E o povo de Deus encontrou novamente a Palavra. Entrevista com Pietro Bovati

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10 Dezembro 2025

A Constituição Dogmática sobre a Revelação DivinaDei Verbum” é um dos textos mais curtos, mas sobretudo mais inovadores do Concílio. O biblista Bovati afirma: o documento permite dar à Sagrada Escritura uma influência determinante em todos os setores da vida eclesial. A constituição dogmática Dei Verbum, sessenta anos após sua promulgação, não só não perdeu seu vigor e frescor, como continua sendo um dos pilares para a compreensão da atualidade do Concílio Vaticano II e representa uma referência essencial para os biblistas. De tudo isso está convencido o jesuíta Pietro Bovati. Nascido em 1940, discípulo do Cardeal Carlo Maria Martini, foi secretário da Pontifícia Comissão Bíblica de 2014 a 2020, sucedendo nesse prestigiado cargo dois grandes estudiosos da Palavra, jesuítas como ele: Klemens Stock e o Cardeal Albert Vanhoye.

Durante anos, o religioso inaciano lecionou exegese do Antigo Testamento, teologia e hermenêutica bíblica no Pontifício Instituto Bíblico de Roma. E teve a honra de pregar os Exercícios Espirituais (os últimos presenciais) à Cúria Romana e ao Papa Francisco em Ariccia, em março de 2020, intitulados "A sarça ardia pelo fogo: o encontro entre Deus e o homem". "A Constituição Dogmática Dei Verbum de 1965 sobre a Revelação Divina", argumenta o estudioso, "é sem dúvida uma das contribuições mais significativas do Concílio Vaticano II; mesmo em sua forma breve e concisa, teve um impacto inovador extraordinário na vida da Igreja.

Sua promulgação, no entanto, foi preparada tanto pela Constituição Sacrosanctum Concilium de 1963 sobre a Sagrada Liturgia – que em diversos pontos (números 24, 35, 51) se manifestava por uma leitura mais ampla e acessível dos textos sagrados nas diferentes modalidades da oração eclesiástica – quanto pela Lumen Gentium de 1964, que propunha uma visão da Igreja como povo de Deus, ancorando explicitamente sua abordagem à tradição bíblica.

A entrevista é de Filippo Rizzi, publicada por Avvenire, 07-12-2025.

Eis a entrevista.

Um documento que foi 'vivenciado' pelos exegetas da época como um texto único que abria novos horizontes no campo da pesquisa. Pode nos explicar por quê?

Para os biblistas, a Dei Verbum continua sendo ainda hoje uma referência essencial por vários motivos. Em primeiro lugar, porque confere uma importância fundamental à Palavra de Deus transmitida nas Sagradas Escrituras. Em relação a um precedente ensinamento teológico e catequético, norteado por uma doutrina estática e uniforme, foi aberto o horizonte histórico complexo e dinâmico da Bíblia, com suas narrativas, simbolismo e uma carga espiritual que desponta precisamente do acesso pessoal e comunitário com a Palavra de Deus.

A autoridade do documento conciliar completava um processo reflexivo que, a partir da encíclica Divino Afflante Spiritu de Pio XII, de 1943, vinha sendo promovido pelo trabalho dos exegetas, em consonância com diversos pronunciamentos do Magistério Eclesial. Isso acabou resultando no fruto benéfico de um significativo incentivo aos estudos bíblicos e de uma ampla pastoral fundamentada na Bíblia.

A Dei Verbum fomentou o movimento ecumênico, especialmente em sua relação com as Confissões evangélicas; as trocas e os estudos colaborativos aprimoraram a interpretação das Escrituras. Por fim, a própria Dei Verbum pediu que os exegetas não se limitassem a questões filológicas, históricas e arqueológicas do texto sagrado, mas promovessem uma leitura fiel que fosse de utilidade espiritual para todo o povo cristão.

Que lembranças guarda dos anos do Concílio e do acalorado debate que se desenvolveu entre os especialistas em torno da Dei Verbum?

Antes do Vaticano II, o estudo científico da Escritura havia sido motivo de suspeita e crítica por parte do Magistério. O próprio conhecimento da Bíblia era considerado quase secundário na transmissão da fé. Embora a Dei Verbum afirme que "a Igreja sempre venerou as divinas Escrituras" como fez com o próprio Corpo de Cristo (n. 21), é preciso reconhecer francamente que, após o período patrístico, prevaleceu na Igreja a abordagem sistemática da doutrina (escolástica), tanto na teologia quanto na catequese, onde a Escritura tinha uma função marginal.

Além disso, antes do Vaticano II, na liturgia eucarística, universalmente praticada em latim e, portanto, não acessível à maioria dos fiéis, a leitura da Sagrada Escritura era bastante limitada, e os textos do Antigo Testamento eram quase ausentes; a pregação raramente comentava o texto bíblico. Agora, precisamente com as decisões normativas do Vaticano II, a situação mudou radical e felizmente. Muitos exegetas, naqueles anos difíceis, sofreram por seu amor à verdade científica, aliado a um verdadeiro apego à fé cristã. Isso produziu o fruto primoroso do melhor do Vaticano II.

Uma contribuição particular para essa Constituição veio precisamente dos padres do Instituto Bíblico de Roma...

A esse respeito, a contribuição dos biblistas que, durante as sessões do Concílio, desenvolveram importantes iniciativas para ajudar os padres conciliares a produzir um documento valioso sobre a Revelação Divina, deve ser lembrada e honrada.

Recordo o Cardeal Carlo Maria Martini dizendo que os anos do Concílio foram os mais intensos e profícuos da história do Instituto Bíblico, graças à contribuição de especialistas de grande valor como o Cardeal Agostino Bea, Ignace de La Potterie, Albert Vanhoye, Luis Alonso Schökel, Norbert Lohfink e vários outros o menos conhecidos mas que, propiciaram em suas áreas de atuação um diálogo construtivo com os bispos e deixaram a nós, jovens discípulos, um exemplo brilhante de colaboração eclesial reconfortante e frutífera.

O Capítulo VI da Dei Verbum convida o clero e os leigos a dedicarem-se à leitura da Sagrada Escritura e a cultivarem maior familiaridade com o texto bíblico. Quase um programa pastoral, diria o Cardeal Martini. Qual a sua opinião a esse respeito?

As palavras iniciais da Dei Verbum dizem que a “escuta religiosa da Palavra de Deus” é condição indispensável para “a sua proclamação confiante”, fonte de salvação para os fiéis e de comunhão com a Igreja. A própria Constituição, portanto, insiste repetidamente que a Sagrada Escritura deve ter uma influência decisiva em cada setor da vida eclesial.

Também a oração pessoal, que deveria ser alimentada pela Palavra, ainda não é uma prática habitual e fecunda. No entanto, iniciativas educativas estão em curso (como a “Escola da Palavra”, idealizada pelo Cardeal Martini durante o seu episcopado em Milão), e a prática da Lectio divina é amplamente proposta em muitas paróquias e associações.

Todas essas propostas têm tempos, métodos e resultados díspares. Ao longo dos anos, o magistério da Igreja — basta pensar na exortação apostólica pós-sinodal de Bento XVI, Verbum Domini, em 2010 — tem sugerido e encorajado os fiéis a "aprenderem" a rezar por meio da Escritura. A escuta da Palavra de Deus é, de fato, a base essencial para buscar a vontade de Deus e aderir ao que ela indica como o caminho de perfeição espiritual. Todos devem se sentir responsáveis por esse projeto espiritual. 

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