02 Março 2023
Por ocasião do décimo aniversário de seu pontificado, o Papa Francisco concordou em conceder uma entrevista a Emmanuel Van Lierde. Na primeira parte desta entrevista exclusiva ao semanário belga Tertio/CathoBel, Francisco fala sobre a paz na Ucrânia e a situação na República Democrática do Congo, mas também sobre o estado da Igreja.
A entrevista é de Emmanuel Van Lierde, publicada por CathoBel, 28-02-2023. A tradução é do Cepat.
O nome que você escolheu como papa também incluiu um programa. Nos passos de Francisco de Assis, você quer reconstruir e renovar a Igreja, preocupa-se com os pobres e a terra, trabalha pela paz e importa-se com o diálogo inter-religioso. Outro fio condutor para entender o seu pontificado é o Concílio Vaticano II (1962-1965), mesmo que você seja o primeiro papa a não ter participado dele fisicamente. Por que a busca pela realização deste Concílio lhe é tão importante? O que está em jogo?
Os historiadores dizem que é preciso um século para que as decisões de um concílio entrem plenamente em vigor e sejam implementadas. Então temos mais 40 anos pela frente… Estou tão preocupado com o Concílio porque este evento foi na verdade uma visita de Deus à sua Igreja. O concílio foi uma daquelas coisas que Deus faz na história através de pessoas santas. Talvez quando João XXIII o anunciou, ninguém percebeu o que iria acontecer. Dizem que ele mesmo pensou que estaria concluído em um mês, mas um cardeal reagiu dizendo: “Comece a comprar os móveis e tudo mais, porque levará anos”. Ele levou isso em conta, mas João XXIII foi um homem aberto aos apelos do Senhor. É assim que Deus fala ao seu povo.
E ali, Ele realmente nos falou. O Concílio não trouxe apenas uma renovação da Igreja. Não é uma questão de renovação, mas um desafio para tornar a Igreja cada vez mais viva. O Concílio não renova, ele rejuvenesce a Igreja. A Igreja é uma mãe que sempre vai em frente. O Concílio abriu as portas a um maior amadurecimento, mais sintonizado com os sinais dos tempos. A Lumen Gentium, por exemplo, a Constituição Dogmática sobre a Igreja, é um dos documentos mais tradicionais e, ao mesmo tempo, um dos mais modernos, porque na estrutura da Igreja o tradicional – se bem entendido – é sempre moderno. Isso ocorre porque a tradição continua a se desenvolver e a crescer.
Como disse o monge francês Vincent de Lérins no século V, os dogmas devem continuar a se desenvolver, mas de acordo com esta metodologia: “Ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate” (“Que sejam consolidados pelos anos, expandidos pelo tempo, exaltados pela idade”). Ou seja: a partir da raiz, continuamos sempre a crescer.
O Concílio deu esse passo adiante, sem cortar a raiz, porque isso não é possível se queremos produzir frutos. O Concílio é a voz da Igreja para o nosso tempo, e neste momento, por um século, estamos colocando-o em prática.
É uma imagem estranha: a Igreja é como uma mãe que não envelhece, mas fica cada vez mais jovem...
Incrível, sim, mas assim é a Igreja: ela rejuvenesce sem perder sua sabedoria secular.
A contínua implementação e realização do Concílio inclui o incentivo à sinodalidade. O que espera e o que imagina através do processo sinodal? O que isso realmente significa? É um estilo de governo e de liderança que deriva das ideias do Concílio?
Há um ponto que não devemos perder de vista. No final do Concílio, Paulo VI ficou muito chocado ao descobrir que a Igreja do Ocidente quase tinha perdido a sua dimensão sinodal, ao passo que as Igrejas Católicas Orientais souberam preservá-la. Ele anunciou, portanto, a criação do Secretariado do Sínodo dos Bispos, com o objetivo de promover novamente a sinodalidade na Igreja.
