"A relação de uso com a natureza desdobra-se numa responsabilidade interpelada, pois o uso que fazemos dela se desdobra na forma-de-vida que construímos. Mais uma vez, a relação com a natureza mostra sua radical inapropiabilidade e como consequência a violência ontológica que representa reduzi-la a mera mercadoria exposta a predação compulsória. Esses princípios da filosofia do uso e sua inapropiabilidade das coisas, constitui a base do que podemos considerar o comum."
O artigo é de Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz.
Castor M. M. Bartolomé Ruiz é professor titular dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Membro da diretoria da Associação Ibero Americana de Filosofia Política (AIFP), coordena o Grupo de Pesquisa CNPq, "Ética, biopolítica e alteridade" e a Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. Escreveu inúmeros livros, dos quais destacamos: La mímesis humana: la condición paradójica de la acción imitativa (OmniScriptum Management GmbH – EAE, 2016); Os paradoxos do imaginário (Editora Unisinos, 2015) e Direito à justiça, memória e reparação (Casa Leiria, 2010).
A recentemente celebrada COP30 renovou o debate público a respeito da natureza. Entre os muitos tópicos e perspectivas que o debate sobre a natureza tem provocado há décadas, destacamos um aspecto que subjaz a todos os demais e que também permeia outras dimensões do humano. Estamos nos referindo à relação entre a natureza e o comum.
A problemática a respeito do que pode ser denominado de comum emerge como uma das grandes encruzilhadas do século XXI. É uma encruzilhada civilizatória na qual o comum está sendo expressamente negado pela cultura individualista do capital, do seu modelo de mercado e da antropologia por eles difundida, que se instalou como cultura hegemônica a partir do século XVII. Mas também a crise do comum se aprofundou ao longo do século XX pela frustração histórica de falsas experiências políticas que se diziam comunitárias ou comunistas.
Numa rápida análise podemos constatar que vivemos imersos numa cultura essencialmente individualista. A hegemonia do individualismo como marca antropológica da nossa civilização não é casual nem pontual, é o resultado de um longo processo de quatro séculos da exaltação do individualismo como característica essencial da natureza humana e do social. A exaltação do individualismo legitima o modelo econômico do capitalismo. Para a cultura do capital, tudo o que existe pode ser reduzido a mercadoria como valor essencial, ou, caso contrário, não tem valor nenhum. Por isso, tudo o que é capturado pela lógica do capital é transformado em mercadoria e como consequência imediata fica exposto à exploração mercantil da mesma. A vida humana e todas suas dimensões e a vida da natureza em toda sua complexidade é valorizada pela cultura do capital como mercadorias potenciais para a obtenção de lucros indefinidos. Fora da lógica da mercadoria, resta aquilo que não tem valor algum para o capital e por tanto pode ser simplesmente descartado. Nesse dilema, a vida reduzida a mercadoria está capturada como uma “coisa” para a exploração mercantil como se fosse um insumo produtivo. Caso contrario, as formas de vida que não podem capitalizar-se como mercadorias, estão expostas ao descarte da exclusão ou extinção.
A cultura do capital criou, de modo conexo, uma antropologia individualista que legitima filosoficamente suas pretensões econômicas. A antropologia individualista do capital tem por axioma o princípio de que o comportamento humano só se motiva pelo “interesse próprio”. Ou seja, o interesse próprio seria uma espécie de pulsão natural que os humanos temos, tornando o egoísmo um valor social. Este axioma antropológico surgiu nos pensadores do século XVII como Hobbes, Locke, entre outros, e se consolidou como princípio civilizacional de nossa cultura individualista. Criamos uma civilização na qual o interesse individual é considerado o motor da história e da sociedade. Segundo esse axioma egocêntrico, o egoísmo é um instinto natural que perfaz o modo de ser da natureza individualista em todas as relações humanas.
Este é o axioma antropológico no qual se fundamenta o liberalismo econômico como doutrina do capital. Os pensadores do liberalismo econômico dos séculos XVII-XVIII desenvolveram a teoria do “estado de natureza”, a qual pretende explicar que o ser humano no “estado de natureza” é essencialmente um indivíduo em estado de concorrência natural com os outros indivíduos para tirar vantagem própria em tudo o que faz. Essa antropologia individualista consolidou outro axioma antropológico do mercado liberal, o qual afirma que a competição natural entre todos os indivíduos concorre para o equilíbrio da oferta e da demanda. A tal ponto que a soma dos vícios individuais, provocados pelo egoísmo natural, se transforma em uma “virtude social” porque conseguiria o equilíbrio do mercado através da “livre concorrência individual”.
Com esses princípios antropológicos assentados, a cultura do individualismo avançou por séculos até se instalar na atualidade como uma civilização individualista. No século XX os pensadores neoliberais como Friedrich Hayek, Ludwing Von Misses, Milton Friedman, entre outros, aperfeiçoaram as bases teóricas do individualismo ao inserir novos princípios filosóficos como aquele que afirma que a própria vida individual deve ser compreendida como um empreendimento e uma empresa destinados a obter lucratividade. Nesse novo axioma neoliberal, o indivíduo não é concebido mais como um mero trabalhador que aluga sua força de trabalho para obter um salário. Senão que todo indivíduo é naturalmente um empreendedor ou empresário de si. Ou seja, todos somos indivíduos que naturalmente devemos investir nossas capacidades naturais a modo de empresa para obter rendimentos. Todo indivíduo é um “empresário de si”, que tem por natureza a possibilidade de fazer de sua vida, de seus afetos, de seus relacionamentos, de suas amizades, de seus conhecimentos, etc, um investimento. Tudo pode ser projetado na lógica do investimento de um empresário de si para obtenção de ganhos ou lucros diversos. A figura antropológica do “empresário de si” proposta pelos pensadores neoliberais reflete com muita fidelidade o escopo de uma civilização individualista que não cessa de aprofundar a lógica do individualismo até o paroxismo.
A civilização individualista na qual estamos imersos conecta os princípios antropológicos do interesse próprio e do egoísmo natural com o axioma, também supostamente antropológico, de que o ser humano define sua essência humana pela capacidade da apropriação das coisas. Ou seja, pela sua capacidade de transformar todas as coisas em propriedade para si. Segundo esse axioma a propriedade e a possibilidade da apropriação das coisas (e das pessoas) que as transforma em propriedade para si constituem dimensões antropológicas essenciais da natureza humana, e consequentemente são propriedades essenciais da sociedade individualista. O axioma da apropriação natural que transforma naturalmente as coisas em propriedade para si conduziu diretamente para a cultura da mercantilização inexorável de todas coisas. Mas também para a mercantilização natural da vida humana e todas as formas de vida da natureza. O axioma da apropriação natural possibilitou a transformação em mercadorias as próprias relações humanas e a natureza em sua complexidade. Assim a sociedade de consumo transformou os desejos em objeto para governar a conduta dos indivíduos massificando os comportamentos e conseguindo direcioná-los para desejar objetos de consumo pré-programados. Os algoritmos transformaram nosso tempo de vida em capturas de tela que rendem economicamente. Os afetos são manipulados como mercadorias que podem render produtividade na consecução de metas ou na venda de produtos. Da mesma forma, a lógica da apropriação transformou a natureza numa gigantesca mercadoria aposta para exploração dos mais expertos. A predação da natureza tornou-se um modo natural de explorar ad infinitum a sua condição mercadológica. Desse modo, o princípio filosófico da apropriação natural reduz tudo, a vidas das pessoas e a natureza, a mera mercadoria exposta para uma exploração produtiva e lucrativa. Este é um dos dogmas da civilização individualista na qual estamos imersos.
O princípio de propriedade que vigora na atual civilização individualista é aquele que ainda pertencia ao direito romano, segundo o qual o proprietário da coisa tem uma relação de soberania absoluta sobre aquilo que é sua propriedade, e por tanto ele tem o direito de abuso daquilo que é propriedade sua. Este é um dos fatores culturais que explica a impunidade que historicamente houve e ainda permanece em relação à predação indiscriminada e em grande escala da natureza como se fosse uma mera mercadoria sob o estigma da propriedade. A redução da natureza e suas formas de vida a mercadoria suscetível de apropriação operou (e opera) como princípio filosófico legitimador da predação indiscriminada, da extinção de espécies inteiras pela caça, da extinção de biomas para exploração comercial, etc. O princípio antropológico da possibilidade de apropriação da vida e sua redução a mera mercadoria está também na base dos colonialismos realizados durante os séculos passados. As colônias eram consideradas mera propriedade das metrópoles. Os habitantes das colônias eram considerados meros súditos que pertenciam como objetos à metrópole. Essa condição de mercadoria humana é o substrato do grande negócio mercantil dos séculos XVII-XVIII, a escravidão. Os escravos nada mais são do que o resultado final da lógica da propriedade e apropriação natural da vida que está exposta naturalmente à lógica da mercadoria. Escravidão, colonialismo e predação da natureza são desdobramentos coerentes da lógica da apropriação e da redução a propriedade mercantilizável da vida humana e das formas de vida da natureza.
Porém, a crise atual do comum, além de estar corroída pela hegemonia da civilização individualista anteriormente sintetizada, também carrega a frustração dolorosa de diferentes experiências históricas que pretenderam implantar uma falaciosa versão do comum. O peculiar do conjunto destas experiências frustrantes do comum é que todas elas continuaram a definir o comum a partir da relação com a propriedade ou capacidade de apropriação. Em geral, as diferentes experiências frustrantes do comum substituíram a relação de apropriação e de propriedade individualista por uma apropriação comum ou propriedade coletiva. Porém, todas elas mantiveram o mesmo princípio da antropológica capitalista que define o ser humano a partir de sua relação de apropriação e propriedade. Para estas experiências frustrantes do comum, o único que haveria que fazer para superar a cultura individualista é substituir a propriedade privada pela propriedade estatal, ou trocar a apropriação individual pela propriedade comum de algo que nos identifica. Como veremos mais adiante, o desafio que nos aparece neste século XXI é conseguir pensar o comum para além da relação de propriedade, seja individual ou coletiva.
Há várias experiências históricas frustrantes do comum. Entre outras experiências históricas que provocaram a frustração do comum, podemos mencionar inicialmente os nacionalismos. O nacionalismo se constitui com base no princípio antropológico de que há uma propriedade comum que cria a identidade nacional. Essa propriedade comum pode ser a língua, a raça, a religião, a cultura, porém o elemento primordial do nacionalismo é que a apropriação coletiva de algum ou de todos esses símbolos possibilita seu surgimento como experiência apropriação de algo comum. A apropriação comum de uma identidade produz um tipo de identidade possessiva a qual origina o nós frente aos outros, que são estranhos. O nós comum produzido pelas identidades nacionais possessivas da apropriação possibilita fabricar o estranho como estrangeiro que não possui a nossa língua, a nossa religião, a nossa raça a nossa cultura. O outro estranho e estrangeiro é facilmente transformado pelo nacionalismo possessivo num inimigo. Na condição de inimigo, o estranho/estrangeiro há de ser combatido por se tornar um perigo para a sociedade. Os nacionalismos possessivos fabricam identidades comuns a partir do princípio da apropriação de elementos identitários. Ou seja, o princípio da apropriação e da propriedade que opera na produção da cultura individualista, também está presente na construção de uma falsa noção do comum nas experiências dos nacionalismos. A (con)fusão do comum com a apropriação coletiva de símbolos, torna o nacionalismo uma das experiências frustrantes mais impactantes da história e da atualidade. A perversão do comum com a apropriação produz as beligerantes experiências dos nacionalismos possessivos e excludentes.
Entre outras experiências frustrantes do comum também cabe destacar as diferentes versões políticas dos regimes comunistas, que desembocaram em autocracias autoritárias. Estas fizeram do coletivismo uma falsa versão do comum e transmutaram o comum num coletivismo burocrático. O paradoxal destas experiências frustrantes do coletivismo é que implantaram a noção do comum baseada no princípio da “propriedade coletiva dos meios de produção”. Para estas experiências frustrantes, o comum continuava vinculado ao conceito de propriedade. Só que em vez da propriedade individual, agora essas experiências pretendiam implantar uma versão política do comum a partir da “propriedade coletiva”. Ou seja, estes coletivismos políticos mantiveram o mesmo princípio da antropologia capitalista segundo o qual o que define o comum no ser humano é sua capacidade de apropriação e propriedade, porém agora seria uma propriedade coletiva. Desse modo, o comum continuou vinculado ao princípio da propriedade e da apropriação. No lugar do indivíduo, surgiu a burocracia estatal que reproduziu de outra forma a lógica da redução do comum à propriedade e como consequência abriu espaço para que novas formas de exploração da vida surgissem nos coletivismos estatizantes. Um dos sinais mais perversos dessa assimilação do comum à propriedade a apropriação é o modo como quase todos os regimes políticos coletivistas trataram a natureza como mera mercadoria. Por exemplo, a URSS conseguiu secar quase completamente o Mar de Aral, que era um dos maiores lagos da água doce do mundo, para implementar megaprojetos de produção de algodão. A natureza, nos regimes de propriedade coletiva, continuou a ser uma mercadoria exposta a predação mercantil sem limite.
As breves reflexões anteriores, nos desafiam a tentar construir o comum a partir de uma relação que vai além da propriedade e apropriação. Nesse caso, temos que pensar que o comum se estabelece a partir de uma relação com o “inapropiável”. Talvez sejamos desafiados a pensar uma outra cultura baseada na relação da inapropiabilidade como dimensão constitutiva do humano e da vida. Pensar o comum a partir da inapropriabilidade significa que aquilo que é comum não pode ser reduzido a propriedade nem é susceptível de apropriação. Nesse caso, cabe questionar, mas qual seria a relação possível que não seja uma relação de apropriação de algo? Temos que pensar na possibilidade de criar uma cultura diferente a partir da relação de “uso”.
A relação de uso é substancialmente diferente da relação da apropriação. Na relação de apropriação se pressupõe uma soberania absoluta que reduz a coisa a propriedade e abre para o abuso da possessão como característica essencial. Na relação de uso se percebe que não existe uma soberania absoluta de um suposto proprietário, senão que na relação de uso aquele que usa também é constituído no seu modo de ser e na sua forma de viver pelo modo como usa. Ou seja, o uso apresenta o reconhecimento de que longe de sermos sujeitos soberanos proprietários de coisas, estamos sempre numa relação de alteridade na qual aquilo que usamos nos constitui no modo como somos na nossa forma-de-vida. Isso significa que a relação de uso não é uma mera posição moral em relação às coisas, senão que a relação de uso é constitutiva ontologicamente do modo de sermos humanos. Somos humanos porque na relação de uso aquilo que usamos nos constitui na forma-de-vida que vivemos e por tanto no tipo de subjetividade que vamos tecendo ao longo de nossa existência. A relação de uso não é uma mera posição intencional moral do sujeito, senão que é o modo como os humanos nos tornamos sujeitos na relação com a alteridade. O uso é uma relação bidirecional, ao usarmos uma coisa somos constituídos pelo modo como usamos. O que caracteriza a relação de uso é a inapropiabilidade daquilo que se usa. Na relação de uso sempre há um excedente da alteridade que impede a relação de soberania absoluta ou de apropriação plena.
Um exemplo concreto desta filosofia do uso podemos encontrá-lo na nossa relação com o próprio corpo. A relação de apropriação e soberania absoluta do corpo é uma miragem da lógica da propriedade. Nós não temos soberania de propriedade sobre nosso corpo, porque ele tem uma dinâmica própria que nos excede e o torna inapropiável. Por exemplo, o corpo tem uma dinâmica de envelhecimento sobre a qual nós não temos domínio nem conseguimos nos apropriar. O corpo tem dinâmicas próprias de doenças e contingências que excedem toda forma de soberania ou apropriação absoluta sobre ele. Por isso, nossa relação com o corpo é de uso. Com o corpo mantemos uma intimidade total, porém ele se torna inapropriável porque não temos poder de domínio sobre ele. A relação de intimidade total com o corpo exige um reconhecimento e ao mesmo tempo um cuidado. A relação de reconhecimento e cuidado do corpo preservado e respeitado para viver com melhor qualidade e intensidade da vida, essa relação é uma relação de uso.
Os princípios da relação de uso que mencionamos em relação ao corpo podem ser expandidos para muitas outras realidades, entre elas a natureza. A relação de uso se caracteriza por tornar aquilo que se usa íntimo de si sem transformá-lo em mercadoria exploratória. A relação de uso promove o reconhecimento do que se usa como forma de preservá-lo ao máximo, em lugar da predação como direito de abuso da propriedade. A relação de uso destaca a interdependência existente com aquilo que se usa. A relação de uso faz da interdependência a característica ontológica pela qual aquilo que usamos nos constitui naquilo que nos tornamos em nossa forma-de-vida, assim como a nossa forma-de-vida impacta naquilo que usamos. Este princípio de interdependência inerente à relação de uso se torna extremamente evidente na relação com a natureza. A interdependência desenvolvida pela relação de uso não é mera questão moral, mas ontológica. Desse modo, nos constituímos na forma-de-vida que somos através das relações de uso que mantemos.
A relação de uso desenvolve uma intimidade singular com aquilo que usamos ao mesmo tempo que reconhece a alteridade irredutível a sua posse. No uso, a intimidade se desenvolve na medida que reconhecemos que aquilo que usamos nos constitui no modo como somos. A intimidade desenvolvida pela relação de uso é diferente do individualismo promovido pela apropriação. O individualismo promove uma relação de domínio soberano e torna o indivíduo um predador real ou potencial do que possui. A intimidade da relação de uso desenvolve o respeito do que se usa, por reconhecer sua irredutibilidade à apropriação. Concomitantemente, a intimidade da relação de uso manifesta a diferença como característica da relação.
A relação de uso com a natureza desdobra-se numa responsabilidade interpelada, pois o uso que fazemos dela se desdobra na forma-de-vida que construímos. Mais uma vez, a relação com a natureza mostra sua radical inapropiabilidade e como consequência a violência ontológica que representa reduzi-la a mera mercadoria exposta a predação compulsória. Esses princípios da filosofia do uso e sua inapropiabilidade das coisas, constitui a base do que podemos considerar o comum.
O breve esboço que estamos desenhando da filosofia do uso em relação com a natureza não é algo puramente teórico. Assim como os princípios da antropologia individualista cimentaram as bases da atual civilização mercantilizadora da vida, as teses a respeito de uma filosofia do uso e a radical inapropiabilidade daquilo que é comum poderão se tornar paradigmas de um novo modelo civilizatório. Se observamos atentamente os debates internacionais em relação à natureza, o clima, os biomas, a poluição ambiental, a camada de ozônio, etc., todos esses debates se realizam em confrontação com a civilização mercantilista da vida, hoje predominante. Porém, todas as posições críticas da mercantilização da vida e da natureza mantém um substrato comum, que nem sempre se explicita, qual seja que a natureza é algo comum que não pode reduzir-se a propriedade. O pano de fundo dos grandes debates que defendem a natureza utilizam-se do princípio da sua inapropiação. Consideram que a natureza é um bem comum que excede toda forma de relação de propriedade. Isso implica que temos que desenvolver um outro tipo de relações a escala global com a natureza que exceda a mera lógica da apropriação. Com base nesse princípio da inapropiabilidade radical da natureza, os debates ambientais avançam, às vezes muito lentamente, na direção de pensar uma nova relação de uso com a natureza. Uma relação de uso que a reconhece como alteridade que constitui nossa forma de vida e muitas outras formas de vida. Desse modo, a filosofia do uso já está operativa, ainda que nem sempre totalmente explicitada, nos debates que desde há décadas se travam entorno da natureza como realidade inapropiável e por tanto comum.
Um exemplo histórico que mostra a importância e a viabilidade dos princípios do comum podemos encontrá-lo no estatuto singular que foi criado para o continente da Antártida. A Antártida é a única região da terra que é inapropiável, porque se a considera um bem comum de toda a humanidade. É um continente inteiro sobre o qual se definiu uma relação diferente da mera apropriação, ninguém pode ser proprietário de qualquer parte da Antártida, porque foi considerado como algo comum. Ninguém pode explorar a Antártida para fins comerciais, nem extrair dela qualquer forma de mercantilização. O que torna comum a Antártida é a sua inapropiabilidade. É um continente sobre o qual ninguém pode ter nenhum tipo de propriedade ou apropriação. Por ser inapropiável é considerado comum. Em vez da relação de apropriação, se definiu internacionalmente que as relações possíveis com o continente da Antártida são relações de uso. Podem se estabelecer missões científicas para estudar e conhecer, para melhor preservar e cuidar. Estes são os princípios da relação de uso, que constitui a base do comum.
A relação de uso exclui toda forma de abuso. A relação de uso desconstrói o dogma da propriedade e da apropriação que afirma que o proprietário é soberano do que possui e possui o direito de abuso. A relação de uso estabelece uma interdependência ontológica entre quem usa e o que se usa, desdobrando-se numa ética da responsabilidade pelo que se usa. Pelo princípio ontológico da relação de uso nunca conseguimos manter uma forma de soberania absoluta sobre o que usamos, e por tanto qualquer forma de apropriação é uma forma violência ética e ontológica que termina retornando sobre aqueles que a cometem.
Poderíamos mencionar outros exemplos de problemáticas da natureza nos quais já estão operativos alguns princípios da filosofia do uso inerente ao comum. Por exemplo, a quase totalidade das legislações preservacionistas de espécies ou de biomas ameaçados mantem nas suas entrelinhas os princípios da filosofia do uso daquilo que é inapropiável porque é comum. Se tomarmos o exemplo da legislação para preservação das baleias e a proibição internacional da sua caça, poderemos constatar uma forte tensão entre estas duas filosofias em disputa de nossos tempos. De um lado, a que pretende ainda considerá-las uma mercadoria para exploração comercial e, de outro lado, a que as considera um bem comum da natureza, por tanto inapropiável como mera mercadoria. Segundo a visão do comum como inapropiável, a relação que se deve manter com as baleias, ou com outras espécies ou biomas da natureza, é uma relação de uso.
A perspectiva do comum como inapropiável atravessa a maioria dos debates atuais a respeito da natureza. Há uma tensão constante entre a perspectiva individualista que pretende manter o caráter de mercadoria apropriável sobre todos os bens da natureza e a perspectiva do comum que os caracteriza como inapropriáveis porque são bens comuns. Os debates sobre a camada de ozônio, a poluição ambiental ou o aquecimento global espelham esta tensão. Inclusive com o paradoxo de ter criado, por exemplo, um mercado de descarbonização da natureza, que significa tornar a descarbonização uma forma de mercadoria que facilite o objetivo maior da despoluição ambiental. Estas tensões e paradoxos entre os princípios hegemônicos da apropriação mercantilista da natureza e a pretensão de considerá-la um bem comum inapropiável mostram que em nossos tempos a filosofia do comum permanece vigente na luta pela defesa da natureza, porém está tentando constituir o comum fora dos parâmetros da apropriação.
Os princípios do comum como inapropiável que se desdobram numa relação de uso transcendem a problemática da natureza e se inserem na constituição social do humano. Entre outros exemplos da perspectiva do comum como inapropiável na sociedade podemos mencionar a problemática do público frente ao estatal. Um bem estatal se define pelo direito de propriedade coletiva de uma entidade estatal sobre um bem. No conceito de estatal permanece e prevalece o conceito de apropriação do um bem por uma entidade coletiva que o gerencia como parte de seu patrimônio. A relação estatal se constitui pela apropriação institucional e se desenvolve através da burocracia, que por sua vez gerencia essa forma de apropriação coletiva. O estatal age através da apropriação coletiva dos bens e da gestão burocrática dos mesmos. O estatal ainda mantém a apropriação (coletiva/institucional) como paradigma do que ele considera comum, quando na verdade é uma apropriação burocrática que nega o comum.
A dimensão pública de um bem ou um bem público, diferente do estatal. Público é aquilo que é comum e como tal não pode ser apropriado por alguém, nem ser transformado em qualquer forma de propriedade seja estatal, corporativa ou coletiva. Um bem se define como público porque é comum. Um bem comum, por ser tal, se torna um bem público. Quando, por exemplo, definimos a saúde ou a educação como bens públicos estamos reconhecendo que são bens comuns que não podem ser reduzidos a meras mercadorias expostas à lógica da exploração comercial e do lucro. Ao defini-los como bens públicos comuns, sinalizamos que são bens inapropiáveis e por tanto comuns e públicos.
A problemática dos bens públicos está atravessada também pela tensão entre a perspectiva individualista que pretende reduzi-los a mercadorias para explorá-los lucrativamente e a perspectiva do comum que os considera inapropiáveis e por isso devem ser cuidados na forma do uso e não explorados na forma da apropriação. As lutas políticas e éticas entorno do que se considera um bem público carregam no seio a disputa pelo que é comum, considerando o comum como aquilo que é inapropriável, assim como a demanda por uma relação e uso.
Embora a problemática do comum como inapropiável seja uma das encruzilhadas de nosso século XXI, ela não é uma problemática nova. O debate a respeito do uso inapropiável das coisas tem várias experiências históricas relevantes, entre elas temos que mencionar a disputa acontecida no século XIII com São Francisco de Assis e os primeiros franciscanos que exigiam o direito a não ter propriedade e viver uma forma-de-vida numa relação de uso das coisas. O movimento franciscano provocou um debate público de alta intensidade, já no século XIII, quando decidiram criar uma forma-de-vida além da apropriação das coisas, mantendo uma relação de uso. Os franciscanos pretendiam viver uma forma-de-vida na qual a liberdade fosse máxima. Para tanto se inspiraram no exemplo da forma-de-vida de Jesus e nas máximas dos evangelhos. O objetivo de São Francisco e do movimento franciscano original era criar uma nova forma-de-vida na qual, vivendo com fidelidade as máximas do Evangelho, se pudesse viver com o máximo de liberdade. Para tanto, consideraram que era necessário constituir uma forma-de-vida para além da apropriação das coisas, pois a propriedade reduz a liberdade da forma-de-vida e ainda afasta do exemplo da forma-de-vida de Jesus. Isso num contexto histórico em que a cúria romana e as altas hierarquias da Igreja viviam uma forma de vida pautada pelo luxo, o poder e as riquezas. Por isso, a proposta do movimento franciscano tornou-se provocativa e polêmica. Os franciscanos se propuseram viver uma forma-de-vida evangélica cuja característica principal, para eles, era viver sem propriedades. Para tanto eles propuseram desenvolver uma forma-de-vida que tivesse como princípio a relação de uso das coisas e não a sua apropriação. Não só viver sem propriedades, mas viver uma relação de uso das coisas que desconstruía qualquer forma de apropriação.
Na prática, já no século XIII, são Francisco e seus seguidores iniciais perceberam que viviam num ponto de encruzilhada possível para criar uma forma-de-vida do comum com base na relação de uso das coisas e não de sua apropriação. Como era de esperar, uma proposta tão ousada de forma-de-vida comum com base na relação de uso das coisas e não da apropriação, suscitou enormes debates nos canonistas e teólogos da cúria romana que, na sua maioria, viam nessa nova forma-de-vida uma espécie de provocação ética e ameaça social ao seu modo de vida baseado na apropriação de grandes riquezas, luxos e poder. A forma-de-vida comum na relação de uso do franciscanismo tornava-se uma interpelação ética e também politica ao modelo de vida luxuosa das elites eclesiais e sociais da época. Ao longo de muitas décadas, ainda no século XIII, se desenvolveram muitos debates e até documentos papais sobre está temática, alguns consentiram a forma-de-vida dos franciscanos, mas outros a condenaram veementemente. Com a perspectiva que a história nos confere, podemos dizer que naquele debate dos franciscanos sobre o direito a desenvolver uma forma-de-vida comum do uso das coisas e não da apropriação, foi um momento singular no qual nunca saberemos ao certo o alcance histórico que poderia ter atingido se tivessem prevalecido as teses da forma-de-vida comum do uso das coisas. O fato é que a partir do século XIII vemos se consolidar a burguesia como classe social e com ela a civilização do individualismo e da apropriação mercantil de todas as formas de vida. Por sua vez, já em pleno século XXI voltamos a reproduzir o debate a respeito da inapropiabilidade do comum e da possibilidade do uso das coisas, ainda eu com outras perspectivas teóricas e sociais.
Ao finalizar esta reflexão não podemos nos furtar de considerar a dimensão eminentemente paradoxal do ser humano e suas contingências, a qual impulsa a viver qualquer forma-de-vida de modo agonístico. Isso significa que no debate que nos ocupa, a condição humana está desafiada a construir formas-de-vida sempre na tensão entre o ideal do comum inapropiável numa relação de uso e a contingência necessária da apropriação de coisas para o consumo. A forma-de-vida humana dificilmente conseguirá coexistir num mero polo ideal, sempre terá que conjugar as tensões agonísticas das possibilidades históricas. Na reflexão que nos ocupa, significa que o comum inapropriável na relação de uso deverá ser o ideal maior que articule os valores, modele a cultura e defina o paradigma do modelo civilizatório. Pois esse ideal do comum inapropiável na relação de uso reverte em qualidade de vida de todas as formas-de-vida do planeta. Por sua vez, esse ideal nunca será fixo nem absoluto, pois os seres humanos temos contingências e necessidades de consumir para existir, na relação de consumo prevalece uma dimensão da apropriação. Embora em toda relação de consumo também coexiste uma dimensão de uso das coisas, pois também somos afetados pelos modos de consumo. No entanto, não é possível fazer o comum como inapropiável numa relação de uso um absoluto sempre, porém pode se tornar o paradigma civilizatório que gerencie as relações sociais e políticas. Em vez disso, estamos vivendo o paradigma civilizatório inverso do individualismo extremo e da mercantilização irrestrita de todas as formas de vida do planeta. Nosso modelo civilizatório hipertrofiou o paradigma da apropriação e o tornou uma lei natural compulsória. O desafio que enfrentamos é pensar um novo paradigma civilizatório e suas formas-de-vida a partir do comum como inapropiável na relação de uso.