17 Abril 2024
“Para além dos vestígios geológicos, a influência das atividades do ser humano no clima, na perda da diversidade biológica, na destruição das florestas, na acidificação dos oceanos, nas alterações dos ciclos de nitrogênio e fósforo e na composição da atmosfera são evidentes. Um pequeno grupo de geólogos pode não ter entrado em acordo, mas as provas científicas do impacto humano na Terra são esmagadoras”, escreve Juan F. Samaniego, jornalista científico, em artigo publicado por La Marea-Climática, 12-04-2024. A tradução é do Cepat.
No Jurássico, os dinossauros dominavam o mundo. Na realidade, estes imensos seres também viveram em outros períodos da história geológica da Terra, como o Triássico e o Cretáceo. Contudo, Jurássico é o nome que melhor evoca o reino do diplodocus e do tyrannosaurus (ainda que este último não tenha vivido nele). Provavelmente, devemos isto ao romance de Michael Crichton e à saga de filmes iniciada por Steven Spielberg.
O Jurássico é um período que deixou sua marca nas rochas em forma de fósseis, sobretudo por moluscos chamados amonites. Eles não estavam presentes no período anterior e se tornaram incrivelmente abundantes e diversos a partir de um ponto há 201 milhões de anos. Aí está, oficialmente, a fronteira entre o Triássico e o Jurássico. E aí a definiu em seu momento, após anos de coleta de evidências, a Subcomissão Internacional de Estratigrafia Jurássica, pertencente à Comissão Internacional sobre Estratigrafia, por sua vez parte da União Internacional de Ciências Geológicas - UICG.
Até aqui a burocracia geológica. Nos últimos 15 anos, um grupo de especialistas tentou realizar um trabalho semelhante para traçar uma nova fronteira na história geológica da Terra. Uma que tome como referência a pegada do ser humano nos sedimentos do planeta: o Antropoceno. Esta época geológica estaria dentro da era Cenozoica e do período Quaternário e substituiria o Holoceno, época na qual vivemos nos últimos 12.000 anos.
Pois bem, há pouco mais de um mês, os membros da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário foram chamados às urnas para decidir sobre o Antropoceno. E 12 dos 18 especialistas votaram não. Permanecemos no Holoceno, por enquanto. Isso significa que nosso impacto é imperceptível nos sedimentos da Terra? Quer dizer que não alteramos a história do nosso planeta?
Spoiler: não. Nenhum dos especialistas que votaram contra o Antropoceno nega o impacto do ser humano no planeta. Contudo, possuem suas reservas quando se trata de defini-lo. Vamos aos detalhes da votação que (não) mudou o curso da história.
A Comissão Internacional de Estratigrafia decide, desde 1974, quais éons, eras, períodos e épocas existem na história da Terra. Faz isto através de um processo longo e complexo para encontrar e definir as fronteiras geológicas do planeta, que devem ser claramente percebidas nas camadas de sedimentos do solo (os estratos). Em 2009, a Comissão criou um grupo de trabalho para procurar os sinais de uma nova época, o Antropoceno, e fazer uma proposta detalhada que, chegado o momento, seria votada.
Os sinais, que deveriam ser perceptíveis, em escala planetária, foram encontrados sob a forma de isótopos radioativos das bombas atômicas, os microplásticos, os agrotóxicos e os fertilizantes e as cinzas da combustão do carvão e do petróleo. O grupo de trabalho reuniu as evidências e propôs que o fim do Holoceno e o início do Antropoceno fossem marcados em 1952. Também estabeleceu um lugar de referência, um ponto onde se pode ver de forma clara e acessível o salto de um tempo geológico para outro (e que se marca com um prego de ouro), no Lago Crawford, no Canadá.
Assim, de forma muito resumida, chegamos ao momento da votação, um processo que esteve aberto entre 1 de fevereiro e 3 de março, e no qual os 18 membros da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário tinham que ler a proposta (de mais de 200 páginas) e aprovar ou não. Se sim, a proposta ainda precisaria ser revisada pela Comissão Internacional de Estratigrafia e a UICG. Contudo, disseram não.
Jan Zalasiewicz foi presidente do Grupo de Trabalho do Antropoceno até 2020, quando foi promovido e eleito presidente da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário. É um firme defensor do Antropoceno, mas se absteve de votar, assim como um dos vice-presidentes, Martin Head. Ambos agiram assim para não legitimar uma votação que consideram irregular (muitos dos que votaram tinham ultrapassado o mandato máximo de 12 anos estabelecido pelos regulamentos internos) e prematura. Os outros dois vice-presidentes, Liping Zhou e Adele Bertini, sim, votaram e rejeitaram a proposta.
Colin Waters, presidente do Grupo de Trabalho do Antropoceno, que não participou da votação, denuncia que o debate foi tendencioso desde o início e que a visão contrária ao Antropoceno se tornou forte dentro da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário muito antes de a proposta formal ser apresentada. Além disso, destaca que os papéis com maior poder dentro das instâncias superiores, a Comissão Internacional de Estratigrafia e a UICG, também mantiveram uma posição abertamente contrária ao Antropoceno (exibindo-a inclusive nas redes sociais) sem prestar atenção às evidências apresentadas por eles.
