Vaticano II: uma virada na crise? Artigo de Christian Bauer

Foto: Walter Ascencio/Wikimedia Commons

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09 Dezembro 2025

Há exatamente 60 anos, hoje, encerrava-se solenemente o Concílio Vaticano II, seguido depois pelo rollback romano. Uma lembrança do seu futuro.

O artigo é de Christian Bauer, professor titular de teologia pastoral na Faculdade Católica de Teologia da Universidade de Münster, na Alemanha, publicado por Settimana News, 08-12-2025. 

Eis o artigo. 

Feche os olhos por um instante. Imagine um céu estrelado à noite e observe as luzes cintilantes. É como acontece com os dezesseis documentos do Concílio Vaticano II (1962–1965). Eles são como pontos luminosos no céu noturno que, também no século XXI, podem servir de orientação, se soubermos ligá-los em uma constelação. Dessa imagem não está longe o conceito de constelação (do latim stella).

Uma “leitura constelativa” do Concílio Vaticano II permite estabelecer as próprias prioridades (opção de primeira ordem), desde que se mantenha a tensão com as outras prioridades (opção de segunda ordem). Se se conseguisse cultivar sinodalmente essa “dupla opção” entre a própria parte e o conjunto maior, disso resultaria um estilo de abordagem não apenas dos textos conciliares, mas também entre nós, capaz de pluralidade e sensível às diferenças.

A constelação do Concílio

No centro do Concílio estão quatro constituições que podem ser sobrepostas às dimensões fundamentais da pastoral eclesial: a constituição sobre a liturgia Sacrosanctum concilium, a constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, a constituição sobre a revelação Dei verbum (martyria) e a constituição pastoral sobre a Igreja no mundo Gaudium et spes (diakonia).

Todos os quatro textos principais do Vaticano II fincam suas raízes nas transformações pré-conciliares da pastoral: a SC no movimento litúrgico (actuosa participatio), a LG no movimento dos fiéis leigos (a Igreja desperta nas almas), a DV no movimento bíblico (réveil évangélique) e a GS no movimento missionário (a Igreja deve sair de si mesma).

Desequilíbrio teológico

Esse modo de interpretar o Vaticano II a partir de suas quatro constituições já havia sido proposto pelo Sínodo dos Bispos por ocasião do aniversário do Concílio, em 1985, mas com uma ênfase diferente da que se segue.

A fórmula sintética com a qual esse sínodo especial, dominado por Joseph Ratzinger, resumiu o Concílio apresenta, de fato, um desequilíbrio teológico conciliar. Ela reduz o plural da constelação de seus textos doutrinais a um singular centrado na liturgia: a Igreja (LG), sob a Palavra de Deus (DV), celebra os mistérios de Cristo (SC), para a salvação do mundo (GS). O verbo que dá sentido a essa fórmula conciliar refere-se à liturgia como atividade principal que determina a essência da Igreja (“celebra os mistérios de Cristo”).

Igreja sensível ao mundo

A dinâmica do próprio Concílio sugere, porém, um ponto focal diferente: colocado na constituição pastoral Gaudium et spes. Nela estava em discussão a questão pastoral fundamental do Vaticano II: a Igreja no mundo de hoje – o que isso quer dizer?

Um resumo autêntico do Concílio seria, portanto: a Igreja (LG), a serviço da salvação do mundo (GS), através dos mistérios de Cristo (SC), sob a Palavra de Deus (DV). Essa fórmula sintética é confirmada nos dois textos-moldura que, enquanto primeiro e último documentos aprovados pelo Concílio, representam seu ponto central não apenas do ponto de vista histórico, mas também sistemático: a Mensagem ao mundo (20 de outubro de 1962) e a Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965).

Marie-Dominique Chenu, que inspirou não apenas a referida mensagem, mas também a posterior constituição pastoral, traça de modo novo a imagem ideal de uma Igreja “sensível ao mundo”:

“O Concílio deverá definir o problema da Igreja […] a partir das dimensões do mundo […]. Não se deve subestimar a importância […] da reforma litúrgica, do renascimento de comunidades verdadeiramente cristãs, da renovação dos métodos do apostolado e da restauração da função episcopal, que estão todos, com razão, na ordem do dia do próximo Concílio; mas todas essas questões importantes encontram a sua luz […] na visão de um mundo novo […]”.

Virada restauradora

Em 8 de dezembro de 1965, o Concílio foi solenemente encerrado, mas já no dia 9 de dezembro começou a luta romana contra o Concílio. Durante o longuíssimo duplo pontificado de João Paulo II e Bento XVI (1978–2013), essa tendência adquiriu inclusive “hegemonia cultural” (A. Gramsci) na Igreja universal.

Depois da breve primavera conciliar sob João XXIII e Paulo VI (1958–1978), começou um “período de inverno” (Karl Rahner), que apenas sob os papas Francisco e Leão XIV (2013–hoje) começa a se transformar em um degelo – e cujo período de grande frio também influenciou o sentimento eclesial do autor destas linhas.

Como muitos outros, também eu aprendi a distinguir, numa esquizo-eclesiologia cognitivamente dissonante, entre a minha experiência paroquial local e uma política eclesial global, cuja elaboração teológica ainda nem sequer começou.

