiménez, publicada por El Mercurio, 09-09-2018. A tradução é de Graziela Wolfart.
Como está?
Por dentro, animado e por fora, cansado. Tem sido um ano pesado.
Por quê? Em que sentido é diferente?
Toda a política internacional, e nacional. [A política] de (Donald) Trump, a guerra comercial, mas, sobretudo, a questão da Igreja, que não para, que continua rompida, extremamente desgastante e decepcionante. Desgastante porque quando se consegue resolver uma, logo vem outra decepção, porque tudo isso começou com o caso Karadima, mas se acentuou com as aparições de (Juan) Barros quando o Papa Francisco veio. Eu me pergunto o que teria acontecido se Barros não tivesse sido tão irresponsável. Isto teria continuado igual, com aparência de algo limpo, mas escondendo muita sujeira por dentro. É bem curioso, porque se questionou a presença de Barros, mas isso foi o que fez detonar tudo o que aconteceu depois.
Esse desatino provocou algo positivo porque nos permitiu chegar a fundo, ou melhor, nos fez buscar esse fundo, e agora estamos diante da descoberta porque nos anos 60, 70, 80 e 90 se via uma Igreja ordenada, concentrada em sua missão, e eu acredito que estava, mas por dentro escondia muita podridão.
Há de convir que isto não é novo.
Não, não é novo. Agora, se tem centrado muito na raiva de personagens como Ricardo Ezzati, (Francisco Javier) Errázuriz, (Jorge) Medina, (Angelo) Sodano, mas eu creio que é preciso se fazer perguntas… Ezzati foi um menino jovem, idealista, apaixonado pelo evangelho, deixou seu país, sua língua, sua família, para vir à América, ao Chile. O que aconteceu com este garoto que transformamos em alguém detestável? O que acontece na instituição que provocou isto? Porque se não fizermos mudanças profundas nas instituições vamos continuar produzindo isso. Temos que mudar a instituição Igreja.
Neste tipo de situações é preciso começar a buscar os poderes que estão por detrás e que buscam certos objetivos. Que poderes são os que aparecem dentro da Igreja?
João XXIII intuiu isto, convocou o Concílio Vaticano II, que não tinha precedentes na história, pelo fato de ser numeroso e ecumênico. O Concílio, de certa forma, previu este problema e deu as diretrizes de voltar ao leito do evangelho. Agora, com João Paulo II, além disso, com (Angelo) Sodano como secretário de Estado, isso não somente foi parado, como fez a Igreja retroceder uns quantos séculos. E a este retrocesso se somou a globalização, a queda do Muro de Berlim, a modernização do mundo, as telecomunicações, a tecnologia, então a brecha se tornou ainda maior. Já era uma Igreja que não só não respondia aos evangelhos, mas que tão pouco estava de acordo com os tempos.
Em alguns momentos parece que Berríos transita entre a reflexão e o humor. Na expressão de seu rosto aparece a preocupação, até que dispara uma piada que faz esquecer essa breve imagem.
Esta semana foi inaugurada a Casa da Juventude em La Chimba, um centro que atenderá cerca de 40 adolescentes (13 a 18 anos) que terão à disposição um local que reúne instrumentos musicais, televisores, tablets, biblioteca e conexão wifi, entre outros.
Recentemente foi aberto outro espaço para crianças (6 a 12 anos) que deu vida às "tardes protegidas", trabalho que realiza junto à Fundação Recrea e, evidentemente, junto a Susana Véliz, a popular "Chana", mulher que dirige e se encarrega de todas as ideias do jesuíta.
A acusação mais severa contra a Igreja é que, supostamente, encobriu estes delitos para proteger a determinadas pessoas. Pode-se chegar a uma acusação tão categórica?
Há uma coisa que ainda está pendente em nossa sociedade. Não basta ficar com raiva de alguns se não mudarmos a lei, não basta ficar bravo com a Igreja se a sociedade chilena não cria os caminhos para que a Igreja fique de um lado e seja a justiça que investigue. No entanto não se promulga a lei para que os delitos sexuais contra menores acabem prescritos.
O que tem ocorrido é que a Igreja usa seus cânones para estes casos e estes são obsoletos. Via-se o abuso como um erro e não como um crime e não se via o dano que causava na vítima. Além disso, o processo canônico é lento, complicado e sob sigilo, o que, por um lado, sugeria o encobrimento, e por outro, favorecia o encobrimento. As duas coisas.
Não é coincidência, não sou eu que estou dizendo, que muitos dos sacerdotes que hoje são questionados tiveram enormes problemas com você… Ezzati, Sodano, Errázuriz. Eles perseguiram você.
Quando eles tinham poder, disse o que pensava sobre eles, agora que estão caídos, não me interessa “fazer lenha” deles. E seria presunção da minha parte, dizer que sabia de algo disso ou que pressentia. O que me incomodava profundamente era o sigilo que usavam e praticavam e, segundo, o abuso de poder.
Eu sempre entendi na Igreja que a diversidade é uma riqueza de espírito e sempre entendi que a unidade se dá na diversidade e tenho a impressão que eles entendiam a Igreja como hierarquia, a unidade como uniformidade e a obediência como submissão, e isso me revoltava muito.
Tudo isto se dá em um contexto bem complexo. Todas as instituições estão passando por crises bem grandes.
A sociedade mudou, é economicamente mais rica, está vigente a cultura do ter mais, de que um vale pelo que tem, mais do que pelo que é, mas o que me preocupa é a Igreja e aquilo o Vaticano II previu, o que não aconteceu com policiais, exército, políticos. O Vaticano II deixou isso plantado, afirma-se. Muitos sacerdotes foram castigados na América Latina, eu mesmo sofri acusações e não que estivéssemos inventando a pólvora ou criando uma doutrina paralela, como muitas vezes fui acusado, mas somente seguíamos o caminho que o Vaticano II havia aberto.
Esse é um caminho que poderia ser retomado? Ou mais concretamente: o Papa está nele?
O Papa está nessa dinâmica e isso é o que temos visto nas últimas semanas. O Papa tem que enfrentar uma máfia de cardeais que enriqueceram com o Banco Ambrosiano e com negócios duvidosos, outra máfia conservadora que se opõe à aceitação dos homossexuais, das lésbicas, da comunhão dos divorciados, da participação da mulher na hierarquia, entre várias coisas; há um terceiro grupo que está envolvido com os abusos de poder, abusos de consciência e abusos sexuais. Contra essas máfias o Papa está lidando e estas acusações que ele tem sofrido indicam que está metendo o dedo na ferida.
Por que tem demorado todo o processo de renúncias?
Creio que essa questão é apresentada de uma maneira que não é bem assim. Eu acredito que quando todos os bispos renunciaram foi igual a Fuenteovejuna: Ou seja, ninguém renunciou. Que todos os bispos tenham renunciado significa que nenhum assumiu.
Foi um mau sinal.
Péssimo sinal, na minha opinião. Porque quando dizem “fomos todos nós”, significa que não foi ninguém e o Papa tem que começar a investigar e isso leva tempo, é difícil, tem tirado alguns bispos diretamente vinculados. E por isso teve que mandar (Charles) Scicluna (bispo auxiliar de Malta) e (Jordi) Bertomeu (oficial de Doutrina da Fé). E ele tem que fazer uma investigação, porque eu percebo que não tem ocorrido cooperação dos bispos aqui.
Além disso, têm os casos da Irlanda, Estados Unidos, Itália. Todos complexos.
Quando o Papa chamou os bispos a Roma, teria sido a oportunidade de eles terem dito: “Eu, em minha diocese, tive este problema e não o resolvi, e renuncio por isso…”. Porque eles, quando voltaram, disseram: “Nós dependemos do Papa, nosso cargo está sempre à disposição”. Essa era uma forma de dizer: “nós renunciamos por educação, mas não por consciência de termos cometido um erro”.
O cenário está complexo para a instituição.
Podemos ver de duas maneiras: é complexo, mas, por outro lado, que caia esta instituição que criamos, que se distanciou do evangelho e do Vaticano II. Temos que fazer mudanças: que tiremos nossos trajes clericais, que não tratemos de convencer as pessoas que nós, padres, somos superiores a elas. Isso não somente não é verdade, como é uma estupidez. Devemos incorporar a mulher na hierarquia da Igreja, voltar a acolher as pessoas que marginalizamos, como os divorciados, etc. Que os pobres se sintam em sua casa na Igreja e que o leigo desempenhe o papel principal. Devemos construir uma Igreja que não esteja centrada nos sacramentos, na missa, onde o papel de protagonismo não seja do padre, mas dos leigos.
Mas essa reflexão não está na Igreja.
Não, obviamente que não está! É tão absurdo, é tamanha a cegueira, que a hierarquia da Igreja propõe um congresso eucarístico, é algo que correspondia à época de (Benito) Mussolini, não tem nada a ver com o mundo de hoje e com a situação pela qual está passando a Igreja. Eu creio que estão totalmente confusos, não entendem o que está acontecendo no Chile, que é uma mudança social, cultural, política muito profunda.
