Em seu sentido fundamental e mais tradicional, a Eucaristia é uma refeição para comer e beber, um sacrum convivium, reunido em torno de uma mesa.
A reflexão é de Thomas O’Loughlin, presbítero da Diocese de Arundel e Brighton e professor emérito de Teologia Histórica da Universidade de Nottingham, na Inglaterra.
O artigo foi publicado por La Croix International, 12-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De tudo o que ocorreu na liturgia após o Concílio Vaticano II (1962-1965), apenas dois eventos foram visíveis para a maioria das pessoas. Primeiro, houve o desaparecimento do latim (que se tornou uma carteira de identidade de facto para muitos católicos). E segundo foi o fato de que agora o presidente da assembleia estava “voltado para o povo”.
Isso era visualmente diferente, óbvio e – tal como acontece com aquilo que vemos com os nossos próprios olhos – imaginado como algo autoexplicativo. “Agora ele está de frente para nós!” e “agora podemos vê-lo e ver o que está acontecendo!” foram os comentários da época, e todo o programa de reordenamento de construção de igrejas expressava-se em “virar o altar para que o padre fique de frente para o povo”.
Para a “pessoa comum” que não estava pensando em liturgia, em teologia ou no Concílio Vaticano II, era disto que se tratava a mudança litúrgica: literalmente, uma mudança de mobília.
Provavelmente é por essa razão que aqueles que estão insatisfeitos com as reformas decorrentes do Vaticano II imaginam que, se conseguirem mudar o mobiliário e tornar a língua mais latina como no missal de língua inglesa de 2011, então terão quebrado o coração simbólico da renovação.
A nova forma da arena litúrgica, com o presidente voltado para o restante da congregação, foi apresentada na época, e ainda é apresentada com mais frequência hoje, em termos de comunicação e de teoria da comunicação.
O presidente podia agora ser visto e ouvido, e isso foi percebido como um desenvolvimento bem-vindo, porque fomentava o entendimento e a compreensão (o que é verdade). Esperava-se que isso, por sua vez, levasse a uma apreciação mais profunda da Eucaristia (o que é verdade, embora nem sempre reconhecida e de formas que não se esperavam).
No entanto, essa ênfase no fato de poder ver o padre fez com que ele e seu papel na liturgia fossem centrais para todo o evento – e essa dinâmica (um ator com um público) é na verdade um resquício da espiritualidade eucarística que o Vaticano II se propôs a desafiar.
Mas será que aqueles que implementaram a reforma nas paróquias “baratearam-na”? Será que ela foi simplesmente uma questão de comunicação? Talvez tenha sido algo muito mais fundamental – de fato, será que ela foi um aspecto tão fundamental da reforma que nem eles nem suas congregações conseguiram incorporar a lógica da mudança de uma só vez? Portanto, eles a “explicaram” por simplificação – e, nesse processo, traduziram-na?
Parece que foi exatamente isso o que ocorreu: em tentativas bem-intencionadas de comunicar as “mudanças” na liturgia, eles optaram por usar a “comunicação” como a lógica para os novos arranjos físicos, e, uma vez embarcados nesse caminho, todos os arranjos tiveram que ser explicados de uma forma semelhante: devem ser vistos por todos, o tempo todo.
Então, por que o Vaticano II quis que o presidente se voltasse para os outros na assembleia e que todas as construções tivessem a antiga disposição das basílicas? A lógica fundamental da reforma era a consciência renovada da compreensão primitiva e patrística da assembleia reunida em torno da mesa do Senhor.
A Eucaristia é muitas coisas, mas, em sua forma fundamental, é uma refeição para comer e beber, um banquete, um sacrum convivium, e seu foco visível é o foco visível de uma refeição: uma mesa. Podemos interpretar essa mesa teologicamente como um altar – a mesa é o “nosso altar”, distinto do altar do Templo de Jerusalém ou dos muitos altares encontrados nas casas comuns da antiguidade –, mas é, em sua própria realidade, no fim das contas, uma mesa.
O Senhor nos reúne à sua mesa: ali descobrimos sua presença e bendizemos o Pai. A mesa está ao mesmo tempo em unidade com as nossas próprias mesas – pois uma mesa é uma realidade do mundo comum – e em união com a mesa do banquete celestial. A mesa transcende a dicotomia, que é uma falsa dicotomia para os cristãos, entre o sagrado e o profano: o doméstico é o lócus do sagrado.
O Senhor veio à nossa mesa, reunimo-nos como povo sacerdotal à sua mesa. Podemos interpretar a mesa de muitas formas, e interpretá-la como um “altar” tem sido a mais comum, mas o nosso pensamento eucarístico deve começar a partir do que ela é.