“Ainda não recebemos a notificação oficial da votação, tudo o que sabemos vem da imprensa, também não nos expuseram oficialmente as razões pelas quais votaram contra. Nos últimos 14 anos, não houve debate real fora do Grupo de Trabalho do Antropoceno, nunca debatemos abertamente as evidências que reunimos”, explica Colin Waters. “A sensação é que a decisão de votar contra a declaração do Antropoceno como uma época geológica já estava tomada de antemão”, acrescenta.
De acordo com Waters, as supostas irregularidades foram levadas ao conhecimento da Comissão de Geoética, que publicou um relatório, em janeiro, reconhecendo que o processo não estava sendo imparcial. No entanto, suas sugestões foram ignoradas e o relatório foi distribuído de forma interna e limitada. Pela Climática, entramos em contato com a União Internacional de Ciências Geológicas para conhecer o conteúdo do referido relatório, sem sucesso. A entidade justifica que se trata de um documento interno ao qual não podem nos dar acesso”.
“A ideia do Antropoceno não vai desaparecer. Não colocamos em dúvida o impacto do ser humano no planeta, mas a questão é se as evidências reunidas são suficientes para declará-lo uma nova época geológica. Para mim, não”. Jan A. Piotrowski, professor da Universidade de Aarhus, foi um dos 12 que votaram contra. Insiste em que os seus argumentos só representam o seu ponto de vista, embora muitos concordem com os expostos por seus colegas.
Para o especialista, há dois grandes problemas de base: a influência humana no planeta ocorreu de forma desigual em diferentes pontos do planeta e a data escolhida para estabelecer a fronteira geológica, 1952. “Seria muito difícil explicar para meus alunos que a Segunda Guerra Mundial, a chegada na América e o início da agricultura foram prévios ao Antropoceno”, destaca o geólogo. “Para mim, dizer que o Antropoceno começou em 1952 diminuiria sua importância como conceito social”.
O especialista afirma também que o Lago Crawford não reúne os requisitos para ser escolhido como o prego de ouro do Antropoceno por várias razões: os sedimentos escolhidos são muito recentes e superficiais e podem estar sujeitos a mudanças no futuro, como compactação e deformação. “É uma camada bem definida, com um pico nas concentrações de plutônio, carbono e metais pesados, mas existem poréns”, acrescenta Piotrowski. “Além disso, não é um local acessível, porque os povos indígenas da região se opõem à realização de mais trabalhos científicos lá”.
“Por último, há uma questão de magnitude. Não se trata de ocultar a influência do ser humano no planeta, mas, por enquanto, as mudanças que estamos vendo não são comparáveis em magnitude às experimentadas em outras épocas da história da Terra”, enfatiza Piotrowski. “Entre o Pleistoceno e o Holoceno, o nível do mar subiu cerca de 40 milímetros por ano e a temperatura na Groenlândia subiu cerca de sete graus, em 50 anos. A diferença com os dados atuais é enorme, por isso penso que, por enquanto, não podemos falar que o Holoceno tenha terminado”.
O presidente do Grupo de Trabalho do Antropoceno, Colin Waters, vê algumas inconsistências nestes argumentos. Reconhece que o impacto humano não começou da mesma forma em todo o planeta. “É evidente, por isso dizemos que isso deve permanecer no Holoceno. Contudo, tudo muda em meados do século XX, com mudanças rápidas, de maior profundidade e com uma pegada clara em todo o planeta”, destaca. Para Waters, além disso, não tem nada de mais que alguns grandes eventos da história humana fiquem fora do Antropoceno e que, inclusive, uma pessoa possa ter nascido no Holoceno e agora viver no Antropoceno.
“Nós, geólogos, trabalhamos com coisas que duram milhões de anos, mas que podem mudar repentinamente. O impacto do asteroide que acabou com os dinossauros no final do Cretácico mudou em um instante a história do planeta e isso não é argumento para não se falar já de uma mudança de época, mas de período”, prossegue Colin Waters. “O planeta mudou para sempre devido à nossa influência, não é algo passageiro. Mesmo que deixássemos de existir agora, as mudanças na química da atmosfera, nas temperaturas e na diversidade biológica perdurarão no tempo”.
A votação parece definitiva, a menos que haja mudanças radicais na estrutura da subcomissão do quaternário, da comissão de estratigrafia e da UICG (serão eleitos novos membros em agosto). Existe a possibilidade de que a proposta original seja reavaliada, mas parece pouco provável. Além disso, caso se decidisse reabrir o processo no futuro, teria que começar do zero para reunir todas as provas. Outra opção é mudar o debate e reconhecer o Antropoceno como um evento geológico, em vez de uma época, o que evitaria todo o processo, uma vez que os eventos não precisam aparecer bem definidos nos estratos da Terra.
“Por que não deixamos este debate para as gerações futuras?”, questiona Piotrowski. “Se continuarmos arruinando o planeta como estamos fazendo ou mesmo aumentando o nosso impacto, a nossa pegada ficará evidente no registro geológico. Deixemos que as futuras gerações de cientistas avaliem esta influência e decidam onde estabelecer a fronteira com o Holoceno. É sempre mais fácil para nós ver mudanças nos estratos de milhões de anos atrás do que nos mais recentes”.
Para além dos vestígios geológicos, a influência das atividades do ser humano no clima, na perda da diversidade biológica, na destruição das florestas, na acidificação dos oceanos, nas alterações dos ciclos de nitrogênio e fósforo e na composição da atmosfera são evidentes. Um pequeno grupo de geólogos pode não ter entrado em acordo, mas as provas científicas do impacto humano na Terra são esmagadoras.
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Então, estamos ou não no Antropoceno? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU