Deus é sempre comunhão

10 Junho 2022

 

"Estamos nas estradas do mundo, entre os povos, em meio aos pagãos, como “viandantes e peregrinos” (cf. Hb 11,13, 1Pd 2,11): não estamos sozinhos, órfãos, sem orientação. Eis o dom de Jesus ressuscitado, o Espírito Santo, “seu companheiro inseparável” (Basílio de Cesareia), que agora se tornou o nosso companheiro inseparável".

 

O comentário é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste domingo, 12 de junho de 2022, solenidade da Santíssima Trindade (João 16,12-15). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

 

 

Eis o texto.

 

É a chamada festa da Trindade, fixada pela Igreja no primeiro domingo depois de Pentecostes: não é o memorial de um evento da vida de Cristo, mas sim uma confissão e uma celebração dogmática devido aos concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381). Na verdade, na Bíblia, nunca se encontra a palavra Trindade, fórmula dogmática, mas, ao contrário, há a revelação de Deus como Pai, da Palavra feita carne, Jesus, o Filho de Deus, e do Espírito Santo de Deus, a força através da qual o Pai e o Filho atuam na história. Somente nós, católicos, ao contrário dos outros cristãos, em obediência à intenção da Igreja, celebramos essa festa escutando os textos bíblicos nos quais encontramos a palavra de Deus, que nos revela o grande mistério da Tri-unidade de Deus.

 

O trecho do Evangelho é tirado dos “discursos de despedida” de Jesus, que já foram encontrados várias vezes no tempo da Páscoa, aqueles que ele dirigiu aos discípulos antes da sua gloriosa paixão. Quem fala é o Jesus glorioso do quarto Evangelho, Senhor do mundo e da Igreja no seu hoje; fala aqui e agora à Igreja, explicando-lhe que ele, já ressuscitado, está vivo junto de Deus e em Deus, como Deus. Ele já prometeu que não vai deixar órfãos aqueles que nele creem (cf. Jo 14,18) e, por isso, vai lhes enviar o Espírito Paráclito, advogado defensor (cf. Jo 14,15-17,26; 15,26-27; 16,7-11); ele convidou os fiéis a terem fé nele e os advertiu sobre o mundo no qual eles ainda vivem, preanunciando-lhes hostilidade e perseguição (cf. Jo 14,27; 16,1-4.33), mas declarando também que o Príncipe deste mundo foi vencido por ele para sempre (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11).

 

Jesus, que ensinou os seus discípulos durante anos e que, no quarto Evangelho, demora para lhes deixar os seus últimos desejos, em certo ponto deve confessar: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora” (literalmente: “suportá-las”). Jesus também experimentou o desejo de comunicar muitas coisas, mas se deu conta de que o outro, os outros não são capazes de compartilhá-las, de compreendê-las, de carregá-las dentro de si. Em toda relação – experimentamos isto cotidianamente – a assiduidade provoca um crescimento de conhecimento, a escuta e as palavras trocadas permitem uma maior comunicação com o outro, mas às vezes encontramo-nos diante de limites que não podem ser superados. O outro não pode compreender, não pode acolher o que se diz, e até o fato de lhe comunicar verdades pode se tornar imprudente, às vezes inoportuno. Manifesta-se o limite, uma barreira que também pode fazer sofrer, mas que deve ser aceita. Ou, melhor, é necessário não só se submeter a ela, mas também chegar à rendição: não se pode nem se deve comunicar mais...

 

Não havia dificuldade em se expressar por parte de Jesus, mas sim a incapacidade de recepção por parte dos discípulos. Mas Jesus lança o seu olhar sobre o tempo depois de si, com fé-confiança e com esperança: “Hoje vocês não entendem, mas amanhã entenderão.” Por quê? Porque ele sabe que a vida e a história também são reveladoras; que, vivendo, chega-se a entender o que simplesmente escutamos; que é com aqueles com quem caminhamos que se compreendem mais profundamente as palavras que nos são confiadas.

 

Pode-se dizer – parafraseando um célebre ditado de Gregório Magno – que “a palavra cresce com quem a escuta”, com quem a troca com os outros, com quem a medita junto com outros, com quem sabe escutar a vida, os eventos, a história.

 

O caminho do conhecimento nunca acaba, o itinerário rumo à verdade não tem um termo aqui na Terra, porque só no além da morte, no face a face com Deus, é que conheceremos plenamente (cf. 1Cor 13,12).

 

Essa verdade dá à fé cristã um estatuto que nem sempre temos em mente. Isto é, devemos prestar mais atenção aos eventos de Jesus e dos seus discípulos, lendo-os não apenas como fatos do passado, mas também como rastros sobre os quais caminhamos ainda hoje. A nossa fé não é estática, não nos é dada de uma vez por todas como um tesouro a ser zelosamente conservado, mas é como um dom que cresce nas nossas mãos.

 

Dizendo essas palavras, Jesus certamente também entrevia entre os seus discípulos o perigo de querer conservar o que tinham conhecido como um caixão fechado, como um museu, em vez de permitir que as suas palavras percorressem as estradas do mundo e os séculos da história, crescendo, enriquecendo-se no encontro com outras palavras, histórias, culturas.

 

Sim, a verdade que nos foi entregue progride em profundidade e em extensão, e em muitos aspectos a Igreja de hoje, como a de ontem, conhece aquilo que é essencial para a salvação; mas a Igreja de hoje conhece mais e compreende o próprio Evangelho de modo mais aprofundado. Não é o Evangelho que muda, mas somos nós hoje que o compreendemos melhor do que ontem – como dizia o Papa João XXIII –, melhor até do que os Padres da Igreja.

 

Mas esse crescimento da compreensão não ocorre por meio de energias que estão em nós, não é uma aventura do espírito humano, mas é um caminho “guiado” pelo dom do Ressuscitado, o Espírito Santo: “Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade.” Temos um guia no tempo em que Jesus não está mais entre nós do mesmo modo que ele caminhava ao lado dos seus nas estradas da Palestina. Estamos nas estradas do mundo, entre os povos, em meio aos pagãos, como “viandantes e peregrinos” (cf. Hb 11,13, 1Pd 2,11): não estamos sozinhos, órfãos, sem orientação. Eis o dom de Jesus ressuscitado, o Espírito Santo, “seu companheiro inseparável” (Basílio de Cesareia), que agora se tornou o nosso companheiro inseparável.

 

O Espírito é luz, é força, é consolação e nos guia: doce luz quando é noite, brisa que refresca no calor, força que sustenta na fraqueza. Nós, buscadores da verdade nunca possuída, percorremos o nosso caminho, mas o Espírito Santo nos dá a possibilidade de ir além do conhecimento da verdade adquirida, através de inícios sem fim.

 

E que fique claro que essa compreensão não está dentro de uma dimensão intelectual, gnóstica, mas é conhecimento experimentado por toda a nossa pessoa; e a verdade que buscamos e perseguimos não é uma doutrina, não são fórmulas ou ideias, mas é uma pessoa, é Jesus Cristo que disse: “Eu sou a verdade” (Jo 14,6).

 

Mas o Espírito Santo não é uma força, um vento que vem de onde quer e vai onde quer, mas é o Espírito de Cristo, nunca dissociado de Jesus. Quando o Espírito está presente e nos fala de Jesus, é como se o próprio Jesus nos falasse e, desse modo, ele nos fala de Deus, porque, depois da ressurreição, não se pode mais falar de Deus sem olhar e conhecer a Jesus, seu Filho que o narrou (cf. Jo 1,18) com palavras humanas e com a sua vida humaníssima.

 

As palavras de Jesus sobre o Espírito Santo, portanto, na realidade, indicam-nos o Pai, Deus, porque o Pai e o Filho têm tudo em comum: o Filho é a Palavra emitida pelo Pai, e o Espírito é o Sopro de Deus que permite emitir a Palavra. É desse modo que João, através das palavras de Jesus, nos acompanha para entrever o nosso Deus como Pai, Filho e Espírito Santo: um Deus que é intimamente comunhão plural, um Deus que é comunhão de amor, um Deus que, no Filho, se uniu à nossa humanidade e, através do Espírito Santo, é constantemente criador dessa comunhão de vida.

 

Ao ler ou redizer essa página do Evangelho, porém, fiquemos atentos para não a transformar em um tratado de doutrina, em uma espécie de enigma, em uma fórmula matemática desconhecida... Se essa é uma verdade, verifiquemo-la anunciando-a aos “pequeninos”, àqueles que estão desprovidos de instrumentos intelectuais, aos pobres. Somente se eles a entenderem, escutando-a a partir dos nossos lábios, isso significa que nós também entendemos alguma coisa; caso contrário, estamos no engano de aristocratas gnósticos que creem que veem e, em vez disso, estão cegos (cf. Jo 9,40-41), creem que conhecem e, em vez disso, permanecem ignorantes, creem que confessam a fé e, em vez disso, estão ligados à doutrina.

 

O Evangelho é simples, é para os pequeninos, é uma realidade escondida aos intelectuais e aos eruditos (cf. Mt 11,25; Lc 10,21): não o tornemos difícil ou mesmo enigmático, digno de estar em uma estela de pedra e incapaz de entrar no coração de cada pessoa. Imprimindo sobre nós o sinal da cruz, dizemos o nosso desejo e compromisso de crer com a mente, com o coração e com os braços, isto é, com aquilo que operamos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.