O mais provável é que o cardeal Ezzati deixe o cargo. Ocorrem-lhe nomes?
Um dos problemas pelos quais o Papa tem demorado em fazer mudanças, que são evidentes, é que não há gente.
Mas alguém precisa liderar isto.
Pode ser alguém de fora, que não esteja associado com nenhum grupo, nem de vanguarda, nem conservador. Mas mais importante que a pessoa que for dirigir é que os leigos assumam a Igreja, que eles exijam o tipo de Igreja que querem… Isso estava nas bases, na Teologia da Libertação que foi interrompida violentamente e que teria de ser retomada de outra forma, porque estamos no século XXI. Mas as diretrizes estão lá.
Para muita gente é difícil.
É que nos custa imaginar uma Igreja que não esteja centrada nos padres, nem sequer nas religiosas, que as transformamos em empregadas.
Falar da Teologia da Libertação assusta a estrutura e muita gente que a associa com a esquerda mais extrema, etc.
Bom, se associou com isso e agora estamos pagando pelos erros de ter terminado com essa Teologia que era tão propriamente nossa. É uma teologia que se pergunta: se Deus é bom, porque há injustiça, dor? E que o evangelho tem que nos levar a uma mudança interna e estrutural da sociedade.
Contudo, a voz da Igreja é ouvida no Chile?
Eu creio que não.
"Entendo que um sacerdote possa ter relações com uma mulher, ou se é homossexual, com um homem, mas é inexplicável que possa machucar uma criança". "Então, mais do que ser um veículo para chegar ao evangelho, a Igreja se transformou em um obstáculo para chegar ao evangelho". Isso abordava o Concílio Vaticano II". "Com o caso de Juan Barros, o Papa não somente se enganou, como também se sentiu enganado... (O caso) o fez ter um exame de consciência e dar uma reviravolta".
"Não nos atrevemos a falar e quando expressamos algo, o fazemos em uma linguagem tão complicada que as pessoas têm que ler entre linhas. Nos falta espontaneidade".
"Não vejo sonhos em ninguém. Vejo partidos políticos práticos, que é a mesma coisa que acontece com as universidades, que são distribuidoras de títulos. Vejo que os grupos mais pensantes são os grupos de estudo, como o Chile 21 ou Liberdade e Desenvolvimento", afirmou o sacerdote apontando o que considera como o principal problema nacional.
O que é mais complexo atualmente na sociedade chilena?
O mais complexo é que estamos em uma sociedade que deixou de sonhar, não temos sentimento de pertença e tudo é um sonho privado.
Sonhos de consumo.
De consumo. Eu consigo para mim minhas metas e assim vamos gerando um país que se segrega porque não tem algo que o aglutine, que o associe, salvo com questões efêmeras como quando joga La Roja, ou o Dieciocho, têm o brilho e a efemeridade de um fogo artificial. Não temos um sonho de país… Em um determinado momento foi "a revolução em liberdade", em outro foi "o socialismo à chilena", "depor a ditadura e voltar à democracia", "terminar com a pobreza".
Isso é um produto do processo de modernização, de individualização das pessoas, mas não lhe dá a impressão de que é também um reflexo da crise das lideranças e das ideologias?
Sim. Há uma crise, mas temos medo da palavra ideologia; acreditamos que tudo se resolve com questões técnicas e nós somos animais políticos e buscamos sonhos, não podemos viver sem eles. Os técnicos são necessários, mas estão a serviço de projetos políticos, dos sonhos de sociedade. O evangelho propõe um sonho: Os últimos serão os primeiros.
61 anos tem o sacerdote que em 1977 ingressou na Companhia de Jesus. Em 10 de março de 1989 foi ordenado sacerdote. Foi capelão e fundador de diversas ONGs como Techo, Infocap: a Universidade dos Trabalhadores.
Em 2015 chegou em La Chimba. Está instalado em uma meia-água no acampamento Luz Divina VI, onde construiu a "Casa da Juventude" e o CFT La Chimba, entre outras realizações.
220 famílias vivem em La Chimba, a maioria está contemplada com os programas desenvolvidos pelo padre Berríos e pela Fundação Recrea, como o acampamento transitório, o CFT e outros.
"Nós, chilenos, deixamos de sonhar"
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Chile. "Estão totalmente confusos, não entendem o que está acontecendo no País". Entrevista com Felipe Berríos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU