A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Evangelho de João 3,13-17 que corresponde a Festa da Exaltação da Santa Cruz, ciclo C do Ano Litúrgico. O comentário é elaborado por Ana Maria Casarotti, Missionária de Cristo Ressuscitado.
Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: "Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem. Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna. Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele".
Hoje celebramos a festa da Exaltação da Santa Cruz. Esta festividade remonta ao século IV d.C., onde a tradição faz referência à descoberta da “verdadeira cruz”, que seria a cruz de Cristo. Diz-se que Santa Helena, mãe do imperador Constantino, descobriu essa cruz, daí o seu nome: Vera Cruz. A cruz é um dos símbolos mais antigos e universais do mundo, e seu significado varia de acordo com a cultura, as tradições religiosas e o contexto histórico.
Para o Império Romano, não era um símbolo religioso e muito menos espiritual, era um dos instrumentos de punição mais cruéis e degradantes, aplicado a escravos, rebeldes, criminosos e inimigos do Estado. Os cidadãos romanos não podiam ser crucificados. A crucificação era o método de execução pública mais cruel. Os crucificados eram expostos fora da cidade, em estradas ou áreas movimentadas, como forma de humilhação pública, para prolongar seu sofrimento e gerar medo e terror naqueles que ousassem se rebelar contra o sistema imperial. Uma maneira de silenciar possíveis rebeldes e manter a ordem estabelecida pelo Império: a pax romana.
Jesus foi crucificado, morreu como um condenado, com a pior humilhação que uma pessoa poderia receber naquela época: como escravo, rebelde, acompanhado por um pequeno grupo e observado pelas multidões que passavam. Não foi fácil para o cristianismo do primeiro século assumir a cruz como símbolo da entrega amorosa de Deus, que nos oferece seu amor até o extremo. Para nossas culturas e tradições religiosas, a cruz é um símbolo de esperança, de salvação e do amor de Deus, que sempre privilegiou a verdade, a justiça e o amor a cada pessoa com sua originalidade e liberdade, mas não era assim nos primeiros tempos.
Na carta aos Filipenses, São Paulo diz: “Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8). A cruz não é vista simplesmente como um instrumento de tortura, mas nela ressalta a entrega de Jesus que se humilha, “tornando-se igual aos homens”. Assim se redescobre o Amor de Deus que se faz homem em Jesus e toma o último lugar para se tornar semelhante em tudo a nós. Jesus transforma assim a dor em esperança e libertação. O cristianismo não é uma religião que exalta a dor, mas é um caminho onde o sofrimento adquire uma nova perspectiva, a cruz cristã não nega o sofrimento, abraça-o e transforma-o.
No evangelho deste domingo, Nicodemos dialoga com Jesus. Lembremo-nos que Nicodemos era um fariseu que foi ver Jesus à noite, reconhecendo-o como Mestre pelos sinais que realizava. Jesus o convida a nascer de novo para ver o Reino de Deus, mas ele não entende, pois interpreta esse nascimento de maneira biológica! Jesus o convida a deixar sua sabedoria, “mestre de Israel”, para reconhecer nele o filho de Deus e, por isso, diz-lhe:
"Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem. Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna”.
Fazendo alusão ao texto de Nm 21,6ss, que traz a narrativa da serpente que foi levantada por Moisés para que, olhando para ela, todos fossem curados, quando caminhavam pelo deserto, o texto apresenta a cruz como o ápice da revelação, onde se encontra a salvação. Jesus morreu crucificado, mas esse “ser levantado” não se refere apenas à crucificação, mas também à nova vida, à exaltação espiritual: a cruz se torna o trono a partir do qual Jesus reina com amor. A cruz não é mais símbolo de morte ou castigo, mas a máxima expressão do amor de Deus.
Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna.
Em Jesus, a dor e o sofrimento não desaparecem, mas ganham um novo significado. Jesus não celebra a dor nem a coloca como algo bom por si só. O cristianismo não é uma religião que valoriza a dor ou nega sua existência, pois ela faz parte das limitações humanas. Através da sua Páscoa, com sua paixão, morte e ressurreição, Jesus trouxe um novo entendimento para o sofrimento humano. A cruz nos lembra que o sofrimento não é o fim, mas uma etapa de um caminho que pode ser iluminado pela esperança da ressurreição, que transforma e dá sentido até mesmo ao que dói no coração. Em Jesus, o símbolo da cruz adquire um novo sentido: o que era instrumento de opressão se torna libertação. A cruz cristã não nega o sofrimento, ela o abraça e o transforma. É sempre o lembrete de que mesmo na escuridão mais profunda pode surgir a luz.
O Papa Leão XIV expressou na catequese desta quarta-feira: “Na cruz, Jesus não morre em silêncio. Não se apaga lentamente, como uma luz que se consome, mas deixa a vida com um grito: «Jesus, dando um forte grito, expirou» (Mc 15, 37). Aquele brado encerra tudo: dor, abandono, fé, oferenda.
Não é apenas a voz de um corpo que cede, mas o último sinal de uma vida que se entrega”. E continua dizendo: “Estamos habituados a pensar no grito como algo descontrolado, a reprimir. O Evangelho confere ao nosso grito um valor imenso, recordando-nos que pode ser invocação, protesto, desejo, entrega. Pode ser até a forma extrema da oração, quando já não temos palavras. Naquele clamor, Jesus colocou tudo o que lhe restava: todo o seu amor, toda a sua esperança!”
Nesta Festa da Exaltação da Santa Cruz nos deixamos interpelar pelas suas palavras: “Quando tudo parecia acabado, na realidade a salvação estava prestes a começar. Se for manifestada com a confiança e a liberdade dos filhos de Deus, a voz sofrida da nossa humanidade, unida à voz de Cristo, pode tornar-se nascente de esperança, para nós e para quantos estiverem ao nosso lado (Audiência Geral 10 de setembro 2025)