Por: Márcia Junges | 15 Setembro 2016
Italiano radicado no Brasil, Giuseppe Cocco começou sua fala no IV Colóquio Internacional IHU - Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica apontando para a gravidade da conjuntura política nacional. “Vivemos uma situação difícil do ponto de vista material, que agora se converteu praticamente em uma depressão econômica com resultados nefastos. O que ocorre hoje é particularmente duro. Penso que um dos grandes problemas que temos é que, dentro dessa situação, estamos quase tomados como reféns de uma série de campanhas de comunicação que tendem a evitar o verdadeiro debate a ser feito”. Cocco é um pensador que tem dialogado com frequência nos debates promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. "Já perdi a conta de quantas vezes estive aqui ou colaborei com entrevistas ou artigos”. E o desassossego é um elemento que acompanha suas escritas e falas.
Em sua conferência Políticas públicas, financeirização e crises. Um olhar a partir de Gilles Deleuze, Cocco demonstrou seu ponto de vista em relação à crise econômica e seus nexos com as políticas públicas, a financeirização e a crise sistêmica gravíssima que vivenciamos, sobretudo no caso do Brasil.
“Em geral, o clima é muito ruim para discutir a crise política. Para piorar, o mundo acadêmico está descolado do mundo real”, provoca. “Estamos no meio de um paradoxo. Poderíamos ser Dilma ou Temer. E agora somos governados por Temer e Dilma. Somos reféns de uma falsa alternativa”. Portanto, há uma falsificação do debate através de “moedas falsas”, como a série de campanhas de marketing que funcionam bem sucedidas, abastecidas por rios de dinheiro. Tais campanhas produzem chantagens que impedem qualquer leitura das contradições daquilo “que podemos chamar de período de governismo. No Brasil há um amor pelo governo, pelo Estado”.
Contudo, pondera Cocco, há que se ter consciência da dimensão global e da dimensão endógena da crise. E isso deve ser levado em conta. Assim, aponta para o fracasso do PT a partir dos governos de Dilma Rousseff. Foi então que Cocco recuperou a ideia da economia de polinização, explanada em 13-09-2016 por Yan Moullier Boutang nesse mesmo evento do IHU: “Com Dilma gestora e depois presidente, passou-se a investir e a produzir e a problematizar a questão do mel, e não da polinização”. O que continuou a vigorar foi uma visão de que o Brasil precisa se industrializar, e que a produção do mel é mais importante do que as consequências difusas do trabalho de polinização.
Ao retomar as ideias de Boutang, Cocco alerta que para a economia de polinização a produção de valor é muito ligada à circulação, à atividade de agenciamento dos cérebros em rede, a atividade de ir de flor em flor. “Isso poliniza e se multiplica na sociedade, criando um valor totalmente relacional. As abelhas têm essas duas atividades interligadas”.
Ao contrário, “na cabeça neodesenvolvimentista, do qual a esquerda brasileira faz parte, caracterizada também pelo seu ‘estadocentrismo’, se pensou apenas na produção de mel, e não na polinização”, pondera Cocco.
Retomando o argumento da financeirização, o pesquisador afirma que, no Brasil, o debate sobre finanças é tratado ao longo de duas linhas. “Uma dela é, propriamente, como se apreende a financeirização. A outra é sobre as políticas públicas, qual seu sentido, em particular aquelas de distribuição de renda. São duas linhas paralelas, mas interligadas.
Essa interdependência do debate está sendo dramatizada desde 2015 pelo ‘ajuste desajustado’ do governo Dilma, e o será novamente, pois será a pauta do governo Temer, sem dúvida”.
Em geral se fala sobre financeirização no Brasil tendo como panorama os juros estratosféricos, o que deriva dos bancos terem demasiado poder econômico e político. Porém é preciso pensarmos na financeirização como um fenômeno global, e refletir, inclusive, no caso da Europa, onde há uma situação grave de dívidas públicas nesse contexto.
O que se diz no Brasil é que as finanças são a causa da crise, numa esfera fictícia que coibiria o desenvolvimento da indústria, por exemplo. Reduziria, portanto, a produção de mel, para recuperar a metáfora inicial que Cocco traz de Yann Moulier Boutang. Mas não podemos ser contra as finanças, simplesmente. O debate é outro.
“Tende-se a fazer um debate maniqueísta contra ou a favor do mercado. Trata-se de uma falsa oposição”, adverte Cocco. Ao passo que as finanças seriam algo totalmente fictício, a moeda, ao contrário, seria algo real ao ponto de como criticar as finanças, a taxa de juros. A moeda em si foi destruída quando “transformada em mel”. Nesse ponto, os economistas mais ortodoxos acertaram mais do que os heterodoxos em meio a essa crise.
A temática da desigualdade perpassou toda a explanação conduzida por Giuseppe Cocco. “Não é mais possível pensar a luta contra a desigualdade e o fortalecimento da democracia longe do papel, do valor da moeda. Aí chegamos nas políticas públicas e sociais de transferência de renda. O que está acontecendo fundamentalmente é que o debate contra a desigualdade e distribuição de renda é que há um consenso do ponto de vista retórico”, argumenta.
Precisamos reinventar o terreno das reformas, ou toda uma geração de direitos será varrida. Mas esses direitos não são expressão da diminuição de desigualdades. Se estamos no mundo da polinização, é isso que precisamos “bancar”, a dimensão social da mobilização, sem a qual não haverá capacidade no Brasil de entrar por cima, e não por baixo, da globalização. Para Cocco, a economia caminha rumo à polinização, a exemplo do que ocorre com alternativas como o Uber e o Airbnb.
Acerca da situação política brasileira, Cocco diagnostica um esgotamento político, ético e de experimentação neodesenvolvimentista, capitaneada sobretudo pelos governos petistas desde 2003. Em seu ponto de vista, precisamos encontrar alternativas, e não impôr soluções autoritárias. E esse modelo, sentencia, está esgotado.
Aberto ao público, o debate foi marcado por questões que reverberaram as “provocações” trazidas por Cocco. A temática orçamentária, a vontade política e a desigualdade social pautaram a maioria das perguntas. Será que há mesmo o desejo da sociedade brasileira de superar essa desigualdade? Para Cocco, não houve uma mudança estrutural na sociedade em nosso país, que continua sendo excludente e detentor de uma mídia que segue as mesmas pautas conservadoras.
Porém, em seu ponto de vista, não é admissível que a sociedade aceite o esvaziamento de protestos legítimos como foram aqueles de 2013 e os de 2015 e do início de 2016, contra políticas adotadas pelo PT. A figura dos “coxinhas” como articulador de desestruturação das manifestações precisa ser superada.
“Vamos assistir quietos a equívocos da esquerda assim como ocorreu na URSS e outros países cujos governos eram da mesma orientação ideológica? Por que a esquerda tem tanta dificuldade de fazer autocrítica?” Em seu ponto de vista, o grande compromisso da esquerda deve ser com a verdade, e não com partidos.
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A esquerda brasileira neodesenvolvimentista está fixada na “produção do mel”, e não na “polinização” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU