“É muita crueldade fazer uma operação como essa. Eles não estão nem aí. Querem mesmo destruir tudo. Se pudessem, largariam uma bomba, como fazem em Gaza, para destruir tudo de uma vez”, afirma o sociólogo
O massacre da Operação Contenção, conduzida nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, nesta terça-feira, evidencia que as comunidades “estão sendo estilhaçadas e disputadas palmo a palmo por grupos armados estatais e não estatais, que possuem, num determinado âmbito, alianças, acordos e negócios comuns, mas, em outros âmbitos, estão em disputa permanente”, afirma José Cláudio Alves, na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Há mais de trinta anos, o sociólogo analisa questões relacionadas a grupos de extermínio, milícias e tráfico de drogas na Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Para ele, a operação “é um imenso bolo de fumaça jogado na nossa cara, que faz com que não enxerguemos o que está acontecendo e nos leva a pensar que se trata de uma guerra entre a força armada estatal e o grupo armado não estatal”. No entanto, explicita o entrevistado, “ali tem todo um Estado em funcionamento, que está sendo ocultado”. Trata-se, pontua, de uma “operação muito bem calculada, num momento específico em que o grupo político a que Cláudio Castro está vinculado, da direita e extrema-direita, está empastelado e não está conseguindo reagir. Vejo a operação como uma necessidade de manter as fileiras deles unificadas em torno dos discursos ‘bandido bom é bandido morto’”.
Apesar de esta não ser a primeira chacina registrada no estado, Alves diz que “é difícil captar o que está acontecendo” no momento, não só por causa do aumento da letalidade policial, que somente neste confronto matou mais de 120 pessoas, mas dos discursos de apoio à repressão. Nas próprias comunidades atingidas, destaca, há “discursos vinculados à extrema-direita, ao bolsonarismo e de apoio a esses massacres”.
Nesse cenário, sublinha, é urgente “entender por que as pessoas estão defendendo o massacre de outras pessoas no local onde elas moram. Por que elas defendem esse discurso? Não tem pesquisa sobre isso. (…) Há uma desilusão e uma construção narrativa que as pessoas incorporaram, que diz que tem que matar mesmo, tem que ter um regime repressivo mais forte”. Questões inquietantes, segundo o entrevistado, vêm à tona com este acontecimento: “Como as pessoas chegaram no apoio a esse discurso? Que grau de desilusão e de arrependimento houve? A que tipo de violências essas pessoas são submetidas? Onde essas pessoas se quebraram? Manoel de Barros perguntava, num poema, quanto tempo uma pessoa precisa viver na miséria para que em sua boca nasça a escória. Quanto tempo essas pessoas terão que ser submetidas a isso a que elas foram submetidas nesse massacre, para que nelas nasçam o ódio, a escória, o desejo de matar o outro?”

José Alves (Foto: João Vitor Santos | IHU)
José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo (USP). É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
IHU – Moradores dos complexos do Alemão e da Penha relataram o ódio policial na Operação Contenção, manifesto em agressões físicas e verbais, incêndio e invasões de residências. De outro lado, o Comando Vermelho (CV) reagiu rapidamente, mandou fechar vias e comércios e lançou bombas por meio de drones. O que ficou evidenciado nessa operação?
José Cláudio Alves – Essa foi uma operação muito bem calculada, num momento específico em que o grupo político a que Cláudio Castro está vinculado, da direita e extrema-direita, está empastelado e não está conseguindo reagir. Vejo a operação como uma necessidade de manter as fileiras deles unificadas em torno dos discursos “bandido bom é bandido morto”, “temos que fazer operações porque estamos combatendo o crime”, “somos os heróis e eles são o mal e por isso vamos dizimá-los”. A operação foi feita numa proporção ainda não vista no Rio de Janeiro, com ampla letalidade. Quando se colocam 2.500 homens em duas áreas favelizadas, controladas pelo CV, se faz uma declaração de massacre. Eles já entraram ali para matar.
O ódio que os moradores estão relatando é o ódio de uma organização de segurança pública que foi construída para ser isso que é desde a ditadura militar. Mas agora é como se tivessem soltado todos os ódios que alimentaram ao longo desse período todo. Esse ódio é cultivado diariamente, por meio de operações menores. Na prática, as tropas da polícia são treinadas diariamente em pequenos eventos constantes de morte, de ódio e de segregação de populações pobres. Essa é a função desses cães de guerra. Eles são treinados para isso.
Com o discurso da cooperação que está sendo veiculado pela PEC da Segurança Pública, provavelmente não vão fazer o que foi feito em 2007. Em 2007, Paulo Vannuchi era secretário de Direitos Humanos, ligado diretamente à Presidência da República. Ele constituiu uma comissão de peritos e a enviou para o complexo do Alemão para analisar os 19 corpos assassinados. Neste momento, estamos num patamar de mortes muito maior do que aquele de 2007. Naquele momento, a comissão de peritos identificou que 73% das perfurações dos 19 corpos estavam localizadas nas costas e na cabeça das pessoas. Os peritos tiveram certeza de que era uma grande execução sumária. Neste momento, tinha que ser enviada uma comissão para montar o laudo cadavérico de cada um desses corpos, para identificar a causa mortis deles e para confirmar o que os moradores estão dizendo, isto é, que foi uma grande execução sumária e coletiva, que está sendo apagada com o discurso do combate ao crime.
Criou-se uma grande cortina de fumaça. Esses mortos serão esquecidos e sepultados no passado desta cidade. Não vai ser feito nada de concreto para responsabilizar essa chacina. Infelizmente, estamos num momento histórico muito diferente do de 2007, que era uma conjuntura mais favorável de combate a esse tipo de crime cometido por dentro da estrutura do Estado, diretamente por agentes públicos. Hoje, isso está muito pior. Cada estado quer estabelecer suas tropas de operações letais. Desde 2019, o país vive uma redução de homicídios dolosos, mas, na direção oposta, têm aumentado as mortes causadas por agentes do Estado. Hoje, muito mais preocupante do que estabelecer parcerias entre governos estaduais e federal, é estabelecer um controle dessa letalidade dos agentes do Estado.
Conheço muito bem a estrutura de segurança pública do Rio de Janeiro. Ela está comprometida; é mais um grupo armado que faz negociações com os demais grupos armados. O controle territorial por grupos armados representa a obtenção de fonte de recursos financeiros, de votos e de controle de circulação nessas áreas como um todo. Cada grupo armado tem seus vínculos de poder político e econômico e, ao se movimentarem como ontem [28-10-2025], numa ação do grupo armado estatal e numa reação do grupo armado não estatal, o que está em jogo é o novo acordo que vai se estabelecer ali, porque eles vão continuar atuando.
Então, não adianta o governo do Rio de Janeiro fazer uma parceria com o governo federal se o governo federal vier para reforçar a posição de um grupo armado estatal que já tem relações duradouras com o grupo armado não estatal, todos gerando benefícios para grupos econômicos e políticos que estão nesse território. A situação virou algo muito mais difícil. Não adianta pensar que policiais armados vão resolver isso. A questão está em outra esfera. Tem que ter uma discussão sobre que tipo de políticas públicas vão bloquear essas ações. Se a escolha é pelo déficit zero, não é possível fazer nada.
IHU – O CV tem se espraiado para outras regiões do Rio de Janeiro. Qual é o tamanho e o poder da facção hoje e como avalia a reação imediata à operação?
José Cláudio Alves – Quando as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) começaram a ser instaladas no Rio de Janeiro, elas foram instaladas no confronto direto com a estrutura do CV, ou seja, nas comunidades onde ele atuava. Isso fez com que o CV, em 2008, adotasse uma estratégia de sobrevivência que dependeu das relações que ele estabeleceu com a estrutura armada estatal. Nenhum grupo armado seria tão longevo no Rio de Janeiro se não houvesse a participação real dessa estrutura estatal armada, que dá segurança a esses grupos.
O CV, ao ver seu prejuízo desde 2008, e a expansão da milícia nos seus territórios, começa a se estruturar. O CV é uma espécie de indicador de crimes: onde tem o crescimento do CV já se sabe que chegará uma milícia para cobrar taxa de segurança e ganhar muito dinheiro com vários negócios. Quando o CV se viu nesse cerco, começou a reagir – e as reações estão vindo desde aquela época. Na Baixada Fluminense, vimos essas incorporações, assim como em Belford Roxo houve composições do CV com a força estatal armada. Em Nova Iguaçu houve um avanço crescente do CV em várias comunidades.
Em 2023, começamos a ter notícias de que grandes milícias do Rio de Janeiro, comandadas pelo Zinho [1], começam a fazer alianças com o CV para se protegerem de ataques de outros milicianos que queriam derrubá-lo da liderança para tomar o poder dele. Ou seja, já existe uma aliança entre CV e milícias, uma coisa impensável anos atrás. O CV começou a ganhar uma musculatura que não tinha. A própria estrutura policial começou a achar mais interessante fazer acordos e negócios com o CV do que com as milícias, porque é mais seguro um acordo com o CV do que com a milícia, onde participam vários membros da estrutura pública de segurança. Além disso, a permanência do CV nessas comunidades deu a ele uma capacidade de interação com essas populações. Os ganhos que essas populações têm com o CV não são iguais aos que têm com a milícia. A milícia não mora nessas comunidades. A classe e a cor dos milicianos é outra. O CV é mais próximo das comunidades pobres e favelizadas, o que permite mais relações.
