19 Novembro 2025
"A crise da Igreja Católica não nasceu da opção pelos pobres, mas da sua autorreferencialidade; e a opção pelos pobres é a sua saída da crise", escreve Jung Mo Sung, teólogo católico e cientista da religião.
Eis o artigo.
Uma das formas de setores mais conservadores da Igreja Católica, – ou melhor, de setores insensíveis aos sofrimentos dos pobres – que usam para reduzir a importância de documentos papais como o Dilexi Te é taxa-lo como de um ensinamento social. Logo, não sendo doutrinário, seria secundário para a missão da Igreja. Assim a estratégia de fazer as comunidades e as paróquias esquecerem dos temas abordados.
Com a polarização que vemos no mundo e nas igrejas, é comum vermos a reação dos que ainda defendem a linha da opção pelos pobres e as lutas pela justiça social e a ambiental de defender “com unhas e dentes” a importância das questões sociais. Assim, vemos a polarização entre os que defendem e os que negam a importância fundamental das questões sociais na missão da Igreja e do cristianismo.
Precisamos superar essa polarização, na medida em que isso é possível, ao rediscutirmos na Igreja o lugar do “amor aos pobres” (o tema da exortação Dilexi Te) na revelação de Deus e na missão do cristianismo. E nessa discussão, eu penso que há em uma afirmação do Papa Leão XIV que é importante: “Estou convencido de que a opção preferencial pelos pobres gera uma renovação extraordinária tanto na Igreja como na sociedade, quando somos capazes de nos libertar da autorreferencialidade e conseguimos ouvir o seu clamor” (Dilexi Te, n. 7).
O Papa Leão XIV, assumindo o texto preparado pelo Papa Francisco, retoma o tema da “opção preferencial pelos pobres” – que anda meio esquecido mesmo no âmbito da teologia da libertação –, não somente para lembrarmo-nos da importância dessa opção feita por Deus, mas como uma “cura” ou um instrumento de libertação da crise da própria Igreja. E qual seria a crise da Igreja? Ele não se refere à diminuição de número de fiéis católicos na Europa ou na América ou aos escândalos, mas sim à “autorreferencialidade” da Igreja.
Instituições normais buscam a realização dos seus objetivos ou metas que são fundados e justificados por si próprios. Isto é, são autorreferenciadas. Isso inclui também as instituições religiosas que se justificam em nome do sagrado que fundamenta a si própria. Porém, a experiência de fé da Bíblia e, especialmente, a da tradição profético-cristã é baseada no “ouvir” a voz de Deus que chama o seu povo a caminhar. Quando as igrejas cristãs se referenciam a si próprias, elas entram em crise. Podem crescer numericamente, mas perdem a força do Espírito Santo e a santidade.
E como podemos sair dessa crise de “identidade”, a de sermos comunidades chamadas a seguir o caminho de Jesus, que é o Caminho, a Verdade e a Vida? E o que o Papa diz é: ao invés de autorreferenciarmos, devemos ouvir o clamor dos pobres: “ao ouvir o clamor do pobre, somos chamados a identificar-nos com o coração de Deus, que está atento às necessidades dos seus filhos, especialmente dos mais necessitados. Se permanecêssemos, porém, indiferentes a esse clamor, o pobre clamaria ao Senhor contra nós e isso tornar-se-ia para nós um pecado (cf. Dt 15, 9) e, deste modo, afastar-nos-íamos do próprio coração de Deus” (n. 8).
Comblin, nas décadas de 1980, nos lembrava: “Não é somente na Bíblia que o povo clama. O clamor exprime o grito real nos povos da terra. Se este clamor está registrado na Bíblia é porque Deus lhe atribui um papel central na história da libertação dos homens.” (O clamor dos oprimidos, o clamor de Jesus, p. 7) E para os insensíveis aos sofrimentos dos
“pequenos”, esses clamores não têm valor, são apenas ruídos que incomodam. Isso ocorre não somente no “mundo”, mas também nas igrejas. Os indiferentes, mesmo os cristãos, não reconhecem neles a voz de Deus ou a revelação de que essas injustiças sociais são expressões de pecado (ver tb, SUNG, Jung Mo. O sagrado X o santo: a rebelião de Eva e o pecado original do capitalismo, cap. 1 e 2. Ed. Recrair, 2025). E o pecado fundamental é o da idolatria, isto é, o de adorar um deus que é insensível aos sofrimentos dos filhos e filhas de Deus.
A opção pelos pobres – isto é, nas políticas sociais dar prioridade aos pobres para que todas pessoas possam viver com dignidade – não é um tema social, secundário para a Igreja, mas é do campo da revelação de Deus. Como dizia Hugo Assmann, a opção pelos pobres é a “substância definitória de uma fé não-idolátrica” (Crítica à lógica da exclusão, p. 14).
A crise da Igreja Católica não nasceu da opção pelos pobres, mas da sua autorreferencialidade; e a opção pelos pobres é a sua saída da crise. Porém, o desafio teológico-pastoral é como praticar a opção pelos pobres em um mundo neoliberal, que é bem diferente das décadas de 1970 a 90 quando se discutiu muito sobre essa opção.
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