03 Dezembro 2020
"Diante de tudo o que estamos vivendo, em vez de nos deixarmos levar pela ansiedade, o que não ajuda e só cria mais confusão, perguntemo-nos antes o que a pandemia exige que nós mudemos. Talvez nos peça para repensarmos nossa relação com a saúde, que não é apenas a ausência de doença - e estou escrevendo isso da enfermaria de Gallarate! -, de nos medirmos com a morte?", escreve Bartolomeo Sorge, jesuíta italiano, ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica e do Instituto de Formação Política Pedro Arrupe, em Palermo, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 02-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini. Bartolomeu Sorge faleceu no dia 02-11-2020.
Neste longo período de pandemia, vivi praticamente como um recluso ou, mais propriamente, como um eremita. De fato, o superior de nosso Instituto Aloisianum de Gallarate foi muito rígido: nenhum padre pode sair de casa e nenhum estranho pode entrar. Ele basicamente colocou todos nós em quarentena!
Tal rigor se explica não apenas pela fidelidade às disposições governamentais, mas também porque o Instituto Aloisianum, antiga sede de nossa faculdade de filosofia, se transformou em enfermaria para os jesuítas idosos ou enfermos: se o vírus entrasse, seria um massacre! Afinal, o Covid parou toda a humanidade, tanto que tive a sensação de assistir aos ensaios gerais do Juízo Final! Muitas vezes me perguntei: “Como toda a humanidade, uma população de bilhões e bilhões, irá fazer para tomar conhecimento e prestar conta de toda a história de milênios, todos juntos e ao mesmo tempo?”. O fato de um vírus, minúsculo e invisível, conseguir bloquear toda a humanidade ao mesmo tempo, obrigando os indivíduos de todas as latitudes a se fechar em casa e refletir sobre a gravidade da situação, me fez pensar instintivamente no Juízo Final. Na verdade, todos nos conscientizamos do fato de que a humanidade é uma grande família, de que existe um destino comum pelo qual somos todos corresponsáveis. (...)
Em outras palavras, a pandemia expôs o engano do individualismo, porque nos fez sentir em primeira mão que os seres humanos são feitos para apertar as mãos entre si, para se ajudar em espírito de solidariedade fraterna: ou nos salvamos todos juntos ou morremos todos juntos. (...)
Precisamos devolver uma alma ética à nossa sociedade, ou seja, precisamos criar um novo humanismo que nos reúna a todos em torno do valor fundador da convivência civil, que é a solidariedade. Este trilho - ética e solidariedade - é a única direção a seguir, depois da experiência do coronavírus, para reconstruir uma Itália e uma Europa segundo a vontade de Deus e em vista de um efetivo bem comum. Ética, isto é, respeito pelos valores comuns, com a dignidade da pessoa e seus direitos fundamentais inalienáveis no centro (que ninguém pode tirar porque ninguém os dá, exceto Deus), e ao mesmo tempo a solidariedade. Se não aceitarmos esse binômio, não aprendemos a lição que veio da crise da pandemia. Portanto, o trabalho que devemos fazer a nível econômico, jurídico, sanitário, artístico é redescobrir a dimensão ética e transcendente das relações sociais, sabendo que ninguém se salva sozinho, nem será possível construir uma humanidade melhor, senão todos juntos. (...)
O Papa Francisco tem razão quando denuncia as graves consequências da “cultura do descarte”, aquela cultura que se baseia na lógica, hoje cada vez mais generalizada, do “descartável” e atinge não só os seres humanos, como infelizmente aconteceu com idosos em muitas casas de repouso, mas também os objetos que rapidamente se transformam em lixo. Portanto, aplicando o que o Papa escreve na encíclica Laudato si', precisamos hoje saber aproveitar a oportunidade da epidemia para difundir uma nova "cultura do cuidado" ou da responsabilidade, através de uma profunda mudança de mentalidade e de estilo de vida individual, familiar e coletivo. (...)
Lembramos que a longevidade é um privilégio, e digo isso com gratidão pensando nos meus 91 anos. Devemos estar atentos à solidão, como nos disse o Papa Francisco por ocasião do 1º Congresso Internacional da Pastoral dos idosos: “A velhice não é uma doença, é um privilégio! A solidão pode ser uma doença, mas com caridade, proximidade e conforto espiritual podemos curá-la”. (...)
O verdadeiro problema está no fato de que hoje colocamos de lado o pensamento da morte. Isso não acontecia no passado. Havíamos aprendido a conviver com a morte diariamente; e fazíamos questão que um ente querido não morresse no hospital, mas viesse a morrer em casa! Hoje mudou o costume e mudou também a aparência externa de nossos cemitérios, cada vez mais parecidos com museus cheios de estátuas e lápides louvando a vida do que com "dormitórios" onde os falecidos jazem no aguardo da ressurreição! O Covid, com suas centenas de mortes todos os dias, nos trouxe de volta à realidade. E que realidade é essa? A nossa Constituição reconhece a saúde como um direito fundamental do indivíduo em relação à comunidade. De fato, no art. 32 está escrito: “A República tutela a saúde como um direito fundamental do indivíduo e interesse da comunidade, e garante assistência médica gratuita aos indigentes”. A saúde, portanto, deve ser tratada como uma questão de interesse coletivo, como um bem comum como a educação ou o meio ambiente, por exemplo. Se, por outro lado, reduzimos a saúde a mercadoria, em torno da qual desenvolver interesses econômicos e empresariais - como já vem ocorrendo há vários anos em algumas de nossas Regiões - pagamos as consequências, que estão à vista de todos.
Também é verdade que nossa relação com a saúde mudou com o tempo, e disso perdemos nossa memória. Antigamente, era quase "normal" ficar doente e até morrer jovem, pois os cuidados médicos à disposição eram limitados. Agora talvez tenhamos caído no excesso oposto, ou seja, não levamos mais em consideração a possibilidade de adoecer, "pretendemos" estar sempre saudáveis e retiramos a morte do nosso horizonte de vida, bem como do discurso público.
A doença e a morte hoje se tornaram tabu! Gosto de lembrar que nos estatutos da Organização Mundial da Saúde, firmados em Nova York em 1946, está escrito: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade". E como podemos esquecer as palavras do Papa Francisco, em meio ao lockdown de março de 2020? “Avançamos a toda velocidade, sentindo-nos capazes de tudo. Ávidos de ganhos, deixamos que as coisas nos absorvessem e ficamos atordoados pela pressa. Não acordamos diante das guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o clamor dos pobres e do nosso planeta. Continuamos impertérritos, pensando em nos manter sempre saudáveis em um mundo doente”. A nossa saúde e a de todo o mundo está ligada a todas as relações entre nós, seres humanos e também com os outros seres vivos; e este vírus, provavelmente passado do morcego ao homem, é a prova disso!
Diante de tudo o que estamos vivendo, em vez de nos deixarmos levar pela ansiedade, o que não ajuda e só cria mais confusão, perguntemo-nos antes o que a pandemia exige que nós mudemos. Talvez nos peça para repensarmos nossa relação com a saúde, que não é apenas a ausência de doença - e estou escrevendo isso da enfermaria de Gallarate! -, de nos medirmos com a morte?
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Ou nos salvamos juntos ou morremos juntos. Artigo de Bartolomeo Sorge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU