Política brasileira. A impossibilidade de representar o social e a tentativa de se reconectar com as lutas reais. Entrevista especial com Murilo Duarte Costa Corrêa

A crise e a pulverização das esquerdas não indicam necessariamente sua morte ou seu fim, mas seu nascimento e a reconexão com as lutas reais

Foto: Rádio Carlopolitana FM

Por: Patricia Fachin | 18 Março 2020

A crise das esquerdas pode ser resumida como a “completa impossibilidade de representar o social, de subsumi-lo a um governo ou à forma-Partido e, mais profundamente, às formas liberais e representativas de democracia”, diz Murilo Duarte Costa Corrêa, coordenador do Laboratório de Pesquisa Interdisciplinar em Teoria Social/Teoria Política e Pós-Estruturalismo do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele pontua que a crise ficou evidente nos protestos de Junho de 2013 e é consequência de dois fenômenos. De um lado, explica, “de uma captura mágico-eleitoral pelo campo progressista hegemonizado do PT, que pode transformar as esquerdas em máquinas lulistas diante da escassez de alternativas imediatas na esfera política formal” e, de outro, de “um processo de pulverização das esquerdas”, que não indica necessariamente a sua “morte” ou “fim”, mas o “começo”. “Pulverizar também é produzir uma dispersão multiplicadora, policêntrica ou acêntrica. (...) As esquerdas pulverizadas que não foram transformadas em pó ou em satélites do lulismo, apesar de fragmentadas, estão muito mais conectadas com as possibilidades do real das lutas do que as esquerdas institucionais”, assegura.

Corrêa sugere ainda que o melhor modo de compreender as esquerdas não é como uma identidade refém de partidos ou coligações partidárias, mas como uma política, conjuntos múltiplos de lutas sociais e biopolíticas difusas, policêntricas ou acêntricas. “Com isso, transformamos o problema das ‘novas esquerdas’, ou do ‘futuro das esquerdas’, em um falso-problema, para nos concentrar nos antagonismos reais que as lutas biopolíticas fazem avançar à contracorrente das capturas partidárias”, sugere. E assegura: “Um dos principais desafios das esquerdas é desmontar as condições de sua captura pelas esquerdas partidárias e tradicionais, autonomizando-se em relação a elas”.

Murilo Corrêa (Foto: Arquivo pessoal)

Murilo Duarte Costa Corrêa é graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente leciona na Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG, onde coordena o Laboratório de Pesquisa Interdisciplinar em Teoria Social/Teoria Política e Pós-Estruturalismo junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como a esquerda se comportou no primeiro ano do governo Bolsonaro? Quais foram e são os principais erros da esquerda ao tentar compreender e interpretar a realidade brasileira?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Quando Murilo Cleto e eu publicamos “A hipótese bolsonarista: as trincheiras e as linhas”, no número 54 da Revista Lugar Comum, dissemos que o governo Bolsonaro era a sua campanha eleitoral continuada por outros meios. Um ano depois, eu acredito que essa hipótese se sustente tanto para designar o governo Bolsonaro, como para descrever a maior parte dos comportamentos críticos das esquerdas tradicionais.

O primeiro argumento de “É inútil resistir”, escrito no rescaldo das eleições presidenciais de 2018, era o de que as esquerdas haviam se tornado agentes políticos reativos, que andavam a reboque da direita. As plataformas das esquerdas se estabeleciam como uma imagem especular e artificialmente invertida em relação às direitas neoliberais e autoritárias.

Isso redirecionou as pulsões sociais de resistência ao bolsonarismo aos objetivos político-eleitorais do PT, e dos partidos de menor expressão que, com minúsculas quebras aqui e ali, continuam a funcionar como seus satélites ad hoc. Tendo perdido o bonde das lutas sociais contemporâneas (Junho de 2013, os Ocupas de 2015-2016, as revoltas logísticas dos Caminhoneiros de 2018 etc.), externas a movimentos sociais e sindicais tradicionais cujo potencial subversivo o PT passou a administrar de 2003 em diante, o programa das esquerdas resumiu-se a um conjunto de reações discursivas às narrativas do bolsonarismo.

