Vozes de Emaús: O desafio de habitar a Terra. Artigo Faustino Teixeira

Arte: Lauren Palma | IHU

22 Outubro 2025

"Há que se deixar habitar por essa complexidade. E digo ainda mais: habitar espiritualmente a Terra. Numa espiritualidade que envolve escuta, atenção, cuidado e cortesia"

O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.

Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.

Eis o artigo.

“Resta-nos ir chuleando os trapinhos para que o mundo não se desfie de vez” - Adília Lopes

Vivemos tempos difíceis nesse início do século XXI. Reflexões diversificadas nos têm apontado o grande risco que acompanha esse tempo do Antropoceno, marcado pela violenta “pegada” do ser humano sobre a Terra. Trata-se do tempo da “perturbação humana”, e que provoca uma profunda crise de habitabilidade. Estamos diante de um caminho quase irreversível, onde as paisagens globais estão repletas de ruínas, decorrentes da ação predatória do ser humano sobre o seu solo vital. Nas vésperas da COP 30 em Belém do Pará, cientistas nos advertem que o planeta atravessa um ponto crítico climático considerado catastrófico e irreversível. Se não ocorrerrerem providências urgentes estaremos em breve vivendo um colapso climático.

Muitos pensadores nos indicam, como Bruno Latour e Donna Harawai, que não há muito o que fazer, senão “aprender a viver com as consequências daquilo que desencadeamos” . Temos pela frente que “viver com o problema”, buscando formas de alinhamentos “na barriga do monstro”. Trata-se de um duro trabalho de resistência contra as forças necrófilas que ameaçam o horizonte vital. Encontrar a todo custo “gestos barreira” capazes de enfraquecer ou pelo menos adiar o impulsivo ritmo de globalização da indiferença. É o grande desafio de encetar a nobre luta em favor da continuidade das gerações. Em sua preciosa encíclica sobre o cuidado da Casa Comum, a Laudato si (2015), Francisco levanta a séria questão: “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão crescendo?” (LS 160). Dizia ainda que “previsões catastróficas” já estão acontecendo por todo canto (LS 161).

Daí a urgência de buscarmos novos laços relacionais, novos caminhos de resistência através de mecanismos inéditos de aprendizado e dialogação. Tudo em favor de uma nova habitabilidade. Somos convocados a ampliar o nosso olhar e captar o que ocorre nos subterrâneos da história. É o desafio de saber escutar os caminhos de resistência que já estão acontecendo, por exemplo, entre os povos originários, que sobreviveram tenazmente a “fins de mundo”, mediante estratégias ou artimanhas singulares de resiliência e ação. Resistências que ocorrem igualmente no mundo invisível, abaixo da terra, onde teias e filamentos fúngicos encontram caminhos de cognição e comunicação para permanecer em tempos de ruína.

Há que ampliar o olhar para perceber em nosso tempo a impressionante gama de modos de ser e de habitar, que expressam a presença viva e ativa de ressurgências. Mesmo em tempos difíceis e nebulosos podemos vislumbrar sementes e nichos de novas articulações criadoras. A ressurgência, como diz com acerto a antropóloga Anna Tsing, é “o trabalho de muitos organismos que, negociando através das diferenças, forjam assembleias de habitabilidade multiespécies em meio às perturbações” .

Os novos caminhos de atenção e escuta envolvem um profundo questionamento ao excepcionalismo humano, rompendo com os esquemas teleológicos tradicionais e situando o ser humano como parte do vivente. Como mostrou com pertinência Ailton Krenak, “os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência. Muitos outros também têm”. O nosso “nós” humano não é assim tão excepcional, mas encontra-se enredado em outras tessituras de vida que nos rodeiam e provocam. O nosso ambiente, em verdade, é marcado pelo domínio do emaranhamento:

“É dentro desse emaranhado de trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali, que os seres crescem ou 'emanam' ao longo das linhas das sua relações. Esse entrelaçamento é a textura do mundo” .

Em todo esse emaranhado, esse movimento contínuo, pulsa a vida. O caminho vem sempre tecido numa superfície que não é inanimada, mas num mundo que vem sendo sempre redescoberto. Há, portanto, que saber encetar um novo campo dialogal, que está para além dos diálogos tradicionais, envolvendo agora um diálogo interespécies.

Estamos diante de um caminho provocador, pontuado por uma nova consciência das interligações. Francisco, na Laudato si, assinalou diversas vezes esse traço essencial da interligação entre todas as coisas e seres (LS 16, 42, 91-92, 117). É um tempo que envolve uma nova reverência para com o todo, para as “espécies companheiras”. Estamos juntos, a caminho, para um horizonte diferenciado e plural, em ritmo de colaboração e não de concorrência. E o bonito nisso tudo é que vamos sendo “contaminados” por nossos encontros, descobrindo facetas que antes estavam escondidas sob a capa da incompreensão.

O passo decisivo e inaugurador é ser capaz de “aprender a florescer na complexidade”, regenerando sempre um caminho que é cooperativo e dialogal. Há que se deixar habitar por essa complexidade. E digo ainda mais: habitar espiritualmente a Terra. Numa espiritualidade que envolve escuta, atenção, cuidado e cortesia. Tudo isso se processa nos mais simples gestos do cotidiano, na concretude da vida real.

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