Nova evangelização

Um momento-chave nesse retrocesso romano foi o já mencionado sínodo especial pelo aniversário do Concílio, em 1985. Ele estabeleceu uma interpretação romana do Vaticano II que, partindo de uma leitura negativa do período pós-conciliar, deveria conter as transformações então em curso na Igreja universal: em referência à libertação política (América Latina), à inculturação cristã (África), ao diálogo inter-religioso (Ásia) e à secularização social (Europa, América do Norte).

O ano de 1985 já havia começado com um golpe de cena na política eclesial: o Relatório sobre a fé de Joseph Ratzinger, no qual se falava de uma necessária “restauração”. No centro dessa contra-reforma estava a ideia de uma nova evangelização recristianizadora, que ao mesmo tempo representava um distanciamento manifesto do conceito holístico de evangelização de Paulo VI expresso na Evangelii nuntiandi: que começava pela autoconversão da Igreja e era marcada pela alegre sequela de Jesus no horizonte do Reino de Deus.

O sínodo especial romano pelo aniversário do Concílio é sinônimo de conflitos maciços entre as Igrejas locais e o centro da Igreja universal, que atingiram todos os âmbitos do povo de Deus:

Bispos: um instrumento central dessa política restauradora foram nomeações episcopais altamente controversas (inclusive com questionários sobre fidelidade a Roma, contracepção, ordenação das mulheres, celibato etc.). Bispos indesejados foram removidos do cargo, como aconteceu com Jacques Gaillot, na França, em 1995.

Padres: chegou-se a uma completa reclericalização, que levou inclusive a normas mais rígidas sobre vestimenta. Aos “padres conciliares”, vestidos de forma normal, sucederam-se os “padres de João Paulo II e Bento XVI”, com colarinho romano. Além disso, em 1994, a encíclica Ordinatio sacerdotalis aproximou a proibição da ordenação das mulheres de uma doutrina infalível.

Vida religiosa: também aqui houve intervenções autoritárias, a mais importante das quais foi a nomeação de um novo superior geral dos Jesuítas em 1981. Em Roma, apostou-se sobretudo nos novos movimentos espirituais, como Comunhão e Libertação ou o Neocatecumenato, bem como no poderoso Opus Dei, elevado a prelazia pessoal em 1982.

Leigos: na Christifideles laici, João Paulo II advertiu contra o “nivelamento entre o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial” (23). Os ministros eclesiásticos não ordenados, como os agentes pastorais na Alemanha, foram colocados “em seu devido lugar” com a “Instrução sobre os leigos”, de 1997.

Teólogos: em 1979, Hans Küng foi privado da autorização para ensinar, dando início a uma série de condenações doutrinais. Em 1989, mais de 700 professores de teologia de todo o mundo assinaram a Declaração de Colônia. No mesmo ano, Roma publicou uma Professio fidei obrigatória, na tradição do juramento antimodernista.

Às manifestações dos teólogos seguiram-se as dos leigos engajados. Um exemplo foi o Kirchenvolksbegehren austríaco de 1995, que tomou forma a partir do escândalo dos abusos sexuais envolvendo o arcebispo de Viena, Groër. A posterior descoberta dos abusos sexuais perpetrados por sacerdotes no mundo inteiro (e de seu encobrimento por bispos, que protegeram os culpados em vez das vítimas) inaugurou uma nova fase do período pós-conciliar, que marcou o pontificado de Bento XVI.

Este foi eleito em 2005 como sucessor de João Paulo II porque prometia a máxima continuidade na luta contra a “ditadura do relativismo”.

Esse pontificado atingiu seu ponto mais baixo durante a Páscoa do Ano Sacerdotal de 2010, quando o cardeal decano Angelo Sodano, que já havia desempenhado um papel ambíguo como núncio durante as ditaduras militares de extrema direita na América Latina, assegurou ao papa, em um discurso de solidariedade, que as críticas à Igreja pelos casos de abuso não passavam de um falatório passageiro.

Uma virada na crise

Embora o papa Bento XVI tenha sido menos indulgente do que seu predecessor em relação aos abusos sexuais, foi somente o seu sucessor, Francisco, quem enfrentou de fato as causas sistêmicas dessa crise epocal da Igreja. Ele identificou no clericalismo a principal causa estrutural dos abusos e recomendou a sinodalidade como antídoto eficaz: abusos, clericalismo e sinodalidade estão profundamente interligados.

No curso dessa correspondente virada sinodal, o papa Francisco realizou diversas mudanças de paradigma, afastando-se da linha restauradora de seus predecessores, ainda que muitas delas não tenham sido suficientemente incisivas: limitação do centralismo romano no sentido de uma “descentralização saudável”; participação de todo o povo de Deus nos processos sinodais (inclusive com direito de voto); abertura a formas de vida “irregulares” (por exemplo, divorciados recasados, homossexuais); ruptura com a doutrina social clássica em favor de uma abordagem teológica da libertação (incluindo a reabilitação de Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e a canonização de Oscar Romero), entre muitas outras.

Assim como já no Vaticano II, trata-se da autoevangelização da Igreja no sentido da Evangelii nuntiandi, cujo 50º aniversário também se celebra neste ano.

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