16 Dezembro 2024
A natureza deve ser protegida pelos direitos fundamentais, assim como os humanos, defende a advogada em direito ambiental Marine Calmet. Nesse sentido, ela pede que nos inspiremos nos povos indígenas.
Marine Calmet é advogada e especialista em direitos da natureza. Ela preside a associação Wild Legal e acaba de publicar Décoloniser le droit (Decolonizar o direito), pela editora Wild Project.
A entrevista é de Hervé Kempf, publicada por Reporterre, 30-11-2024. A tradução é do Cepat.
Você está comprometida com o reconhecimento dos direitos da natureza. Como você define esse movimento?
É um movimento jurídico global que alia uma nova perspectiva em termos de ética ambiental e um novo conceito de hierarquia jurídica. Trata-se de reconhecer que a natureza é o conjunto de entidades que constituem uma comunidade de vida. Ela é sujeito de direito, mas também titular de direitos fundamentais que lhe são específicos. Trata-se, portanto, de reconstruir uma estrutura jurídica baseada na coexistência com os outros seres vivos e de garantir que os nossos direitos e as nossas liberdades deixem de pressionar o mundo vivo.
Nossos direitos para nós, os humanos?
Sim, pois hoje somos os únicos seres titulares com direitos fundamentais. Além disso, demorou muito tempo para que todos os seres humanos se beneficiassem do estatuto de sujeito. Christopher Stone, um dos fundadores do movimento pelos direitos naturais, lembra que o estatuto dos escravos negros foi durante muito tempo o de bem possuído, que no direito romano os filhos eram propriedade do pai e que levou um tempo extremamente longo para se reconhecer os direitos das mulheres.
Em Decolonizar o direito, você recorda a grande divisão existente no direito romano entre seres humanos e as coisas.
É a summa divisio. Por um lado, existe a categoria das pessoas: os seres humanos, as pessoas físicas e, o que veio muito mais tarde, as ficções jurídicas que são as pessoas jurídicas, as empresas, as associações. E há todo o resto da vida, os objetos, as coisas, os serviços ecossistêmicos, as mercadorias, os recursos cujo uso, exploração e destruição nós banalizamos.
É uma visão binária do mundo: as pessoas ou as coisas. Ao falar de “coisas”, nós as objetivamos e retiramos sua qualidade de sujeito. Traço um paralelo com a colonização francesa, porque é uma negação da outra cultura. Os colonos chegaram aos países colonizados, especialmente à Guiana Francesa, com a ideia de que ali não havia ninguém, e se apropriaram das terras. A ligação com os direitos da natureza é óbvia porque nós, seres humanos, negamos a existência dos outros e, no entanto, habitamos esta terra com eles.
Os direitos da natureza são o direito dos não humanos. Por exemplo, o que significa o direito de um rio?
O reconhecimento da personalidade jurídica dos rios, florestas ou montanhas assume formas muito diversas. Há uma riqueza e profundidade de análise, uma adaptação do direito que não se encontra no direito ocidental. Nos direitos da natureza, colocamo-nos na posição subjetiva de um rio cuja história devemos conhecer. Na Nova Zelândia, por exemplo, o rio Whanganui tem certos direitos que são protegidos pelo povo Maori. Na Colômbia, o rio Atrato foi reconhecido como sujeito de direito, detentor de direitos diversos e defendido de forma diferente por outras culturas.
Um rio é uma comunidade de vida. Ele é feito de água, mas também de margens, de mata ciliar e de uma grande quantidade de seres que com ele e dentro dele convivem. Esta comunidade de vida é uma pessoa moral, jurídica, um agrupamento de seres. E tem direito à existência, à saúde, à regeneração dos seus ciclos de vida. Da mesma forma pensamos numa empresa formada não por uma única pessoa mas como um grupo de pessoas que atuam num interesse comum, partilhando dívidas, vantagens, lucros e perdas. A mesma coisa acontece com a natureza. Compartilhamos perdas e benefícios, mas sem o perceber, porque essa interdependência com a vida foi invisibilizada. No entanto, ela existe.
Esta sociedade que formamos com os seres vivos deve agora ter personalidade própria e beneficiar a proteção dos direitos fundamentais. O movimento pelos direitos da natureza não faz distinção entre direitos humanos e direitos da natureza.
Como é que certos usos de um rio, como a extração de ouro para fazer joias, são menos legítimos do que aqueles usados pelas comunidades que vivem diretamente do rio?
No Equador, o primeiro país a reconhecer oficialmente os direitos da natureza na sua Constituição em 2008, o juiz avalia as atividades no tocante à legitimidade. Ela é definida como aquilo que é fundamentalmente útil ao ser humano para a sua sobrevivência, para a cobertura das suas necessidades essenciais, especialmente alimentares, e que compete com os direitos da comunidade. Pode de fato haver uma violação dos direitos da natureza, mas por um interesse legítimo. É uma história de compromisso.
Por outro lado, quando se trata de uma necessidade não essencial, não vital, puramente especulativa, que resulta na destruição desordenada da natureza, o juiz diz que há incompatibilidade constitucional.
Os juízes têm assim a capacidade de avaliar a legitimidade da intrusão nos direitos de uma comunidade viva por necessidades que são muitas vezes interesses corporativistas, capitalistas, industrializados e que, diante das necessidades específicas das comunidades locais, não têm legitimidade. Para cada caso, busca-se um modelo de governança mais próximo da história das necessidades de identidade local.
Não há uma contradição entre a abordagem do antropólogo Philippe Descola, para quem a natureza é uma invenção da modernidade ocidental do século XVII, e a sua, que insiste no conceito de natureza ao qual devemos dar um direito?
O movimento pelos direitos da natureza é extremamente diversificado. Tanto é que há muitos territórios onde as iniciativas daquilo que chamamos de “movimento pelos direitos da natureza” não têm este nome. No Equador falamos dos direitos da Mãe Terra, da Pachamama. Isto incorpora algo radicalmente diferente, tanto do ponto de vista da cultura ocidental, mas também do ponto de vista da cosmovisão.
Na Índia, por exemplo, Vandana Shiva usa o termo “Mother Earth” (Mãe Terra) e fala de famílias de vida e comunidades de vida. Este pensamento permeia o movimento pelos direitos da natureza. Na Europa, optamos por continuar a usar o termo “natureza” porque não temos um quadro de referência que nos leve a resolver a questão da “natureza” versus “cultura” usando outra palavra.
Poderia Gaia ser esse quadro de referência, como sugere o sociólogo Bruno Latour?
Talvez seja uma questão geracional, mas não uso muito o termo. Por outro lado, gosto muito do pensamento de Glenn Albrecht [um filósofo ambiental] e da sua teoria segundo a qual devemos inventar novas palavras. Na ausência de uma palavra, usamos “natureza” no movimento pelos direitos da natureza.
Como juristas, nos perguntamos qual será a estratégia. Os direitos da natureza tiveram dois caminhos estratégicos: o reconhecimento global, como os direitos da Mãe Terra, da Pachamama no Equador, ou a representação e o reconhecimento local, como os direitos de Whanganui, do rio Yamuna e do glaciar Gangotri na Índia. Na França, a questão é se a natureza será reconhecida como sujeito jurídico com direitos fundamentais na Constituição. Ou isso será feito em etapas? Neste momento, no nosso país, o movimento se materializa através do reconhecimento dos direitos de certas florestas e de certos rios. Existem coletivos em Durance, em Garonne e no Sena.
Estrategicamente, provavelmente começará por estas tentativas locais. A ideia não é separar os humanos do seu ambiente ou separar os humanos da natureza, mas pensar os ambientes. Isto é o que a maioria dos ativistas e militantes no terreno fazem, eles pensam a partir do seu ambiente.
Entre os povos indígenas, muitas vezes existem xamãs que são intermediários entre a comunidade dos humanos e a de outros seres vivos. Os nossos xamãs são os cientistas, aqueles que, apoiando-se num método, expressam de maneira ocidental as necessidades da natureza e nos permitem compreender o funcionamento, as interações dos ecossistemas e das entidades que nos cercam. Exceto que nós não ouvimos nossos xamãs…
Não, de jeito nenhum. Enfim, algumas pessoas não querem ouvi-los. Porque muitas pessoas precisam da ciência e são alertadas pelos fatos científicos. Mas os nossos governantes não os aplicam como deveriam. O lugar dos xamãs em uma aldeia tradicional indígena é muito importante, pois eles aproximam os humanos dos outros humanos, sejam as gerações passadas, os mortos, as gerações futuras, mas também os humanos e os não humanos.
Na nossa sociedade, os cientistas alertam e tentam fazer a ligação entre o que observam, o que calculam, como as mudanças no nosso clima, o colapso da biodiversidade, e nós. Contudo, os alertas dos cientistas não são ouvidos e os políticos escolhem um cenário de desastre. Há uma real urgência em rever o nosso modelo jurídico. Porque as ações que são criminosas para o nosso futuro são perfeitamente legais hoje. Nós não temos as ferramentas legais para enfrentar esta situação.
Não estamos desamparados diante deste poder destrutivo de pessoas que nada ouvem e não ouvem os cientistas?
Na verdade, estamos perdendo uma batalha. Também porque há um questionamento dos nossos modelos democráticos, um aumento dos extremos, uma banalização da violência e há cada vez mais fenômenos políticos que vão contra os nossos interesses humanos e a proteção dos seres vivos. É porque a batalha política está perdida que acredito no movimento pelos direitos da natureza. Em vez de quererem dar uma resposta global, as iniciativas locais mostrarão novos caminhos e construirão alternativas. Inspiro-me muito em Vandana Shiva que diz que quanto mais pensamos em escala global, mais perdemos a nossa capacidade de ação.
No plano jurídico, que mudanças devem ser feitas?
O direito atual projeta um modelo no qual é possível destruir continuamente. Devemos procurar conceber um modelo em que matar, destruir e pilhar já não seja mais tolerável, em que a existência seja protegida e garantida. Deixar um legado às gerações futuras é o alfa e o ômega. Não só sabemos como fazê-lo juridicamente, uma vez que já foi feito por gerações de povos indígenas, e, além disso, é a nossa única ferramenta concebível para proteger os nossos direitos fundamentais. Não se trata de pensar num retorno a outros direitos que seriam totalmente diferentes dos nossos, mas de inspirar-se nos direitos dos povos indígenas para fazer uma transição radical a serviço daquilo que chamamos de “transição ecológica”.
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“Não há distinção entre direitos humanos e direitos da natureza”. Entrevista com Marine Calmet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU