18 Novembro 2025
Evangélicos e católicos da base do bolsonarismo reproduziram as narrativas do governo do Rio.
O artigo é de Olívia Bandeira e Victor Merete, publicado por Brasil de Fato, 13-11-2025 e enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Olívia Bandeira é pós-doutoranda no Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e integrante do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR) e do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Brasil. Processo nº 2024/14700-9. As opiniões expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
Victor Merete é graduando em Sociologia na Unicamp e integrante do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR).
Eis o artigo.
A abordagem de ações policiais violentas de forma sensacionalista e focada numa luta do “bem” contra o “mal” por parte da mídia brasileira não é novidade. Mas a cobertura da chacina comandada pelo governo do estado do Rio de Janeiro nos complexos do Alemão e da Penha traz um destaque: a repetição, sem questionamento, do discurso do governo Cláudio Castro (PL-RJ) que classificou o crime organizado como “narcoterrorismo”.
O termo apareceu em diversos veículos da mídia comercial, incluindo as evangélicas, e se disseminou pelas redes sociais, sendo enfatizado por parte de políticos e lideranças religiosas, evangélicas e católicas, da base do bolsonarismo.
No portal Pleno.News, do grupo MK de Comunicação, da família do político evangélico Arolde de Oliveira, falecido em 2020, a associação do crime organizado ao terrorismo apareceu em destaque em quatro manchetes na sexta-feira, 31 de outubro:
- “Secretário aponta que membros de facções são narcoterroristas”
- “Ao contrário do Brasil, Paraguai declara CV e PCC como terroristas”
- “O fetiche do governo Lula em não reconhecer o CV como grupo terrorista” – artigo de Lawrence Maxumus
- “O narcoterrorismo no Rio de Janeiro: de quem é a culpa?” – artigo do pastor, cantor e senador Magno Malta (PL-ES).
Em todas essas matérias, as fontes que falam — em sua totalidade, políticos da extrema direita — declaram que classificam o crime organizado como narcoterrorismo. O cientista político Lawrence Maxumus diz que essa classificação segue recomendações do governo de Donald Trump e destaca o apoio dos governadores Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Romeu Zema (Novo-MG), e de outros políticos como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), relator de projeto sobre o tema na Câmara.
Na segunda matéria listada, são reproduzidos trechos do decreto assinado pelo presidente do Paraguai, Santiago Peña, que afirma que o CV e o PCC têm as características “de verdadeiras organizações terroristas internacionais”. A matéria lembra também que o Paraguai, alinhado ao governo dos Estados Unidos, declarou organizações de outros países como terroristas, entre elas o Cartel de los Soles, grupo que os Estados Unidos vinculam ao regime da Venezuela, a Guarda Revolucionária Islâmica, o grupo palestino Hamas e o grupo xiita libanês Hezbollah.
O Pleno.News publicou ainda duas manchetes que fortalecem essa definição: “Advogado de Trump elogia Castro e acusa STF de favorecer o crime” e “Operação no Rio apreendeu fuzis das Forças Venezuelanas”. Na última, chama a atenção o destaque dado à Venezuela no título, uma vez que o corpo do texto informa, na parte de baixo da página, depois de mostrar fotos expondo imagens dos presos, que um número igual de fuzis seriam das Forças Armadas Brasileiras, além da argentina e da peruana.
No portal de notícias evangélico Gospel Mais, a palavra narcoterrorismo também apareceu em uma manchete na sexta-feira, 31 de outubro, em forma de pergunta: “A morte de narcoterroristas pode ser comemorada por cristãos?”. O texto corrobora o termo “narcoterroristas” para definir integrantes de facções criminosas, no entanto, questiona “os limites entre a aplicação da justiça e a prática da misericórdia” ao observar a “controvérsia” que o tema gerou entre cristãos nas plataformas digitais. O texto destaca a opinião de Nikolas Ferreira e os trechos bíblicos que o deputado usou para dizer que integrantes da esquerda “confundem misericórdia com permissividade”. O “outro lado” foi apresentado de forma genérica como quem defende “não violência e compaixão”, “acolhimento e perdão”, também com base em passagens bíblicas.
O portal também apresentou o termo “narcoterrorista” em matéria que repercute nota publicada por Michelle Bolsonaro, presidenta do PL Mulher, em 30 de outubro. Destaca que o documento critica sobretudo o presidente Lula, incluindo o argumento de que ele não reconhece os traficantes como “narcoterroristas”, a exemplo do que a nota chama de “Trio da Destruição”, que seria formado pelo líder brasileiro e os presidentes Nicolás Maduro, da Venezuela, e Gustavo Petro, da Colômbia.
O Gospel Mais repercutiu, ainda, a fala do pastor e deputado federal Otoni de Paula (MDB-RJ). O deputado, que se define como conservador, foi descrito como “o pastor que recentemente vem adotando uma postura pró-Lula” e alguém com uma opinião sobre segurança pública que contraria a da maioria dos conservadores.
O texto destaca as críticas do parlamentar à atuação do governador Cláudio Castro, sua fala de que pelo menos quatro jovens vinculados à sua igreja, a Assembleia de Deus Ministério Missão de Vida, foram mortos durante a operação e sua atribuição das mortes ao racismo. O portal não citou, no entanto, posicionamento de lideranças evangélicas de esquerda que condenaram a chacina, como a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e o pastor e deputado federal Henrique Vieira (Psol-RJ).
Na sexta-feira, 31 de outubro, enquanto o Pleno.News reiterava a visão do governo do estado do Rio sobre o “sucesso” da operação, o Gospel Mais dava destaque, em diversas manchetes, ao papel da igreja evangélica na “conversão” de ex-traficantes, entre elas: “Em meio à operação no RJ, ex-traficante testemunha: ‘Deus tinha um propósito para mim’”.
Em outra, que estava em destaque mesmo tendo sido publicada meses antes da operação, o preconceito contra a população LGBT+ é declarado na mesma chave: “Ex-traficante abandona o crime e a homossexualidade: ‘Sem Cristo, não teria forças’”.
Uma explicação mais aprofundada e contextualizada sobre o termo “narcoterrorismo” apareceu na cobertura do portal de notícias R7, parte do Grupo Record, do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). O texto “Narcoterrorismo x facção criminosa: por que Rio e governo federal usam termos diferentes?” explica que o termo escolhido por Cláudio Castro, pela direita brasileira e utilizado por Donald Trump, não recebe respaldo do governo Lula e não consta no ordenamento jurídico brasileiro.
Apresenta falas do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e de dois especialistas, Adilson Paes de Souza e Azor Lopes da Silva Júnior, que diferenciam terrorismo de facções criminosas, destacando o caráter político e ideológico do primeiro. Souza diz também que a classificação tem como objetivo abrir espaço para a intervenção dos Estados Unidos em países da América do Sul. A matéria cita ainda o PL em tramitação no Congresso Nacional que busca ampliar o conceito de terrorismo e falas de Flávio Bolsonaro (PL-RJ) sugerindo que Trump deveria bombardear navios no Brasil.
Mas o portal R7 também apresentou ao longo da semana outras matérias que defendem o uso do termo, como “Especialista diz que seria benéfico ao Brasil considerar facções como grupos terroristas”. A cobertura do R7 traz muitas matérias que apresentam o ponto de vista do governo do estado do Rio de Janeiro, mas também textos com falas de especialistas que apontam os limites da operação, além de debates sobre a PEC da Segurança Pública proposta pelo governo federal.
Já no portal da Universal, não houve defesa da operação. No dia 28 de outubro, o portal destacou as ações da igreja durante a operação, entre elas uma “oração pelo fim da violência no Rio de Janeiro”, transmitida ao vivo pelo Instagram do bispo Renato Cardoso, o “ponto de fé” montado pelo bispo Honorilton Gonçalves e voluntários da igreja nos complexos do Alemão e da Penha, oferecendo apoio espiritual, de saúde, água e comida aos familiares dos mortos, além de visita ao Hospital Central da Polícia Militar (HCPM).
O deputado federal e ex-prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), sobrinho de Edir Macedo, reproduziu, em suas redes sociais, o mesmo tom adotado pelo portal da Universal, sem elogiar nem criticar a operação do governo Cláudio Castro.
É preciso destacar que este texto não analisou a cobertura de outros veículos do grupo Record, como as emissoras de TV e programas policialescos conhecidos por exaltar a violência policial, como o Cidade Alerta.
Narcoterrorismo nas redes sociais de evangélicos e católicos da base do bolsonarismo
No mesmo dia da chacina, 28 de outubro, os termos “terrorismo” e “narcoterrorismo” já apareciam nas redes sociais de políticos e lideranças evangélicos e católicos ligados ao bolsonarismo. Uma das vozes mais contundentes foi a da deputada federal Bia Kicis (PL-DF), integrante da Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana. Já no primeiro dia, ela reproduziu um vídeo em que uma voz de homem mostrava imagens do que seria o Comando Vermelho equiparando sua atuação “a terroristas do Oriente Médio”.
Há também postagens que acusam Lula de “traidor da pátria” por se recusar a enquadrar facções como terroristas e elogios a esse enquadramento por parte dos governos da Argentina e do Paraguai. Outra parlamentar católica que deu ênfase ao termo foi Chris Tonietto (PL-RJ).
Entre os evangélicos, destacamos as falas do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que chamou a chacina de “a maior faxina da história do RJ” e as do pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, que, diferente de Nikolas, não comemorou a morte de “bandidos”, mas justificou a ação da polícia como “defesa”.
Esse tom se aproxima do discurso também ambíguo do afilhado político de Silas Malafaia, Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ), como analisou Christina Vital. Nessas postagens, algumas vezes o CV e o PCC são citados como as organizações que deveriam ser enquadradas, mas não há nenhuma palavra sobre a atuação das milícias no Rio de Janeiro. Em outras, como nas falas de Malafaia, a crítica à esquerda equipara “defesa de bandidos” à defesa do aborto.
Grande parte dos evangélicos conservadores monitorados não condenou nem defendeu a operação, enfatizando chamados a orações pelo Rio, na chave da batalha espiritual, como os pastores e cantores André Valadão (Igreja Batista da Lagoinha) e Ana Paula Valadão (Igreja Diante do Trono), Estevam e Sônia Hernandes (Igreja Renascer em Cristo) e a cantora e pastora Fernanda Brum (Igreja Profetizando as Nações). Esta última também postou conteúdo ao lado de agentes do Bope.
Entre evangélicos definidos como progressistas, os chamados à oração eram acompanhados da condenação da chacina e ações de solidariedade, como nas redes do Movimento Negro Evangélico do Brasil e da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.
Mídias católicas: oração e solidariedade, com poucas críticas diretas
Se parlamentares católicos ligados ao bolsonarismo ajudaram a reproduzir o discurso do governo do estado em suas redes sociais, veículos de mídia ligados à Igreja Católica preferiram, na maior parte, omitir sua posição em relação à operação, focando em manifestações de solidariedade e em pedidos de oração pela cidade do Rio de Janeiro, como nos portais e nas redes sociais da Canção Nova e do Portal A12, ligado ao Santuário Nacional de Aparecida.
Essas mídias católicas seguem a linha adotada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que publicou em suas redes sociais, no dia 29 de outubro, em colaboração com os portais Vatican News e da Arquidiocese do Rio de Janeiro, uma nota em “solidariedade pelos graves episódios de violência na cidade do Rio de Janeiro”.
No dia seguinte, fez outra postagem, com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, pedindo sua intercessão “por nossos irmãos” e orações pelo Rio de Janeiro e suas autoridades. No mesmo sentido, o portal Vatican News publicou nota emitida pelo arcebispo do Rio de Janeiro, cardeal Orani João Tempesta, que pede oração e expressa solidariedade “às famílias que choram a perda de seus entes queridos”. Ambas as notas falam em “justiça”, “reconciliação”, e a nota de Dom Orani fala ainda em “dignidade de cada pessoa, especialmente dos mais pobres e vulneráveis”.
Mas houve também textos mais críticos vindos de autoridades católicas. Entre eles, artigo do padre Carlos Augusto Azevedo da Silva, Vigário Judicial Adjunto da Arquidiocese do Rio de Janeiro, publicado no Vatican News no dia 31 de outubro. No texto intitulado “Rio de Janeiro: as diversas camadas de uma tragédia social”, o padre define o crime organizado como “um poder paralelo ao poder do Estado”, que se desenvolveu desde os anos 1960 em territórios “abandonados pelo Estado e sem serem alcançados pelas políticas públicas”.
Sem mencionar o governo de Cláudio Castro, o texto critica “aqueles que se aproveitam das tragédias sociais para transformar a dor e sofrimento em palco e espetáculo, em oportunidade de lucro político ou forma de favorecimento de seu discurso ideológico”.
Em outro texto, no dia 3 de novembro, o site da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro qualificou o ocorrido como “violenta operação policial” e “brutalidade do confronto”, chamando a atenção também para fala do padre Edmar Augusto Costa, da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, na Penha, relembrando o “cenário de horror” que presenciou, a dor da comunidade e “o olhar estigmatizado que muitas vezes se lança sobre os moradores das favelas”. O texto destacou ainda as ações da paróquia no local.
No dia 4 de novembro, o site da CNBB também publicou texto do arcebispo Dom Luiz Fernando Lisboa, bispo titular de Cachoeiro de Itapemirim (ES), condenando a “banalização da morte” no “confronto policial no Rio de Janeiro”. Intitulado “Quando o cristão comemora a morte, o evangelho se cala”, o texto afirma que “Vivemos uma cultura que confunde justiça com vingança e ordem com violência.
O arcebispo reafirma a posição da Igreja Católica que incluiu seu ativismo contra o aborto: “O Papa Leão XIV recordou recentemente que “não se pode ser contra o aborto e, ao mesmo tempo, defender a pena de morte” e afirmou que “defender a vida não é proteger o crime, mas reafirmar que o mal se vence com o bem”.
Embora a posição da Igreja Católica condene a comemoração das mortes na operação, seu pedido de paz e justiça não endereça o Estado, em particular o governo de Cláudio Castro, como agente promotor da violência.
A Igreja se omitiu também diante das falas de parlamentares e organizações que advogam falar em seu nome, como as parlamentares católicas já citadas, e o Centro Dom Bosco de Fé e Cultura (CDB), organização leiga com sede no Rio, que chegou a afirmar que a violência no Rio é produto do “abandono da fé”, compreendida como a diminuição do número de católicos no país.
Segundo o CDB, de 1500 a 1960, enquanto o Brasil possuía “95% de católicos”, não havia problema de violência no país, fala que não tem nenhuma base na realidade e que omite a violência do processo de colonização com a participação da própria Igreja Católica. A omissão da Igreja também foi notada pela iniciativa Imagine a Dor Adivinhe a Cor, que articulou um abaixo-assinado, dirigido à CNBB, “manifestando indignação diante do ocorrido no último domingo, Dia de Finados, no Rio de Janeiro, quando o governador do Estado — dias depois da maior e mais letal operação policial nas comunidades cariocas — foi aplaudido durante uma missa”. O fato aconteceu em uma paróquia na Barra da Tijuca em que Cláudio Castro congrega e atua como cantor católico.
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