O petismo e a polarização

São muitas as causas dessa conexão politicamente estéril. A principal delas talvez seja a decisão petista de constituir-se como parte contratual em dinâmicas fisiológicas de polarização eleitoral. Da segunda eleição de Lula (2006) em diante, munido do capital simbólico de um país cujo PIB crescia a taxas assustadoramente altas, que conseguia distribuir renda e dar relativo acesso ao mercado de consumo de bens duráveis e serviços, que ampliou o crédito das classes subalternas, e que na cena internacional se apresentava como um provável líder dos BRICS e como interlocutor privilegiado dos países de capitalismo central, o PT passou a apostar todas as fichas em um modelo político-eleitoral de escolha plebiscitária. De um lado, o Brasil de Fernando Henrique [Cardoso] e do PDSB, em que a estabilidade da moeda e o controle da inflação se faziam ao preço de extensas concessões neoliberais, reformas e desmontes; de outro, o Brasil de Lula, que parecia florescer em todas as cenas, crescendo e distribuindo renda, sem abrir mão das conquistas da estabilidade econômica. Dentro dessa narrativa, era uma escolha óbvia.

Nas eleições de 2014, esse processo plebiscitário se radicaliza precisamente no momento em que a candidatura de Marina Silva (então PSB) corria por fora do binômio que dirigiria a escolha dos eleitores. Em 2014, o PT protagonizou os primeiros casos de fake news julgados no TSE, contra a campanha de Marina Silva; promoveu uma campanha difamatória contra uma candidatura que, àquele tempo, propunha-se como uma terceira via à falsa-polarização entre os projetos substancialmente neodesenvolvimentistas do PT e do PSDB, que diferiam apenas por uma nuance gerencial.

Em 2018, a novela judiciária sobre a prisão de Lula e a validade de sua candidatura produziu uma violenta homogeneização do “campo democrático” que poderia confrontar Bolsonaro em um virtual segundo turno. Essa homogeneização foi preparada pela unificação das bandeiras das esquerdas em torno da liberação de Lula, e da viabilização de sua candidatura — força de empuxo de uma pauta democrática e, no vocabulário progressista, uma espécie de “golpe 2.0” que se seguia ao impeachment de Dilma (o “golpe 1.0”) e instaurava um clima de “exceção eleitoral” no Brasil.

Como Lula aparecia nas primeiras pesquisas como o campeão das intenções de votos, a ideia era soldar a pauta “Lula Livre” à crítica à Lava Jato, e esta, à reconstituição da própria noção de democracia. Assim, uma eleição sem Lula seria, na narrativa das esquerdas tradicionais, uma eleição fraudada a priori. Essa narrativa encobria o fato, bem sabido pelas direitas, de que a identificação dos eleitores era com Lula, não com o PT, e as esquerdas não tinham nenhuma alternativa a Lula. Tanto que Fernando Haddad surge, muito tardiamente, como procurador imediato de Lula, fagocitando a campanha de Manuela D’Ávila (que, também do ponto de vista das esquerdas institucionais, temperava a figura de intelectual uspiano de Haddad com uma componente de representatividade de gênero).

Movimentos e partidos de esquerda tutelados pelo petismo

Esses contextos e enunciados foram mobilizados em performances fortemente emocionais; foram martelados em redes, reuniões públicas, pronunciamentos oficiais, intervenções e propagandas políticas. Como resultado, conseguiram manter os movimentos sociais tradicionais e os partidos de esquerda de menor expressão sob a tutela do petismo. O PSOL de Guilherme Boulos e Sônia Guajajara, por exemplo — que contava com componentes soft, também operadas no nível da “representatividade” das questões urbana, indígena e de gênero, apesar de manter candidatura própria —, tampouco conseguia se diferenciar do PT de Lula. Eram em tudo miméticos, das posturas e dos gestos, aos cortes de cabelo e barba de Boulos, que remetiam ao Lula sindicalista metalúrgico dos anos 1980. Por outro lado, o PT também viveu a sua mímesis, mas como imagem especular e invertida do bolsonarismo. Donde sua reatividade ou, como outros preferem, sua crise e sua falência

IHU On-Line - Nos últimos anos fala-se muito sobre a crise da esquerda — alguns até falam da crise das esquerdas — e da crise do PT. Na sua avaliação, trata-se de uma mesma crise ou são crises distintas? Qual é a origem dessa crise? Como o senhor a interpreta e a compreende?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Afirmar que a crise das esquerdas é uma crise do PT só é possível na medida em que se admita que o PT trabalhou ativamente não apenas para hegemonizar, mas sobretudo para homogeneizar as alternativas internas às esquerdas. Sob esse ponto de vista, as esquerdas gravitariam em torno do PT, e a crise dele seria, também, a crise delas.

Embora eu esteja de acordo que é mais ou menos isso o que aconteceu quando olhamos para a esfera política formal (partidos, movimentos tradicionais, jogos institucionais de poder), não podemos deixar de fazer uma análise “por baixo” e “horizontal”, via lutas biopolíticas, na qual o PT, com sua imensa capacidade de captura e neutralização das alternativas, é apenas uma força — sem dúvida importante — entre muitas.

O que parece ter acontecido às esquerdas sob o ponto de vista das lutas concretas é, em parte, o efeito de uma captura mágico-eleitoral pelo campo progressista hegemonizado do PT que pode transformá-las em máquinas lulistas diante da escassez de alternativas imediatas na esfera política formal. E faz parte da estratégia de poder do PT esgotar as alternativas antes que elas se tornem eleitoralmente viáveis, ou convertê-las rapidamente em satélites seus.

Mas, para muito além desta captura, do ponto de vista da potência materialista das lutas, eu tentaria descrever o que se convencionou chamar de “crise das esquerdas” como um processo de pulverização das esquerdas. Pulverização é o nome que se dá aos processos pelos quais uma unidade se transforma em pó. Muitos analistas de esquerda têm seguido essa noção, falam do fim ou da morte da esquerda — e se, com isso, estivermos falando da esquerda institucional que gravita em torno do PT, eu estou de inteiro acordo. Ela está virando pó. E já não era sem tempo.

Pulverização

Mas a pulverização não é um processo unicamente negativo. Pulverizar também é produzir uma dispersão multiplicadora, policêntrica ou acêntrica. Indica a dissociação de uma unidade e a migração de partes (que, nesse caso, excedem o seu todo) para territorialidades hiperlocais de identidade, ethos, ação e possíveis políticos. As esquerdas pulverizadas que não foram transformadas em pó ou em satélites do lulismo, apesar de fragmentadas, estão muito mais conectadas com as possibilidades do real das lutas do que as esquerdas institucionais. Por sua vez, todo o esforço das esquerdas institucionais (que devem sem pensadas aqui como linhas de força, não como grupos) está em chantagear as linhas divergentes das esquerdas pulverizadas para domesticá-las como partes integrantes do “campo democrático”. Daí a ambiguidade perigosa e desafiadora dessa noção, em que as esquerdas pulverizadas correm sempre o risco de ter os seus potenciais políticos múltiplos e difusos religados às esquerdas tradicionais, com sua capacidade de fazer tudo virar pó, se este for o preço a pagar para se manter no jogo eleitoral.

Crise da esquerda não é a sua morte, mas seu começo

Então, diferentemente do que os hegelianos e os heideggerianos de esquerda se sentiriam confortáveis em dizer, a crise da esquerda não é a sua morte ou seu fim, mas seu começo. Talvez estejamos na infância de esquerdas que, felizmente, ainda não sabem balbuciar seus nomes, e por isso se chamam muitas coisas: pós-capitalismo, pós-crítica, pós-operaísmo, autonomismo, antineoliberalismo, ecoterritorialismo, indigenismo, anticapitalismo, ecossocialismo, aceleracionismo, decrescimentismo, antirracismo, decolonialismo, feminismo, pós-humanismo, antiespecismo, antifascismo, Comum(nismo) etc.

Estes são alguns nomes de um sem-número de máquinas éticas e biopolíticas, abstratas e concretas, com seus perigos e chances, com potencial para promover conexões recíprocas, e que exprimem linhas de pensamento e ação antagonistas que já estão entre nós. Elas estão longe de ser coesas e, para nossa sorte, a maioria delas sequer procura prescrever um modelo.

Pelo contrário, elas ajudam a compreender fragmentos do real, e convidam à preensão e ao desvio ativo das próprias linhas (macro e micropolíticas) das quais somos o efeito subjetivo de composição. O grande problema é que muitas delas têm sido objeto de uma tentativa de ativa captura pelo chamado “campo progressista” formal, que as domestica e procura apresentar-lhes como um efeito dele, não das lutas biopolíticas concretas em que se processam. Outras, por outro lado, sequer chegam a ingressar no sistema discursivo e coerente das esquerdas institucionais, por não passarem no seu teste de “pureza” transcendental. E são, portanto, ditas “inviáveis, delirantes ou sonháticas”.

Origem da crise da esquerda governamental

A origem da chamada crise das esquerdas, concretamente manifestada no Brasil nos levantes de Junho de 2013, é a completa impossibilidade de representar o social, de subsumi-lo a um governo ou à forma-Partido e, mais profundamente, às formas liberais e representativas de democracia.

Espera-se das direitas que não representem a ninguém, porque as direitas são, em carne e viva-voz, a presença real dos interesses corporativos sem qualquer disfarce. Eleitas ou não, as direitas nunca entram em crise. Elas mudam de perfil, os interesses se redistribuem, encontram novos nichos e representantes (basta ver a profusão de partidos e candidatos até então anônimos de direita e centro-direita supostamente “antissistêmicos” nas eleições de 2018), mas não entram em crise. Seu projeto político está sempre em curso, mesmo nos governos ditos de esquerda — como, aliás, as relações nada puritanas entre os governos do PT e os empresários campeões nacionais do petróleo e da construção civil comprovaram.

As esquerdas governamentais não são apenas uma contradição em termos, mas o próprio signo da crise. Gilles Deleuze já afirmou que “não existem governos de esquerda”, querendo dizer que sua conversão em “governo” desnatura qualquer possibilidade de “ser de esquerda”. Mas, também, que “ser de esquerda” é a expressão de uma série de atitudes, práticas e comportamento ingovernáveis.

Outro problema das esquerdas é sua relação muitas vezes erigida como “necessária” com o Estado. Isso se exprime em formas de governo e de pensamento não raro stalinistas, em que encontramos a vertente autoritária e policialesca das esquerdas que mais se aproxima das extremas direitas (talvez precisemos lembrar que, com relação ao Estado, Marx preconizava exatamente o contrário...).

Releitura de Junho de 2013

Em Filosofia Black Bloc, livro que sai em abril próximo pelas editoras Circuito e Hedra, afirmo que o problema profundamente político que Junho tornou manifesto é a impossibilidade de reduzir o que é da ordem do múltiplo, do anárquico e do ingovernável ao que o etnólogo Pierres Clastres certa vez chamou de “o Um” — a forma-Estado, em sua unidade soberana e transcendente. Junho mostrou que os governos de esquerda não realizam menos do que os de direita esse violento ataque às multiplicidades.

Por outro lado, é toda a forma-Estado, com sua unidade, suas hierarquias, suas exclusões, suas polícias, seus discursos morais etc., que, como uma valência subatômica que contamina tudo, salta da camada da representação, dos governos de esquerda, e vem parasitar os movimentos reais. Assim, tanto no plano institucional como no micropolítico, as esquerdas governamentais não cessam de tentar administrar o múltiplo; quando, para serem efetivamente democráticas, as esquerdas deveriam deixar-se afetar pelo que as multiplicidades têm de ingovernável.

IHU On-Line - Alguns setores da esquerda, em especial intelectuais, políticos e militantes, têm sugerido que a esquerda faça uma autocrítica. Quais são os limites da crítica que a esquerda tem feito a si própria?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Dirigida a si ou ao outro, a crítica é a forma de pensamento por excelência das esquerdas. Nela, convergem duas linhas: uma marxiana, na qual supomos que se manifeste certo materialismo como motor da práxis (ação transformadora do real); outra kantiana, na qual encontramos uma forma universalista, normativa e vazia, que dá origem a um conjunto de imperativos morais.

Falsa-polarização

No contexto da falsa-polarização entre o campo progressista e o campo conservador, essas duas linhas têm se misturado de maneira tão estranha que a ação transformadora (a práxis materialista) parece ser absorvida pela performance discursiva dos imperativos morais. “Ser de esquerda” passa a ser uma posição de fala fragmentária que um sujeito ocupa deliberadamente, marcando sua posição comunicacional supostamente antagonista. O problema é que a arena mesma é constituída sob a forma de uma falsa-oposição (e.g., progressismo vs. bolsonarismo), em que as identidades são levadas ou a pregar para seus convertidos, ou a se conflagrar contra os pagãos. Isso transforma toda crítica possível em uma performance que situa o sujeito automaticamente em um dos lados das trincheiras das guerras culturais, passando a exigir dele um certo nível de fidelidade moral, garantida por mecanismos policiais.

Nesse contexto, nenhuma autocrítica da esquerda é possível, porque no contexto de guerras culturais em que as esquerdas embarcaram voluntariamente, nenhuma relação consigo mesma é possível. A esquerda, hoje incapaz de avançar qualquer projeto autônomo de transformação social de largo espectro, é refém da imagem antagonista que precisa projetar contra a direita, para eliminar o risco de acharmos ambas realmente muito parecidas...

Os limites da autocrítica das esquerdas estão dados pelos próprios quadros policiais pressupostos pelas guerras culturais que as esquerdas e o bolsonarismo alimentam. Seus efeitos são a desconexão entre práxis e crítica (a desarticulação entre ação e pensamento); a consequente absorção da práxis por uma performance discursivo-normativa (a destruição da práxis); e a conversão da performance discursivo-normativa em parâmetro regulador de condutas (a constituição de uma polícia reativa das condutas).

IHU On-Line - Uma nova esquerda está em curso? Sim, não, por quê? Se sim, como a caracteriza e quais são as maiores dificuldades da esquerda hoje?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Se adotarmos o ponto de vista que sugeri acima — o de tentar enxergar as esquerdas não como uma identidade, ou como uma ontologia (“ser de esquerda”), mas como uma política, como um conjunto de lutas biopolíticas pulverizadas —, pensaremos as esquerdas não como reféns de partidos ou coligações de partidos, mas como conjuntos múltiplos de lutas sociais e biopolíticas difusas, policêntricas ou acêntricas. Com isso, transformamos o problema das “novas esquerdas”, ou do “futuro das esquerdas”, em um falso-problema, para nos concentrar nos antagonismos reais que as lutas biopolíticas fazem avançar à contracorrente das capturas partidárias.

Por isso, um dos principais desafios das esquerdas é desmontar as condições de sua captura pelas esquerdas partidárias e tradicionais, autonomizando-se em relação a elas. Isso implica rejeitar as opiniões performativas confortáveis, os imperativos e automatismos que não cessam de exigir tomadas de posições, os controles policiais dos discursos políticos, a recusa ativa em engrossar as fileiras das guerras culturais, a contraconduta de desafiar a polarização e a identidade bem-comportada do “ser de esquerda”.

Essas são as condições mínimas para que os antagonismos reais tragam à existência um novo regime, não mais de hegemonia e homogenismo das esquerdas tradicionais, mas de transversalidades, de conexões múltiplas entre grupos de usuários do político. Este é o segundo desafio: criar transversalidades entre lutas que, inicialmente, se apoiam em identidades, referenciam-se por territórios, ou por antagonismos situados. É interessante perceber como o papel das identidades pode ser operado de maneira excludente (em manifesta contradição com o que preconizam os teóricos e teóricas das opressões interseccionais), mas antagonismos situados, como a tarifa dos transportes, os Ocupas estudantis, ou o preço do diesel, conseguem estabelecer redes transversais e inclusivas de indignação política.

O terceiro desafio, talvez o mais difícil deles — porque compreende, de certa forma, uma perseveração nos dois primeiros desafios —, é inventar novos meios para afetar o campo institucional sem se deixar capturar e neutralizar por ele, como parece ter ocorrido aos movimentos sociais tradicionais que, hoje, replicam serenamente os axiomas do “campo progressista”.

IHU On-Line - Alguns sugerem que o PT deveria compor uma chapa com outros setores da esquerda para garantir uma oposição à possível candidatura de Bolsonaro. Outros, dentro da própria esquerda, criticam essa possibilidade porque veem no PT um partido que quer garantir a hegemonia da esquerda. Como vê essas possibilidades?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Eleitoralmente, trata-se de uma estratégia que foi cogitada em 2018, no curso dos debates públicos sobre a prisão e a viabilidade da candidatura de Lula, que terminou por não ocorrer. Se olharmos para a Argentina, foi a estratégia adotada com sucesso (do ponto de vista eleitoral) pelo kirchnerismo. Ela redundou na vitória de Alberto Fernández e Cristina Kirchner (Partido Justicialista e Unidade Cidadã, respectivamente) em uma eleição de tipo praticamente plebiscitário contra Mauricio Macri, em condições econômicas muito pressionadas pela brutal desvalorização do peso argentino frente ao dólar e pelas taxas de inflação que, em 2019, bateram a marca dos 53,8%.

