Vozes de Emaús: novas gerações de teologias da libertação. Artigo de Francisco de Aquino Júnior

Arte: Laurem Palma | IHU

11 Junho 2025

"Sigamos fazendo teologia da libertação nos passos de Jesus, na força do Espírito, em companhia dos profetas e mártires da caminhada – sempre na fidelidade ao Deus dos pobres e os pobres da terra..."

O artigo é de Francisco de Aquino Júnior, presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

Francisco de Aquino Júnior (Arquivo Pessoal)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto e ter acesso a todos os artigos da coluna, verifique o leia mais, no final do texto. Para saber mais sobre o projeto, clique aqui.

Eis o artigo.

De 29 de maio a 01 de junho aconteceu em Belo Horizonte um encontro nacional de novas gerações de teologias da libertação. Não era um congresso, simpósio ou seminário sobre teologia da libertação. Era um encontro de cristãs e cristãos que vivem e pensam a fé em espaços e processos socioeclesiais de libertação. Mais que um estudo sobre teologia da libertação, era um encontro para pensar como animar, promover e difundir uma teologia libertadora em nosso tempo.

O encontro reuniu pessoas de todas as regiões do Brasil, de diferentes igrejas cristãs e da coordenação da Ameríndia – rede de teologia latino-americana; pessoas vinculadas a comunidades eclesiais, pastorais sociais, movimentos e organizações populares; pessoas que fazem teologia no mundo acadêmico, no mundo digital, em centros e coletivos de formação; pessoas ligadas a teologias feminista, negra, LGBT, eco-social, a comunidades de base e espaços de formação eclesial; pessoas que atuam mais diretamente em espaços eclesiais e pessoas que atuam em espaços mais amplos: ecumênicos, inter-religiosos e sociais. Uma variedade enorme de lugares e formas de produção teológica que brotam da fé num Deus libertador que nos compromete com os mais diversos processos históricos de libertação. Nessa variedade há diferenças, tensões e mesmo divergências, mas há uma profunda sintonia e comunhão na busca de fidelidade ao Evangelho de Jesus que nos leva a viver como irmãos e irmãs – fratelli tutti – e nos compromete no cuidado de nossa casa comum.

Começamos o encontro retomando aspectos fundamentais da tradição teológica libertadora latino-americana: aquilo que não se pode perder e que é preciso conservar em fidelidade criativa em nosso tempo. Seguimos abordando desafios atuais para uma teologia libertadora: desafios sociais, políticos, econômicos, culturais, digitais e eclesiais. E dedicamos um tempo maior à reflexão sobre perspectivas atuais para uma teologia libertadora, particularmente no que se refere à produção teológica. A reflexão foi uma construção coletiva, desenvolvida em oficinas e plenárias. Seu objetivo era apontar perspectivas e caminhos para uma produção teológica libertadora hoje.

E, aqui, alguns aspectos são particularmente relevantes e decisivos para uma teologia libertadora em nosso tempo que se pretenda e seja autenticamente teologia, efetivamente libertadora e realmente encarnada em nosso tempo.

a) É preciso enfrentar teologicamente os grandes desafios de nosso tempo. Isso significa que a teologia não pode se reduzir a uma espécie de arqueologia teológica que se dedica a estudar ou colecionar conceitos e teorias que se desenvolveram ao longo do tempo, mas deve colocar no centro de suas preocupações e do seu quefazer “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” do nosso tempo. Mas significa também que deve abordar toda essa problemática teologicamente, mostrando como ela toca, positiva ou negativamente, no mistério de Deus e na nossa relação com Deus. Nisso reside a especificidade da reflexão teológica: explicitar a dimensão teologal dos acontecimentos históricos. Essa é sua contribuição própria nos processos de libertação.

b) Uma teologia libertadora é inseparável de uma fé libertadora. Ela nasce e se desenvolve como inteligência da fé e como serviço à fé. Essa relação visceral com a fé vivida em espaços e processos eclesiais e sociais de libertação é determinante da identidade e da eficácia de uma teologia libertadora. Sempre se insistiu na América Latina na relação “teoria e práxis” ou, mais precisamente, na relação “teoria teológica e práxis teologal” ou “ortodoxia e ortopráxis”. Gutiérrez formulou isso em termos de “ato primeiro” (vida cristã) e “ato segundo” (reflexão teológica). Para ser efetivamente libertadora, a teologia precisa estar enraizada numa fé vivida em processos de libertação. Sem isso, termina degenerando em discursos abstratos e ineficazes...

c) Não se pode desconsiderar a complexidade e variedade do fazer teológico e das teologias da libertação: perspectivas, lógicas, mediações teóricas e práticas, linguagens, expressões etc. Mais do que nunca temos que falar de teologias da libertação no plural e reconhecer que entre essas diversas teologias há interações, mas há também tensões e conflitos. Devemos alargar nossos horizontes de modo interdisciplinar (disciplinas), inter-sapiencial (saberes), interseccional (dimensões da libertação). Devemos aprender a conviver com diferenças e conflitos: não pensamos do mesmo modo nem estamos de acordo em tudo. O desafio aqui é assumir uma perspectiva poliédrica e sinodal que integre diferentes aspectos e processos num horizonte mais amplo de libertação integral.

d) A complexidade e dramaticidade do contexto atual torna ainda mais necessária manter viva a chama da profecia do reinado de Deus, que é um reinado de fraternidade, de justiça e de paz. Como recordava Pedro Casaldáliga, a profecia tem uma tríplice dimensão: consolo para a humanidade sofredora, denúncia de tudo que atenta contra a vida, anúncio dos sinais de esperança já presentes e a serem construídos. Para ser efetivamente profética, a teologia precisa estar enraizada na vida povo, nos calvários da humanidade, embebida de suas dores e de suas esperanças, ter cheiro/catinga de povo e de rua, ser feita no caminho e a caminho, escutando sempre os gritos dos pobres e da terra. A pergunta escatológica da teológica e sobre a teológica tem sempre a ver com os pobres e marginalizados de nosso mundo (Mt [25], [31]-[46]). Eles são, no Juiz e Senhor, juízes e senhores de novas vidas, de nossas igrejas e de nossas teologias...

Todo o encontro foi marcado por um clima de fraternidade e amizade, de reflexão e oração. Favoreceu encontro e intercâmbio entre pessoas e teologias. Criou e estreitou vínculos entre pessoas e processos. Ajudou a reconhecer novas gerações de teólogos e teólogas da libertação e a variedade de teologias libertadoras que estão sendo produzidas no Brasil. Foi mesmo um encontro muito rico e fecundo.

Concluímos o encontro com a celebração ecumênica de abertura da semana de oração pela unidade dos cristãos e com a decisão de criar uma rede de teologias da libertação com foco nas novas gerações. Essa rede não tem a pretensão de articular nem muito menos coordenar as muitas teologias da libertação, mas favorecer a conexão, o intercâmbio e o mútuo enriquecimento entre elas e, com isso, contribuir para explicitar, desenvolver e tornar eficaz nas Igrejas e na sociedade o caráter libertador de nossa fé. A grande boa notícia desse encontro é a constatação de uma grande variedade de teologias feitas em processos socioeclesiais de libertação, o compromisso de seguir fazendo teologias libertadoras e a construção de uma rede que favoreça e promova a conexão e a interação entre elas e sua difusão e eficácia na sociedade.

Sigamos fazendo teologia da libertação nos passos de Jesus, na força do Espírito, em companhia dos profetas e mártires da caminhada – sempre na fidelidade ao Deus dos pobres e os pobres da terra...

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