Quando fizeram a operação com 2.500 policiais, a polícia sabia que o CV iria reagir. O CV já está operando com drones desde 2015. Em 2023, Zinho conseguiu incendiar 35 ônibus na Zona Oeste, em parceria com o CV. O que o CV fez ontem foi uma resposta menor do que se imaginava. Agora, o discurso do Cláudio Castro quer jogar a responsabilidade para cima do governo federal, mas a intenção é manter a tropa unida, a extrema-direita vociferando o tempo todo em torno do discurso de que tem que matar bandido porque “bandido bom é bandido morto”. Esse mantra está se espalhando para o país como um todo.
IHU – Como esse discurso reverbera nas comunidades em que o CV atua?
José Cláudio Alves – Não é uma reverberação no enfoque que estou dando, é claro. As comunidades mais pobres vão aderir ao discurso do aumento da letalidade, com certeza. Isso porque elas também estão expostas à violência. Se tem um lado do CV que traz benefícios para quem, de certa forma, está vinculado ao funcionamento da facção, tem também os que não estão vinculados ao CV e vão sofrer as consequências da estrutura armada que atinge qualquer um que se opõe a ela.
Parte das comunidades não tem vínculo real e fixo com o CV. São grupos que circulam em torno dos discursos que lhes são mais favoráveis. Por outro lado, tem uma massa de pessoas que propaga todo tipo de fake news. Além disso, tem o medo, que faz as pessoas abraçarem o primeiro cara que aparece dizendo que vai salvar as comunidades. O medo que o CV representa pode levar as pessoas a acreditarem na estrutura estatal armada, mesmo que se provoque um conjunto de mortes sobre outras pessoas.
Essas são comunidades fragmentadas, divididas, que estão sendo estilhaçadas e disputadas palmo a palmo por grupos armados estatais e não estatais, que possuem, num determinado âmbito, alianças, acordos e negócios comuns, mas, em outros âmbitos, estão em disputa permanente. É difícil captar o que está acontecendo. Então, vai haver, nessas comunidades, discursos vinculados à extrema-direita, ao bolsonarismo e de apoio a esses massacres.
Se morre o filho de uma família, que naquele momento estava próximo do confronto, vão dizer que foi um acidente, que não foi algo desejado. Vão sofrer, mas vão estabelecer uma leitura que é favorável à bolha onde estão organizados. Digo que se trata de duas realidades: a offline e a online. A offline diz respeito a todas essas mortes. A online são as bolhas que vão ler essas mortes e fazer outras leituras e interpretações. Hoje, a guerra é vencida não pelo número de mortes, mas pela narrativa, pelo discurso, pela veiculação comunicacional que foi feita em cima do evento.
IHU – Em operações como essa, é comum destacarem a quantidade de armamentos e toneladas de drogas apreendidas, além do número de presos e mortos, mas pouco se fala sobre as relações humanas envolvidas nessa escalada de violência, que gera sofrimento, alimenta o ódio, a raiva, e o desejo de vingança. A partir desta operação, que sentimentos serão alimentados dia a dia e que poderão contribuir para aumentar a escalada de violência nas comunidades? O que o senhor percebe em relação a isso a partir das suas pesquisas?
José Cláudio Alves – É muita crueldade ver como essas pessoas são tratadas e destituídas de proteção. Uma chacina desse porte vai trazer um sofrimento inimaginável. Não tem estudos sobre isso. Seriam necessários estudos através das redes de saúde para analisar o crescimento das doenças que vão surgir. O pântano onde tudo isso foi construído, não foi alertado. Continua lá, com brutal desigualdade, crime crescendo, grupos econômicos e políticos com interesse nessa estrutura criminal porque ganham com isso, e com plataformas eleitorais que se baseiam nessa forma de atuação por parte de grupos políticos.
As pessoas que vivem nessas comunidades estão tentando sobreviver. Elas têm que trabalhar e não têm salário. É uma sociedade sem salário, que vive de programas sociais, de microempréstimos por redes financeiras privadas, que vivem de jogos eletrônicos, que invadem terrenos para construir um pequeno imóvel e cobrar aluguel para o tráfico e outros. São pessoas que buscam participar de movimentos sociais que tragam algum tipo de benefício social, que vão se projetar politicamente com milicianos e com o tráfico para criar uma estrutura de poder.
Que sociedade é essa dessas pessoas? Nem sabemos quem são elas. É uma barbaridade fazer uma operação desse porte em cima delas. Elas vão adoecer, muitos vão morrer sentados no banco, esperando atendimento – várias mães de jovens assassinados morrem assim, esperando atendimento. A rede de saúde pública não lhes dá um atendimento adequado. Ao mesmo tempo, não vemos ninguém preocupado com essas pessoas. O máximo que vão dizer é que a polícia tem muito ódio, invadiu as casas, vão aparecer relatos de roubos, de agressões, como sempre acontece nessas operações, mas esse sofrimento mais longo e duradouro que eles estão vivendo, com a morte de pessoas próximas, não é tratado.
Além disso, esse tipo de situação divide as comunidades de tal forma que uma família pode ter dentro dela diferentes integrantes dessas forças armadas. Pode ter gente ligada à estrutura policial, outros ligados à facção, outros a milícias. Esses membros dessas famílias, muitas vezes, vão se matar. Isso eu já: primo que mata primo em função dos interesses armados. Com isso, acabam as relações. Destrói-se tudo. E isso ocorre também entre vizinhos, entre amigos, membros da mesma comunidade religiosa.
Quando os grupos armados estão dentro das regiões, as comunidades são retaliadas em diferentes grupos de interesse. Os grupos interagem e se matam. Isso gera um sofrimento e uma realidade num grupo religioso, numa família, que é loucura. Aí se têm o ódio e o ressentimento recalcado. A tristeza que não pode manifestada, a vingança requentada e elaborada em sentimentos que vão autodestruir as pessoas.
Tenho um conjunto de informações que recebo em função do meu trabalho, como o relato de uma mãe que disse que não quer que a outra mãe sofra o que ela está sofrendo por causa da morte do seu filho. Mas quando o filho da outra mãe, que participou da morte do filho dela, morre, então, diz que está acontecendo justiça. Ou seja, percebemos as contradições que existem aí: a pessoa fala em sofrimento, mas ao mesmo tempo quer justiça. As pessoas vivem na contradição o tempo todo. É uma situação desesperadora porque não tem solução.
Além disso, a convivência das pessoas nesses ambientes as destrói. Elas serão progressivamente destruídas. Elas precisam de ajuda para refazer as suas vidas. Mas elas não têm acompanhamento psicológico e psicossocial. Estão abandonadas à própria sorte. É muita crueldade fazer uma operação como essa que foi feita. Eles não estão nem aí. Querem mesmo destruir tudo. Se pudessem, largariam uma bomba, como fazem em Gaza, para destruir tudo de uma vez. Como isso não pode ser feito aqui, fazem uma operação desse porte para matar esse monte de gente numa localidade. É a nossa guerra, que sempre existiu, mas agora chegou numa escalada mais elevada, envolvendo um conjunto de forças políticas, num período pré-eleitoral.
IHU – O Brasil caminha para se transformar um narcoestado nas próximas décadas?
José Cláudio Alves – Não somos um narcoestado na proporção que foram a Colômbia e o México. Não estou vendo uma estrutura nesse sentido, mas acredito que somos o nosso próprio narcoestado brasileiro. Eu não diria somente narcoestado. O narcoestado joga a responsabilidade somente nas costas do narcotráfico, e isso é um equívoco. O narcoestado é um estado aparelhado por grupos armados, então, dependendo da localidade, do território, da história daquele território, dos grupos políticos que estão ali, eu diria que é mais adequado falar em uma chacina-estado.
São grupos armados, estatais e não estatais, que têm relações entre si, por meio das quais se estabelecem políticas de controle territorial, obtenção de grana e de votos. A meu ver, trata-se disso. Então, não é um simples narcoestado, como se fala. É uma estrutura mais ampla. Falar somente em narcoestado significa omitir o papel fundamental do próprio Estado. Querem livrar a cara do Estado, jogando tudo nas costas do tráfico, mas temos que olhar para o próprio Estado. Ele tem interesse em abrir mão da soberania nacional, do monopólio legal da violência. Ele é quem constitui microestados de exceção na mão desses grupos. É o Estado em si mesmo: prefeitos, governadores, vereadores, deputados, juízes. É toda a estrutura do Executivo, Legislativo e Judiciário que está fazendo negociações e acordos.
Uma operação como a que ocorreu ontem é um imenso bolo de fumaça jogado na nossa cara, que faz com que não enxerguemos o que está acontecendo e nos leva a pensar que se trata de uma guerra entre a força armada estatal e o grupo armado não estatal. Ali tem todo um Estado em funcionamento, que está sendo ocultado. Para isso que serve uma operação deste porte: ocultar a situação e controlar toda a agenda midiática de informações e as agendas das bolhas das redes sociais, para fazer a narrativa que é favorável. O termo narcoestado, portanto, não leva em consideração que é o Estado em si mesmo quem está operando.
IHU – Como o Projeto Antifacção se insere nesse contexto que o senhor descreve? O que esse projeto representa nesse momento?
José Cláudio Alves – Visa uma repressão mais intensa em cima desse conjunto envolvido com as facções. É mais do mesmo. Vão intensificar a lógica repressiva de punição e aprisionamento, mas já está comprovado que isso não resolve a situação. Mesmo dentro da estrutura prisional, as facções funcionam. Elas nasceram da estrutura prisional. Tanto o CV quanto o PCC nascem do massacre que essas pessoas viveram no caldeirão do diabo, na Ilha Grande [2], e no Carandiru [3].
Não adianta massacrar essas pessoas, prender ainda mais, matá-las e mantê-las em condições ínfimas de saúde e de humanidade. Se não compreendermos o que leva as pessoas a irem para uma atividade dessas, com tanto risco, se não atuarmos no substrato, onde essas facções se constituíram, não resolveremos o problema. Essa população precisa ser olhada de outra forma. Do contrário, não será possível disputar esses jovens que estão dispostos a entrar numa facção.
O Projeto Antifacção é meramente uma dimensão de descarga punitiva das leis. O sistema judiciário pune quem? Os mais pobres, os favelados, os periféricos. E os caras que estão nas fintechs da Faria Lima? Os que são do agronegócio e os políticos que recebem tanta grana por causa do tráfico? O Antifacção vai chegar no cara do topo, que financia tudo isso e tem interesse nos dois milhões de dólares de cocaína que chegam no Rio de Janeiro? O cara que pega cocaína na Bolívia e na Colômbia, que está financiando tudo isso, vai ser identificado e trazido para prestar esclarecimentos? O Antifacção vai partir de investigações desse tipo? Essa é a grande questão. A situação é mais complexa.
Precisamos entender quem quer manter esse sistema funcionando, quem quer fazer o discurso do terror, do “bandido bom é bandido morto”. A extrema-direita se favorece disso e alimenta esse cenário. As pessoas que entram nesse discurso nem fazem ideia do que está acontecendo. Então, temos que entender por que as pessoas estão defendendo o massacre de outras pessoas no local onde elas moram. Por que elas defendem esse discurso? Não tem pesquisa sobre isso. Essas pessoas votaram no Lula, na Dilma e hoje não votam mais. Há uma desilusão e uma construção narrativa que as pessoas incorporaram, que diz que tem que matar mesmo, tem que ter um regime repressivo mais forte.
Como as pessoas chegaram no apoio a esse discurso? Que grau de desilusão e de arrependimento houve? A que tipo de violências essas pessoas são submetidas? Onde essas pessoas se quebraram? Manoel de Barros perguntava, num poema, quanto tempo uma pessoa precisa viver na miséria para que em sua boca nasça a escória. Quanto tempo essas pessoas terão que ser submetidas a isso a que elas foram submetidas nesse massacre, para que nelas nasçam o ódio, a escória, o desejo de matar o outro?
[1] Zinho (Luiz Antônio da Silva Braga): Chefe da maior milícia do estado do Rio de Janeiro. Estava à frente da milícia de Campo Grande, Santa Cruz e Paciência, na Zona Oeste do Rio, em 2021, dois meses após a morte do antigo líder, seu irmão, Wellington da Silva Braga, o Ecko. Antes de liderar a milícia, estava ligado a atividades de lavagem de dinheiro na Baixada Fluminense. Entregou-se à Polícia Federal em 24-12-2023. Cumpre pena em presídio de segurança máxima em Brasília.
[2] Instituto Penal Cândido Mendes: Anteriormente chamado Colônia Penal de Dois Rios, foi um presídio localizado na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Funcionou de 1903 a 1994. Nos anos 1970, presos criaram a Falange Vermelha, organização que depois se tornou o Comando Vermelho. Os fundadores foram os traficantes Rogério Lemgruber, William da Silva Lima e José Carlos dos Reis Encina.
[3] Carandiru (Casa de Detenção de São Paulo): Foi uma penitenciária localizada na Zona Oeste de São Paulo, inaugurada em abril de 1920. Já foi considerado o maior presídio da América Latina, abrigando mais de oito mil presos. Foi o local do massacre do Carandiru, em 02-10-1992, onde 111 detentos foram mortos numa intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo. O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, no governo Geraldo Alckmin.