Esse uso da palavra “mesa”, é claro, produziu reações alérgicas nos católicos de uma geração mais velha: os protestantes tinham a “mesa sagrada” ou preparavam uma mesa para um “serviço de comunhão”; nós tínhamos um altar – e o objeto físico em um edifício da igreja nunca foi referido por nenhum outro nome: era um altar, e os altares eram para o sacrifício!
Mas ainda nos referimos à mensa em muitas das rubricas; a forma nunca assumiu a de um altar do Antigo Testamento nem de um altar pagão; e esperava-se que quatro pernas vestigiais (exatamente como a mesa sobre a qual eu estou escrevendo) aparecessem como quatro colunas ou pilastras na frente do altar. Só há um problema com as mesas: você não pode simplesmente usá-las segundo qualquer moda antiga, pois elas criam seu próprio espaço para nós como animais que ceiam!
Imaginemos a menor reunião à mesa possível: duas pessoas reunidas para tomar uma xícara de café em uma cafeteria. A menos que não estejam concentradas em sua própria reunião – ou seja, queiram ver uma tela de TV em vez de falar entre si –, elas assumirão posições frente a frente na mesa. A mesa cria um espaço comum, um espaço para comer e conversar, e para compartilhar uma realidade comum de uma forma que não pode ocorrer quando as pessoas se sentam lado a lado em um bar.
Se você está sozinho, é muito fácil sentar em um bar e comer, beber, ler o jornal ou brincar com o telefone tanto quanto à mesa (e você não corre o risco de ter um estranho sentado à sua frente); mas, se duas pessoas forem tomar um café ou fazer uma refeição magnífica juntas, elas ficarão frente a frente. Olhamo-nos uns aos outros enquanto comemos e, em volta da mesa, tornamo-nos uma comunidade – por mais transitória que seja – e não apenas dois indivíduos.
Esse é também um espaço de comunicação profunda entre nós como pessoas: podemos partilhar os nossos pensamentos junto com a nossa comida, podemos captar toda a riqueza da expressão facial, do tom de voz, da linguagem corporal – e comunicar realmente. Essa é a comunicação que desejamos como seres humanos, e não as “comunicações” dos meios de comunicação ou da teoria das comunicações, que é mais bem descrita como transferência de informação.
A mesa é um lugar íntimo – mas curiosamente é também um espaço público, um lugar de respeito mútuo (daí também a “etiqueta”) e um lugar onde a nossa humanidade e as nossas relações com outros humanos são aprimoradas. A importância da mesa está escrita tão profundamente na nossa humanidade quanto qualquer outra coisa: ela é estudada por cientistas do comportamento, antropólogos e psicólogos – mas basta nos lembrarmos aqui das referências às mesas nos Salmos (Sl 23,5; 79,19; ou 123,3), nos Evangelhos (Mt 8,11; 9,10; 15,27; 26,7; 26,20 – e isso em apenas um evangelho), e muitas histórias cristãs primitivas. A mesa está no coração da nossa humanidade e no coração da nossa liturgia.
Mas e uma mesa com mais de duas pessoas? A lógica fundamental permanece.
Nós nos organizamos ao redor da mesa e criamos espaços aproximadamente iguais entre nós. Isso continua até que tenhamos esgotado todo o espaço ao redor da mesa – e depois, tradicionalmente, estendemos a mesa para a forma mais comprida que encontramos nos banquetes, nos refeitórios e nos jantares, e até mesmo nas salas de jantar domésticas, onde “puxamos” a mesa para aumentá-la naquelas ocasiões em que temos convidados extras.
A Eucaristia é a nossa mesa comum como cristãos e a nossa mesa sagrada como convidados do Senhor: foi o restabelecimento dessa lógica fundamental da mesa que esteve por trás das mudanças do Vaticano II. O movimento na direção do presidente não consistiu em que ele pudesse ficar de frente para as pessoas enfileiradas nos bancos, nem ficar visível como a bancada de um professor de ciências deve ficar visível para a turma, nem como um conferencista em um púlpito – mas sim que, estando ele à mesa do Senhor, todos os outros pudessem se organizar em torno daquela mesa, assim como os seres humanos fazem.
Mas isso não é simplesmente impossível? Como colocar centenas de pessoas em uma missa dominical lotada em torno de uma mesa? As pessoas precisam estar nos bancos: o que significa que só o presidente pode estar à mesa!
Bem, primeiro, a mudança na posição da mesa foi feita na maioria dos edifícios de forma mínima. Ela foi simplesmente “retirada da parede”, em vez de ser transformada no centro de um espaço para a comunidade reunida para o banquete.
Em segundo lugar, em muitos lugares foi possível criar uma mesa longa em um espaço organizado e dispor nada menos do que 100 pessoas para que ficassem ao redor dela, de modo que todos pudessem ver que estavam reunidos ao redor da mesa do Senhor.
E, terceiro, a Eucaristia é um evento de dimensão humana – e a reunião de mais de uma centena de pessoas deve ser considerada muito excepcional – como, de fato, foi durante a maior parte da história cristã.
No entanto, é importante notar como essa realidade de “estar à volta da mesa” está profundamente arraigada na nossa tradição. Em primeiro lugar, nas diretrizes para a reunião nas refeições que vêm das fontes judaicas que são contemporâneas das primeiras refeições cristãs, descobrimos que, quando os convidados se reuniam, eles tomavam um cálice de vinho (“o primeiro cálice”), e cada um dizia a bênção individualmente; depois, iam para a mesa e havia outro cálice (“o segundo cálice”), e agora uma pessoa abençoava para todos.
A razão para a mudança é explicitamente explicada: somente quando estavam à mesa é que formavam uma comunidade, e só então alguém podia abençoar para todos. Agora pensemos novamente na Última Ceia, nas outras refeições de Jesus, na bênção do cálice em 1Coríntios ou nas instruções rituais para as refeições comunitárias na Didaquê.
Em segundo lugar, consideremos as palavras da Oração Eucarística romana tradicional (Oração Eucarística I): “Memento, Domine, famulorum famularumque tuarum et omnium circumstantium...”. Uma tradução literal (ainda muito ousada para os tradutores!) pressupõe a distribuição das pessoas existente quando o texto foi criado: “Lembrai-vos, ó Senhor, dos vossos servos (famuli) e das vossas servas (famulae), e de todos os que estão ao redor…”. Será que o venerável Cânone Romano pressupõe que a comunidade, tanto homens quanto mulheres, está de pé ao redor da mesa do Senhor?
E, terceiro, há diretrizes do período patrístico e do início da Idade Média sobre como as partes quebradas do pão devem ser dispostas sobre a patena, e elas muitas vezes assumem que a disposição ao redor da borda da patena reflete as pessoas ao redor da mesa. Então, mais uma vez, a reunião à mesa não é uma nova ideia “secular” ou importada, mas sim um retorno às profundezas da nossa própria tradição.
Se começarmos a pensar na nova orientação não como “o padre de frente para as pessoas” ou “as pessoas olhando para o padre”, mas como toda a comunidade reunida ao redor de uma mesa de verdade, não só teremos uma expressão mais autêntica da Eucaristia, uma apreciação mais profunda das muitas orações da liturgia que pressupõem esse arranjo físico, mas também veremos como tem sido superficial a nossa abordagem às reformas do Vaticano II ao longo do último meio século.
Uma renovação mais completa, com uma apreciação mais profunda de sua lógica inerente, significará mais mudanças nos edifícios, uma exposição gradual das ideias para que as pessoas se sintam confortáveis com elas e vejam porque estamos abandonando a disposição “teatro e palco”.
Além disso, levará a se deparar com problemas culturais, na medida em que muitas famílias modernas não comem juntas à mesa em casa e, por isso, carecem de uma experiência humana básica sobre a qual a graça pode construir a comunidade da mesa do Senhor. Uma pesquisa recente no Reino Unido concluiu que um em cada quatro agregados familiares não tem nenhuma mesa de jantar ou de cozinha onde possam tomar as refeições em família – as consequências humanas para a sociedade são assustadoras!
Nos últimos anos, houve apelos de alguns liturgistas – incluindo bispos e cardeais – para um retorno à posição ad orientem (ou seja, com o presidente de costas para a assembleia), enquanto outros, precisando responder a esses apelos, tentaram defender que as disposições atuais são quase perfeitas!
Mas tanto a disposição atual do “especialista” que está visível em sua bancada quanto a noção pré-reformada de que haja apenas uma pessoa à mesa – de fato, não olhando para o mesmo lado que as pessoas, mas virando-lhes as costas e mantendo-as afastadas da mesa e das grades atrás dele – são fundamentalmente falhas por não serem fiéis nem à tradição cristã nem à natureza humana.
Se pensarmos em como as mesas fazem parte da nossa herança, também poderemos compreender por que o Papa Francisco insistiu que não pode haver questionamento ou retrocesso, como se o rito pré-Vaticano II e o rito atual fossem simplesmente duas “opções” diferentes. Há 60 anos, a Sacrosanctum Concilium fez uma mudança definitiva e significativa.
A questão teológica é esta: se o Logos veio habitar entre nós (Jo 1,14), então toda mesa dos cristãos é um lugar onde alguém pode encostar nele encostando no cotovelo de alguém.