Não penso que mudar os cabeças de chapa inove substancialmente o cenário de polarização eleitoral que o PT tem construído ativamente desde 2006 - Murilo Duarte Costa Corrêa

Seja como for, não penso que mudar os cabeças de chapa inove substancialmente o cenário de polarização eleitoral que o PT tem construído ativamente desde 2006 e, com maior vigor, desde 2014, tendo sido vítima de uma derrota em seu próprio campo de expertise eleitoral em 2018. Como a própria perspectiva que adoto para deslocar o problema das esquerdas para a via das lutas sugere, não me parece que de um ajuste da cena eleitoral virá qualquer chance de redenção para as esquerdas. Talvez alguma chance venha do trabalhoso processo de dar fim, no seio das lutas biopolíticas, em suas múltiplas linhagens, da sua relação com as esquerdas institucionais e com o que acima chamávamos de “forma-Estado”.

IHU On-Line - O que as movimentações em torno das eleições municipais indicam e sinalizam acerca da rearticulação da esquerda neste momento e em que medida elas podem indicar uma alternativa ao PT e a Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Tenho acompanhado muito pouco a cena municipal, então não teria muito a dizer a respeito. Um sinal muito claro de que as esquerdas institucionalizadas já não têm nada de concreto a propor é tomarem a epidemia global de coronavírus (Covid-19) como a grande carta na manga contra o neoliberalismo. Uma série de trabalhos, entre os quais o de Soares e Santos (2014), mostrou que os governos do PT nem de longe importaram um aumento significativo de investimentos no SUS na proporção do PIB. Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, foram executados R$ 108 bilhões em despesas na área de saúde, praticamente em linha com despesas de aproximadamente R$ 100 bilhões nos anos de 2016 e 2017 (no governo Temer), e de cerca de R$ 93,86 bilhões em 2015 (no curso do governo Dilma, pós-ajuste fiscal).

Neste momento, não vejo uma clara alternativa ao PT e a Bolsonaro, ou à sua lógica de polarização recíproca, seja para as eleições do Executivo municipal, seja para as eleições presidenciais de 2022. Ainda que possam existir redistribuições de papéis e de nomes, a falsa-polarização continua a ser, até o momento, o dispositivo de governamentalidade oficial do Brasil e, talvez, de alguns outros países do mundo em que as extremas direitas obtiveram algum sucesso eleitoral recente. Desde baixo, no horizonte das lutas biopolíticas, a alternativa urgente é pensar e fazer política à revelia da esfera da representação, desativando esse dispositivo. Seria a melhor forma de afetar os governos, independentemente dos resultados eleitorais.

IHU On-Line - Há teses de que, assim como a esquerda, a direita representada pelo presidente também está ficando para trás. Concorda?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Como Murilo Cleto e eu afirmamos em “A hipótese bolsonarista”, o governo Bolsonaro é paradoxal. Eleitoralmente, ele dá voz não apenas às maiorias silenciosas da direita, mas captura um leque muito variado de indignações sociais difusas que não encontrou qualquer eco na institucionalidade dos governos de esquerda que o precederam.

Ainda que se apresente como uma alternativa anti-establishment, o bolsonarismo é a imagem especular e invertida das esquerdas institucionais, na medida em que também ele funciona a partir de performances autoritárias que lançam mão de certos imperativos formais, crítico-normativos vazios e universais (“tem que mudar isso que está aí”, “a mamata vai acabar” etc.) para formar uma identidade de trincheira capaz de sobreviver ao fato bruto de que Bolsonaro e sua prole fazem parte, e há muito tempo, da mesma casta política à qual dizem servir de alternativa.

De um ponto de vista meramente materialista, o bolsonarismo já nasceu “para trás” da indignação que ele catalisou em 2018. Daí porque os índices de desaprovação do governo federal só fazem aumentar. Mas, eleitoralmente, ele conserva um núcleo duro de apoio de aproximadamente 30% do eleitorado — uma fração significativa e numericamente semelhante à base de apoio do petismo, descontados os votos “sazonais” devido à estratégia plebiscitária.

Então, seria preciso reconhecer que assim como as esquerdas institucionais estão sempre “acabando sem nunca terminar” — porque a estratégia da falsa-polarização, fabricada nos últimos quinze anos, deu-lhe novo fôlego —, se tudo se mantiver em seu lugar, devemos esperar que as direitas também demorem a “ficar para trás”. Ao cabo, ambas dependem da mesma estratégia que se retroalimenta. Quanto mais cedo pusermos fim à chantagem da polarização, mais cedo tanto esta esquerda institucionalizada e esta direita, fake de antissistema, ficarão para trás. 

IHU On-Line - Vê possibilidade de ocorrerem novas manifestações, como as de Junho de 2013, na atual conjuntura? Qual é o legado de Junho de 2013?

Murilo Duarte Costa Corrêa - Um evento como Junho é impossível de prever. Nas primeiras noites de manifestações do Movimento Passe Livre - MPL — catalisador involuntário de Junho —, ninguém, nem mesmo o MPL, podia acreditar na proporção que o acontecimento Junho tomaria. A conjuntura atual, porém, não é propícia. Se pensarmos no curtíssimo prazo (semanas, meses), temos um ciclo epidêmico pela frente, cuja maior fortuna talvez seja nos forçar a repensar as condições biopolíticas do nosso ethos. Isto é, as nossas relações com nós mesmos e com a nossa solidão (nossa Innenwelt), com os nossos iguais, humanos e inumanos, e com o meio ambiente que nos cerca (a Umwelt em que estamos integrados), nosso papel na composição geral do trabalho biopolítico, a distribuição desigual do acesso aos territórios etc. A conjuntura de mais longa duração, ninguém pode prever. A América Latina começa a conhecer um horizonte de lutas biopolíticas pulverizadas que talvez preparem, à sua maneira, novos focos de intensificação democrática, mas isso permanece em aberto e, em larga medida, os governos de esquerda dos últimos vinte anos talharam boa parte das ferramentas repressivas que poderão ser utilizadas contra esses futuros levantes. É em parte isso que Alexandre Mendes e eu nos esforçamos por situar em um trabalho ainda a ser publicado (“Amérique du Sud: entre resistance biopolitique et stabilisation répressive”, L’Irascible, no prelo).

Brasil pós-Junho de 2013

De 2014 para cá, com a eleição de Dilma, com seu impeachment, com as intervenções militares do governo Temer, com as descobertas aterradoras, por meios judiciais não menos aterradores, da Lava Jato, e com o governo Bolsonaro, vivemos um processo em que a multiplicidade anárquica de Junho foi reconduzida às discussões palacianas e aos arranjos liberais-representativos. Voltamos a pensar e a fazer a política “por cima”, quando Junho exigiu pela primeira vez em muito anos, e com força, que ela fosse feita “por baixo”.

No Brasil pós-Junho, tudo se passa como se os palácios agora fundassem as ruas; a representação fundasse a democracia; a governabilidade fosse a condição necessária para qualquer mudança estrutural, na louca lógica da restauração suprapartidária que se seguiu a Junho e penetrou boa parte da sensibilidade social, que tanto as esquerdas quanto as direitas não cessaram de massacrar com suas políticas de pacificação policial, restauração ideológica e unificação patriótica.

Junho foi uma política do Fora absoluto, das maltas selvagens, o experimento de um desejo social que queria tudo e não tinha modos. Por isso, Junho soou a muitos intelectuais de direita e de esquerda como um movimento antipolítico: porque Junho era um grito múltiplo de retomada da esfera do político pela esfera do social. Isto é, uma experimentação da sociedade contra o Estado, das multiplicidades contra o Um. O que Junho deixa em aberto — como um vulcão deixa atrás de si uma fenda através da qual ainda respira — é um conjunto de brechas democráticas para um modo de vida absolutamente outro. No processo de pulverização das esquerdas, deveríamos prestar mais atenção às lutas que ela multiplica e pulveriza, e aos modos de vida possíveis com que as lutas experimentam, do que às elites políticas de esquerda cujo destino parece ser voltar ao pó.

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