Nos últimos 60 anos, isso se desenvolveu cada vez mais. Aos poucos as coisas ficaram mais claras. Por exemplo, a questão de saber se apenas os bispos tinham direito de voto. Às vezes não estava claro se as mulheres podiam votar... Durante o último sínodo sobre a Amazônia, em outubro de 2019, houve um amadurecimento a este respeito.
Um fato peculiar ocorreu então. Quando um sínodo termina, aqueles que participaram e todos os bispos do mundo são consultados sobre o tema que gostariam de ver na agenda do próximo sínodo. O primeiro tema mencionado foi o sacerdócio e depois a sinodalidade. Aparentemente, este foi um tema compartilhado por todos os bispos que sentiram que era hora de abordá-lo.
Por ocasião do 50º aniversário deste órgão permanente do Sínodo dos Bispos, os teólogos já haviam feito um balanço do mesmo em um documento. Percorremos um longo caminho, estamos aqui agora e devemos seguir em frente. É o que estamos fazendo através do atual processo sinodal. Os dois sínodos sobre a sinodalidade nos ajudarão a esclarecer o significado e o método da tomada de decisões na Igreja.
É importante deixar claro que um sínodo não é um parlamento. Um sínodo não é uma pesquisa de opinião à esquerda e à direita. Não. O principal protagonista de um sínodo é o Espírito Santo. Se o Espírito Santo não está presente, não pode haver sínodo. Um sínodo é uma experiência eclesial cujo presidente e ator principal é o Espírito Santo. O Espírito trabalha de duas maneiras.
Primeiro, Ele transforma o sínodo em um canteiro de obras. Pense na manhã de Pentecostes: que canteiro de obras! Com sua profusão de carismas, o Espírito parece criar a desordem e o caos. E, no entanto... Ele cria a ordem! Ou, ao contrário, é melhor dizer que Ele cria a harmonia: uma espécie de ordem superior. Não é por acaso que São Basílio de Cesareia [c. 330-379, nota do editor] escreve em seu tratado sobre o Espírito Santo, quando ele quer definir este Espírito: “Ipse harmonia est”, “Ele próprio é a harmonia”. E é precisamente isso que se experimenta em um sínodo.
Outra coisa interessante: em um sínodo, conversa-se muito. Cada participante, por sua vez, faz um discurso de quatro minutos. Depois de três intervenções, seguem-se agora sempre quatro minutos de silêncio, um tempo de oração, para que o Espírito nos ajude. Considerar um sínodo como um parlamento é um erro. O sínodo é uma assembleia de crentes. É uma assembleia de fé guiada pelo Espírito Santo, mas também tentada e seduzida pelo espírito maligno!
Em nossa entrevista de 2016, o senhor mencionou a Terceira Guerra Mundial que estamos vivendo em capítulos. Hoje, a situação não é melhor, mas pior, com ainda mais guerras como a da Ucrânia. Não é ingenuidade pensar que a paz ainda pode ser alcançada com um agressor como o presidente Vladimir Putin, que anexou várias regiões? Acima de tudo, não deveríamos colocar obstáculos no caminho do ditador? Que papel pode desempenhar aqui a diplomacia vaticana?
O Vaticano levou esse conflito a sério desde o primeiro dia. No dia seguinte à invasão, fui pessoalmente à embaixada da Rússia – algo que nunca havia sido feito por um papa e que normalmente não faz. Coloquei-me à disposição para ir a Moscou e garantir que esse conflito não continuasse.
Desde o início até hoje, o Vaticano tem estado no centro da ação. Vários cardeais já estiveram na Ucrânia, o cardeal Konrad Krajewski (ex-capelão papal, agora prefeito do Dicastério para o Serviço da Caridade) já esteve lá seis vezes para ajudar o povo ucraniano. Ao mesmo tempo, estamos constantemente falando com o povo russo para ver o que pode ser feito.
Esta guerra é terrível, é uma imensa atrocidade. Há muitos mercenários lutando. Alguns são muito cruéis. Há tortura; crianças são torturadas. Muitas crianças que moram na Itália com suas mães, refugiadas, vêm me ver. Nunca vi uma criança ucraniana rir. Por que essas crianças não riem? O que elas viram? É aterrorizante, verdadeiramente aterrorizante. Essas pessoas estão sofrendo, estão sofrendo com o conflito. Também estou em contato com os ucranianos. O presidente Volodymyr Zelensky enviou várias delegações para falar comigo.
Daqui estamos fazendo o que podemos para ajudar a população. Mas o sofrimento é muito grande. Lembro-me de meus pais que me diziam: “A guerra é uma loucura”. Não há outra definição. Nós nos envolvemos muito nesta guerra porque ela está acontecendo perto de nós.
Mas há anos existem guerras no mundo às quais não prestamos atenção: em Myanmar, na Síria – já são 13 anos de guerra –, no Iêmen, onde as crianças não têm educação nem pão, onde passam fome… Em outras palavras: o mundo realmente ainda está em guerra. Em relação a isso, há uma coisa que deve ser denunciada: é a grande indústria armamentista. Há um comércio de armas. Quando um país rico começa a enfraquecer, diz-se que precisa de uma guerra para se manter e se fortalecer ainda mais. E as armas são preparadas para isso.
Mas há também o comércio de armas. Alguns estão se livrando dos arsenais antigos que possuem e experimentando novas armas. É horrível. Diz-se que a Guerra Civil Espanhola foi usada para testar armas para a Segunda Guerra Mundial. Não sei se é verdade, mas armas sempre são testadas, não é? É a indústria da destruição, a indústria da guerra, de um mundo em guerra. Em cerca de um século, conhecemos três grandes guerras mundiais: 14-18, 39-45, e a guerra atual que é também uma guerra mundial, na qual os países ricos renovam seus arsenais.
Quando fui à região italiana de Redipuglia para o centenário da Primeira Guerra Mundial, uma das minhas primeiras viagens como papa em 2014, vi todas aquelas sepulturas lá (durante a guerra, a linha de frente com as tropas austro-húngaras, estava lá; o cemitério militar contém cerca de 40.000 soldados italianos identificados que morreram em combate, e outros 70.000 não identificados, nota do editor) e eu chorei. Chorei! Minha avó viveu essa guerra e me contou coisas que carrego dentro de mim. Todo dia 2 de novembro, vou a um cemitério.
Foi assim que, há alguns anos, fui ao cemitério de Anzio, em Roma, para celebrar o Dia dos Finados, e vi os túmulos e as idades dos rapazes: 18 anos, 19, 20 anos… Mais uma vez, não pude deixar de chorar. Por que essa loucura para aqueles rapazes? Quando alguns chefes de governo organizaram um ato comemorativo pelo 60º aniversário do desembarque na Normandia, pensei na crueldade desse desembarque, porque os nazistas esperavam por isso. Eles sabiam.
Segundo relatos, 30.000 jovens morreram na praia. Eu penso em uma mãe. O carteiro bate em sua porta e entrega-lhe uma carta. Ela a abre e lê: “Senhora, temos a honra de informar que você tem um filho que é um herói”. “Eu tive um filho e eles o mataram”, reagiu. Toda guerra é um fracasso. Mas não aprendemos. E agora que estamos vivendo mais uma de perto, espero que, se Deus quiser, finalmente aprendamos a lição... Começou com Caim e Abel, e continua até hoje. Para mim é muito doloroso, muito doloroso, e não posso escolher um lado, a guerra é um mal em si mesma.
Na Bélgica, também estamos muito preocupados com a guerra e a violência na República Democrática do Congo.
Lembro-me de quando o rei Balduíno estava lá para proclamar a independência, eles tomaram a espada dele, não foi? Era um símbolo. Sim, a violência em Goma, no nordeste do Congo, onde estão os guerrilheiros ruandeses... Essas guerras duram anos, mas nós as ignoramos. Nós vemos a Ucrânia porque está perto de nós. A guerra é loucura, é suicídio, é autodestruição. A paz, por favor, a paz!
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“O Concílio Vaticano II foi na verdade uma visita de Deus à sua Igreja”. Entrevista com o Papa Francisco (1a. parte) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU