01 Mai 2025
"Francisco foi fiel às últimas palavras do seu testamento: sofrer em oblação pela paz no mundo e fraternidade entre os povos. Consolida na história como um testemunho contra aquilo que Sontag criticou como cinismo dos privilegiados diante da dor do outro, impregnado pelo 'assassinato da realidade' e principalmente pela falta de empatia", escreve Leonardo Bentes Rodrigues, mestre em História Social (UFAM) e especialista em Historiografia.
Em Diante da dor dos outros, ensaio escrito por Susan Sontag, o leitor é confrontado a decifrar o sentido das imagens de horror produzidas pela humanidade. As fotografias que vêm de Gaza e os últimos atos do pontificado de Francisco unem aquilo que Sontag descreveu como um “bem” ao reconhecer e “ampliar a consciência de quanto sofrimento causado pela crueldade humana existe no mundo que partilhamos com os outros”.
Francisco foi fiel às últimas palavras do seu testamento: sofrer em oblação pela paz no mundo e fraternidade entre os povos. Consolida na história como um testemunho contra aquilo que Sontag criticou como cinismo dos privilegiados diante da dor do outro, impregnado pelo “assassinato da realidade” e principalmente pela falta de empatia.
Aliás, essas imagens são fabricadas pela “sociedade do pecado” e provocadas pelos ídolos de morte que fomentam o antirreino, ou sejam, aqueles que não desejam que a justiça, a fraternidade e a paz sejam realidade. E o dever de cada cristão, segundo Ignácio Ellacuría, é justamente lutar por erradicar o pecado e converter em consciência crítica em prol de uma futura sociedade diferente.
Recusar as honras, enfrentar a ‘sociedade do pecado”, aprender a gerar esperança e experimentar que o amor deve reger tudo, é a síntese do ethos de um jesuíta, proveniente da experiência transmitida pelos Exercícios Espirituais, ou seja, “os meios de captar o signo da divindade” conforme afirma Roland Barthes.
Sobretudo, refletem a experiência espiritual pessoal de Inácio de Loyola, escritas como notas de comunicação entre Deus e os seres humanos, uma amostra prática do seu discernimento espiritual. Contraditoriamente, são ao mesmo tempo, nas palavras de Barthes, desejável e temido, devido ao turbilhão de desejos que emanam do íntimo do exercitante. Pois, nessa história silenciosa, algo inesperado começa a falar: agitando a superfície do conhecido e desestabilizando-a. Exumar o desejo é a condição de uma nova ordem, uma “teologia do coração”, cujo princípio é o afeto. Convidado a ordena-los, o jesuíta então credita estar pronto para a missão.
Deste modo, os Exercícios configuram num movimento de imersão e emersão, cujo palco é a encarnação que conecta o espiritual ao real na busca pela realização do Reino em vida.
Primeiramente, o exercitante imerge na busca da vontade de Deus em sua vida. Esse processo instaura o desejo da conquista da liberdade, a indiferença, aquilo que Barthes descreve como “balanço inaciano”, cujo peso de sensibilidade não pende nem para um nem para o outro. Finalmente, emerge uma “espiritualidade de paradoxos”, ou seja, a capacidade de traduzir em ações os apelos de Deus em nossa realidade. Esse traço peculiar, conforme afirma Cabarrús, impulsiona a realizar tarefas de fronteiras e de correr riscos ao abraçar atitudes que podem soar contraditórias: ser revolucionário e cristão, ser capaz de criticar a Igreja e ao mesmo tempo sentir-se seu filho, agir no mundo e cortejar o silêncio; optar pela austeridade como modo de vida e acentuar pela excelência dos meios para todos.
Dito isto, é impossível separar os Exercícios das atitudes que marcaram o seu pontificado. Na verdade, são como “chaves de leitura” que ajudam a compreender suas ações: Bergoglio era jesuíta e os Exercícios a forma de proceder. Acolhimento, humildade, sensibilidade impulsionaram o seu desejo de estar diante da dor dos outros. Por outro lado, isto forneceu munição para aqueles que se sentem ameaçados por seus movimentos de desacomodação, principalmente aqueles que tão bem sabem declinar o latim, mas, não aprenderam o sentido da misericórdia nas aulas de teologia.
Inegavelmente, Francisco colocou Cristo no centro, pondo o papado como um lugar de serviço, indiferente aos privilégios monárquicos, fiel a sua eleição, livre para exercer a indiferença. Nítido em sua primeira aparição, longe dos paramentos monárquicos, vestido como bispo de Roma.
No decorrer de seu pontificado, conduziu a Igreja para o horizonte cujo contexto de divisão conduz Jesus à morte. Ali, entre os imigrantes em Lampedusa, condenou a sociedade do pecado que leva inúmeros inocentes em busca do bem estar à beira da morte. Exemplos não faltaram, como pedidos de perdão aos abusos cometidos por membros da Igreja. É verdade que visou contemplar o Reino na terra, deixou-se afetar em tudo à maneira de Jesus e levou a sério a possibilidade da luta contra o antirreino. Para isso, convocou estudiosos, especialmente os jovens economistas, para um horizonte de um novo humanismo econômico. Contra o modelo capitalista predatório, convidou a repensar a forma como tratamos nossa casa ao propor uma economia refundada em valores do cuidado e amor, na qual chamou de “Economia de Francisco e Clara”. Da mesma forma, conclamou a todos em torno do “Pacto Educativo Global” por uma educação mais inclusiva, humanista e solidária capaz de transformar o futuro. É Patti Smith que expressa bem esse incentivo ao cantar em sua homenagem: Awake, everyone, the time has come (acordem todos, chegou a hora!).
Além disso, uma segunda semana se instalou no seio de seus atos. Ergueu a bandeira do bem contra o mal, convocou os jovens a serem revolucionários, evitando a acomodação e pediu uma Igreja acolhedora, para todos, todos e todos. Ali, desejou almejar intensamente o terceiro grau de humildade não apenas como horizonte de expectativa, mas como espaço de ação. Não se limitou pela coisa maior, mas esteve contido na coisa menor, o divino, por isso esteve sempre atento às margens. Abriu mão dos privilégios, fez coisas incomuns como dar sentido pleno a quinta feira da semana santa, ao preferir visitar as prisões e lavar os seus pés dos presos do que cumprir agenda oficial na Basílica de São João de Latrão.
Verdadeiramente, foram os encontros de experiência o clímax do seu pontificado: tomou chimarrão com seu povo sem medo de ser envenenado. Brincou com os brasileiros que o visitava cantando marchinhas de carnaval em alusão a cachaça. Segurou atentamente a pizza ofertada por um pizzaiolo durante passagem de papamóvel pelas ruas de Nápoles. E é o mesmo que beijou os pés dos líderes do Sudão do Sul em apelo pela paz. Como não esquecer daquele encontro com os povos indígenas em Puerto Maldonado? A partir dali, lideranças foram motivadas por suas palavras a criarem táticas de resistências. Ousou ao chamar atenção que um dos maiores pecados que os clérigos cometem é “masculinizar” a Igreja. Com efeito, nomeou a Irmã Simona Brambilla (MC) como prefeita do Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, além da Irmã Rafaella Petrini como presidenta do Governatorato do Vaticano. Nos ensinou que o rigor não contém a amizade, que devemos encontrar nossos amigos nas periferias existenciais da humanidade. Isto o impulsionou a ir aos “lugares de horror”, viajou em missão ao Iraque (2021) e ao Sudão do Sul (2023). Também levou-nos a encontrar o outro, de distintas personalidades e crenças religiosas como os históricos encontros com o líder xiita aiatolá Ali al-Sistani e o patriarca de Moscou, Cirilo I. Sobretudo, na Statio Orbis, quando abraçou o mundo isolado e com medo durante a pandemia da Covid-19, atravessando a praça de São Pedro, vazia e gélida pela chuva.
Num mundo marcado pelo individualismo e pela ausência do sentido em viver, mostrou com liberdade que, como guiado pela poesia, que o amor às coisas simples pode reger nosso cotidiano. Não teve medo do simples e da pobreza, viu maravilhas, mostrou-as.
Não hesitou em indicar a Literatura para educar as mentes e corações dos seminaristas. Mais ainda, para que encontrem conforto e estímulo para melhor ler a realidade. Essa inspiração se deve a leitura das obras de seu companheiro, o historiador jesuíta Michel de Certeau, que o influenciou a “digerir” as palavras a partir da “fisiologia da leitura digestiva”: para o papa, a literatura ajuda a dizer nossa presença no mundo, assimilar a realidade e discernir seus significados e tensões. Certeau frisava que “sem romance, não há historicidade”, havendo ligação e recíproca influência entre mística e sociedade, entre a palavra e a ação, poética e prática. Digerir a palavra, nutrir a alma, alimentar a consciência para enxergar os “outros marginais” que emergindo da representação do real nos auxilia a tocar a própria marginalidade no real e a mudar a sua própria realidade. Ele soube como ninguém, a olhar nas ruas e periferias suas astúcias através da compreensão do cotidiano do outro em suas dinâmicas sociais. Realmente, um “papa do sul global”.
Aliás, um dos seus filmes favoritos era "Roma, Cidade Aberta" (1945) de Roberto Rosselini. Um clássico do neorrealismo italiano, visceral, profundo e necessário. Bergoglio era o Don Pietro de nossos tempos, e nós, aquelas crianças que assobiam com esperança o legado de sua vida após a entrega total diante da crueldade do autoritarismo e do rigor moral. Determinadamente, contra a cultura do descarte, nos ofereceu na prática a cultura do encontro.
É evidente que os últimos anos de sua vida foram marcados por uma terceira semana, a paixão, erguendo sua cruz pelas dolorosas vias da pós-modernidade. Como historiador, ousei ao afirmar que não renunciaria, pois como jesuíta, cumpriria sua missão até o fim, gastando até sua última gota de vida, como Pedro Fabro, consumido pelo peregrinar, falecido rumo à Roma em missão. Creio que sabia que era um líder que contribuiria para um novo tempo, detinha total lucidez das emergências histórica contemporâneas. Num contexto marcado pela negação e o ódio, entregou a si como oblação ao Rei Eterno para que outros possam esperançar.
Partiu durante a oitava de Páscoa, selando uma quarta semana, promovendo a Ressurreição, experimentando a vida nova, gerando esperança para a humanidade. Certamente, seu pontificado foi uma extensa contemplação para alcançar o amor, acolhendo e comunicando o amor para com todos. Primeiro, uma Igreja em saída em direção aos pobres e marginalizados a partir de uma ruptura instauradora inspirada pela alegria de evangelizar: Evangelii Gaudium (2013) exortou uma Igreja pobre para os pobres, em consonância com o caminho trilhado pelo Concílio Vaticano II e agora encarnada pelo percurso da sinodalidade, ou seja, onde todos os membros independente de hierarquia caminham juntos
Sua contemplação foi encarnada a partir de suas ações de misericórdia, incompreendida por vezes, mas acolhida pelo rosto do outro. Em 2013, afirmou que as pessoas LGBTQIA+ não deveriam ser marginalizadas a partir da frase “Quem sou eu para julgar?” Expressa no retorno a Roma após a Jornada Mundial da Juventude. O acolhimento gerou esperanças naqueles cujas vidas são desprezadas.
Segundo, o cuidado da casa comum reverberado na encíclica Laudato Si' (2015). Ali elaborou mais do que um conceito, mas, uma prática autêntica: tudo está interligado. Em meio a emergência climática, olhou com afeto para as Amazônias, defendeu os direitos dos povos indígenas e liderou a agenda global em favor da preservação do meio ambiente, conclamando os cristãos para uma necessária conversão ecológica: para existir um futuro é preciso cuidar da criação.
Por fim, em Amoris Laetitia (2016) a sensibilidade para com as famílias, abrindo a possibilidade de um discernimento para fiéis divorciados voltarem a comungar. Posteriormente, enfatizou que o sacramento da penitência não é “uma câmara de tortura” e nem a eucaristia o “prêmio para os perfeitos”. Depois, com o documento Fiducia Supplicans, exercendo a graça de que a benção é para todos, possibilitou abençoar casais formados por pessoas do mesmo gênero.
Mas, aquelas famílias da paróquia em Gaza esperam por sua ligação, cujo genocídio em marcha Francisco contestou até os últimos momentos de sua vida pública, que mesmo diante da dor dos outros desejou com sua vida dar esperança ao futuro. Quis oferecer ao mundo a possibilidade de “tempos ressonantes”, como afirma Hartmut Rosa, ou seja, outro modo de ser e estar no mundo, habitado por seres ressonantes, sensíveis ao toque e ao carinho, sempre em busca de alguma forma de contato que dê o sentimento mínimo de autoeficácia.
Se nem mesmo Deus sabe o que pensam os jesuítas (uma piada encoberta de “sabedoria antiga”), podemos sentir o coração daquilo que fazem a partir dos Exercícios Espirituais: Bergoglio viveu inteiramente abandonado pela forma de proceder dos Exercícios e os pôs em prática a todo instante, desde sua eleição a sua partida.
Acredito que Francisco irrompeu um “novo humanismo” em nossa sociedade, inspirando o outro para o outro e com o outro, apontando que a mudança verdadeira só pode ser feita pela e com empatia. A porta que abriu não pode ser fechada.
BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CABARRÚS, Carlos Rafael. O básico da espiritualidade inaciana e a experiência que se vive.
CERTEAU, M. O lugar do outro: história religiosa e mística. Petrópolis: Vozes, 2022.
CERTEAU, M. A fábula mística. Volume 1. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
ELLACURÍA, I. Filosofia de la realidad historica. UCA Editores, 1990.
SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SOSA, A. A caminho de Inácio. São Paulo: Loyola, 2021.