Por: Cesar Sanson | 08 Abril 2013
Há 20 anos o pavilhão 9 do maior presídio da América Latina foi invadido pela tropa de choque da Polícia Militar. A ação foi comandada pelo coronel da polícia militar Ubiratan Guimarães, após consentimento do então governador Luiz Antônio Fleury e do ex-secretário de Segurança Pública Pedro Franco de Campos.
Conhecido como massacre do Carandiru, o episódio resultou, segundo a versão oficial apresentada pelas autoridades da época, na morte de 111 detentos. Desde então, apenas o coronel Ubiratan – falecido em 2006 – foi a julgamento, sendo condenado a 632 anos de prisão em regime fechado.
Por ser réu primário e ter endereço fixo, o coronel conseguiu recorrer da sentença em liberdade, até a sentença ser anulada. Ironicamente, o pavilhão 9 era específico para réus primários. Cerca de 80% das vítimas do massacre esperavam por uma sentença definitiva. Ainda não haviam sido condenadas pela justiça.
Depois de ter exercido mandato de deputado estadual, Ubiratan foi encontrado morto em seu apartamento. Apesar de contestada, à época, a suspeita de crime passional foi aventada, envolvendo a sua namorada e advogada, Carla Cepollina, que irá a julgamento no próximo dia 5 de novembro.
Sidney Sales, 45, é um dos poucos sobreviventes. Morador do município de Jundiaí (SP), ele relatou ao jornal Brasil de Fato e à Radioagência NP, 08-04-2013, como foi o dia do massacre: “De repente eles falaram: ‘estão atirando!’ Eu falei que não, que eles estavam atirando com bala de borracha. Mas daqui a pouco os outros me ligam e dizem que eles estavam executando mesmo as pessoas. Eu subi na ventana (janela), e quando eu olhei já vi vários cadáveres estirados no chão. Eu fiquei em pânico.”
Quando questionado sobre o número de mortos, Sales vai direto ao ponto: “111 que tinham pai, mãe e advogado. Quem recorreu. Várias pessoas não tinham família [...] Eu creio que aproximadamente morreram uns 250. Eu distribuía alimentação no presídio. Naquele dia, sobraram quase duas caixas de pão”.
Sales define o Carandiru como “o vale da sombra da morte”. Cadeirante, hoje faz palestras em universidades, igrejas e comunidades de baixa renda. Também trabalha com dependentes químicos e acredita que as pessoas têm potencial para se recuperar e viver dignamente. “Nós amamos pessoas que não querem ser amadas. Nós colocamos sonhos nos corações dessas pessoas que nem sonhar elas querem mais.”
Eis a entrevista.
O que vem na memória do senhor quando fala em Carandiru. Quais as lembranças que o senhor tem daquela época do cárcere?
O pior momento da minha vida foi no Carandiru. O maior presídio da América Latina. Principalmente o episódio do massacre do dia 2 de outubro de 1992. Jamais será apagado da minha memória.
Como foi o impacto quando o senhor chegou no Carandiru? Como fez para sobreviver lá dentro?
Quando eu cheguei, fiquei em pânico. Eu nunca tinha visto um presídio na dimensão, extensão e quantidade de pessoas como era o Carandiru. Só no pavilhão 9 tinha aproximadamente 2.500 pessoas. A sobrevivência é aquela que você vale quanto você pesa. Se você cria uma condição de conviver um pouco melhor, você vivia um pouco melhor. Se você não tivesse essas condições, tinha que prestar serviço para outras pessoas: lavar manta, vender algum objeto dentro do presídio [...] Fora o que era contravenção: nota, faca, baralho [...] Mas você tinha que ter um meio de sobrevivência. Conhecer alguém e ter um bom relacionamento com algumas pessoas para ser transferido para outro pavilhão.
Como que era a convivência?
A convivência era normal. Antigamente era dividido por setores: zona sul, zona leste, zona norte e zona oeste. O pessoal do interior era chamado de pé vermelho. A convivência era boa. Se você não tivesse dívida ou falha no crime, se você não tivesse 'caguetado' ninguém, ou se tivesse uma boa conduta e uma boa postura, era uma pessoa bem-vinda. Agora, aquelas pessoas que eram de alto grau de periculosidade tinha uma sobrevivência melhor do que todas.
A maioria dos presos do pavilhão 9 era primário?
O pavilhão 9 era dos chamados cabeças de bagre. Os primários. Eram pessoas que tinham passado pela primeira vez na Casa de Detenção.
Como foi o dia dois de outubro de 1992?
Eu me encontrava no campo, jogando bola, pois era final de campeonato. De repente, a gente ouviu aquele alvoroço no andar e quando nós subimos o nosso time tinha sido campeão. Tinha começado aquele alvoroço do Barba e do Coelho (dois ladrões considerados de alta periculosidade), pois havia rivalidade entre os dois. De repente, uma quadrilha se confrontou com a outra. Um ficou gravemente ferido e foi transferido pro pavilhão 4 (enfermagem) e o outro demorou para o agente penitenciário socorrer.
Tinha uma gangue lá que começou a gritar “virou rebelião, virou rebelião!”. De repente, todo mundo começou a se armar com estilete, faca, alguns colocando capuz na cabeça […]. Aí eles começaram a gritar que a briga era só entre os agentes penitenciários. Nisso os agentes ficaram em pânico, evadiram o pavilhão que ficou a mercê dos detentos que ali se encontravam. Uns começaram a por fogo em algumas oficinas, pois ali tinha marcenaria, pregador e setor de fazer guarda-chuva.
Creio eu que o fogo pegou na cozinha que era a copa, onde houve talvez a explosão do gás P45. Nesse momento que o doutor Ismael Pedrosa, que era diretor na ocasião, permitiu que o Choque invadisse. Só que o Choque invadiu, no meu modo de dizer, de uma forma desumana. Se eles tivessem cortado a luz e água ou se tivessem cortado a alimentação, obviamente nós nos renderíamos.
Quando eu liguei o canal de televisão, a primeira coisa que eu vi foi a Tropa de Choque. Quando eu troquei o canal, o pelotão já havia invadido a Casa de Detenção e algumas pessoas subiram até a minha cela, pois eu ficava no 5º andar, era faxineiro. De repente, eles falaram: “Estão atirando!”. Eu falei que não, que eles estavam atirando com bala de borracha. Mas daqui a pouco os outros me ligam e dizem que eles estavam executando mesmo as pessoas. Eu subi na ventana (janela), e quando eu olhei já vi vários cadáveres estirados no chão. Eu fiquei em pânico.
Uma semana antes minha mãe havia trazido uma carta do salmo 91, pra quem não sabe eu sou aquele menino do filme Carandiru. Eu entro pra cela e começo a recitar aqueles versículos. Nessa hora, o policial chutou a porta e mandou todos nós tirarmos a roupa e sair todos nus. Quando eu saio da galeria, vejo quase 40 cadáveres estirados no chão. Alguns entre a vida e a morte agonizando.
Os policiais mandaram descer. Quando eu desço do 5º para o 4º andar, um policial mascarado esfaqueou o rapaz com uma baioneta que estava na na ponta da espingarda, deu mais alguns disparos, soltou o cachorro pastor alemão, o cachorro catou e estrangulou o preso. O policial virou e falou: “Pula negão”. Eu desci todos os andares e cheguei no primeiro. Todos tinham que ficar com a cabeça entre as pernas.
Passaram-se algumas horas e começou a chover. Os policiais mais os agentes penitenciários começaram a catar algumas pessoas pra carregar os cadáveres. Eu fui uma das pessoas escolhidas. Carreguei aproximadamente uns 35. Depois um policial falou: “Aí negão, você e o outro aí sobem pra catar outro cadáver”. Quando nós subimos, o rapaz que estava comigo perguntou: “Caramba, nós já não carregamos todos os cadáveres?”. Eu falei que talvez eles tivessem deixado embaixo de alguns escombros. “Vamos rápido antes que os caras eliminem nós”, disse. Quando eu subi pra catar o cadáver, vi que era o cara que estava ajudando a gente a carregar os outros cadáveres. Porque agora quem estava ajudando a carregar todos os cadáveres estava dando queima de arquivo.
Eu percebi isso, subi pra galeria, pro 4º andar, cheguei e vi aquela poça de sangue misturada com água. Não que eu tinha complexo pelo fato de contrair o vírus HIV, pois já tinha tomado conta de pessoas em fase terminal com vírus da Aids dentro da cadeia, mas meu medo era pisar no sangue das pessoas que eu havia conhecido. Então eu subi para o 5º andar. Quando eu cheguei lá me deparei com três policiais. Eles me viram, apontaram a arma pra mim, uma calibre 12, uma escopeta, uma metralhadora e duas automáticas. Falaram: “O que você está fazendo aqui?”. Eu disse: “Meu senhor, eu ajudei a carregar os cadáveres lá embaixo e o tenente mandou eu subir pra cá”. Nessa hora ele falou que ia acontecer um milagre na minha vida. Ele estava com um molho de chaves na mão, um ferro que tinha umas 50 chaves, e falou: “Olha moço, o milagre que vai acontecer é o seguinte: eu não sei qual é a chave do cadeado, mas a chave que eu pegar na mão e bater no cadeado eu vou torcer. Se abrir, você entra, se eu não abrir, nós vamos te executar agora”. Naquela hora eu me apeguei com Deus. Na hora que ele catou a chave, colocou no cadeado e torceu, o cadeado abriu. Foi nessa hora que eu entrei e ouvi a batida da porta nas minhas costas. Tinha umas 40 pessoas. Começamos a se revezar pra tomar um pouco de ar, pra não ficar asfixiado ali naquela cela.
Pela madrugada um detento escapou pela porta do guichê e começou a quebrar os cadeados das outras celas. Nós começamos a nos amotinar de novo pra pedir a reivindicação de juiz, promotor, pessoas que estavam com penas vencidas, pessoas que já estavam passando de um terço de sua pena. Nesse momento foi pedido para fazer uma comissão pra conversar com um juiz, assistente social ou psicóloga. Quando nós formamos essa comissão pra conversar o pelotão do choque invade de novo, pega os elementos de alta periculosidade e transfere para algumas penitenciárias. Eu fui transferido para Parelheiros. Fiquei dois dias. Fui para a Penitenciária do Estado. Fiquei mais dois dias. Depois fui transferido para Mirandópolis. Após sete anos privado, ganhei minha liberdade.
O número de 111 mortos corresponde com a realidade?
111 que tinham pai, mãe e advogado. Quem recorreu. Várias pessoas não tinham família. As pessoas excluídas, consideradas como indigentes. Eu creio que aproximadamente morreram uns 250. Eu distribuía alimentação no presídio. Naquele dia sobraram quase duas caixas de pão.
Tem algum outro fato que ocorreu no pavilhão 9 que o senhor queira contar?
A extorsão lá era complicada. Na parte de alimentação. Muita alimentação era desviada. E no fundão do pavilhão 9 era a sobra do resto da comida. Muitas vezes a alimentação era negociada. Com três maços de cigarros você comia dez bifes. A sobrevivência era precária pra quem não tinha condições.
O que significa hoje para o senhor ser um sobrevivente do massacre?
Eu sou vítima do Estado. Pelo fato da ausência do Estado na minha periferia, na minha escola, na minha instrução foi que eu me tornei um marginal. Só que esse marginal foi jogado num depósito, onde era a Casa de Detenção. O maior presídio da América Latina, onde a única pessoa que se lembrava de você, era a sua mãe. O Carandiru pra mim era um depósito. Uma coisa que ficará gravada na mente de qualquer pessoa que passou naquele lugar. Ali eu considerava como Auschwitz. Há muitas histórias que aconteceram que não podem ser contadas. Eu defino o Carandiru como o vale da sombra da morte. Um local que você dormia num dia e não sabia se levantaria no outro.
As pessoas que se envolvem hoje no crime também continuam sendo vítimas do Estado, em sua opinião?
Com certeza. O filho de uma pessoa que tem o poder aquisitivo vai para a escola no berçário. Com 1 ou 2 anos, ele já está falando “What´s your name?”. Já está contando de um a dez em japonês. Enquanto o filho do pobre vai para escola na primeira série aprender o que é vogal. Quando vai fazer um curso para prestar um vestibular para entrar na universidade, ela é então ocupada pela pessoa que tem o poder aquisitivo. Quem vem da periferia não tem a possibilidade de cursar uma universidade, na maioria das vezes. Se o pobre não tiver a ousadia de ser um pagodeiro ou um bom jogador de futebol, vai se tornar outro Marcola.
O sistema carcerário recupera alguém?
O sistema carcerário é o maior produtor de marginal na América Latina. Você entra roubando pequenas coisas e sai assaltante de banco. O presídio não recupera ninguém.
O que o senhor faz hoje?
Hoje eu tenho três casas de recuperação, com mais de 110 pessoas e uma fazenda em que eu abrigo 150. Hoje eu trato drogado, alcoólatra e morador de rua. Há nove anos, faço um trabalho dentro da Cracolândia tirando morador de rua e drogado do centro de São Paulo. Nós amamos pessoas que não querem ser amadas. Nós colocamos sonhos nos corações dessas pessoas que nem sonhar elas querem mais. Devido às crises existenciais em que vivem, principalmente dessa ausência do Estado.
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“O Carandiru era o vale da sombra da morte”, diz sobrevivente do massacre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU