30 Abril 2025
"Depois de décadas caracterizadas pela defesa da doutrina, parece que algo mudou com o Papa Francisco, mas seria ingênuo acreditar que aqueles que, na história da Igreja, representam o carisma, a profecia, o martírio e a novidade perene do Evangelho, como oposição aos poderes deste mundo, não estejam a risco, como minorias sujeitas à perseguição, à difamação e à morte", escrevem Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e Cláudio Bombieri, padre, missionário comboniano e agente da pastoral junto aos Guajajaras do Maranhão.
No Evangelho de João (Jo 20,1-9), Maria Madalena encontra o sepulcro vazio e, insistentemente, por três vezes, repete “levaram embora o Senhor”. O desaparecimento do corpo de Jesus, ‘filho do homem’, a sua insuportável ausência, semeiam no seu íntimo a suspeita de que alguém possa tê-lo ocultado ou sequestrado e que deve ter um culpado, um responsável pelo sumiço do Senhor. E, talvez, João, lembrando o protagonismo profético de Maria Madalena, discipula inconformada do crucificado, cuja coragem emerge diante da grande dispersão, da decepção coletiva e do consequente imobilismo medroso dos apóstolos, queira falar especificamente das comunidades da Ásia Menor.
Estas, com efeito, no fim do primeiro século, já corriam o risco de ocultar o testemunho de Jesus, reduzindo o discipulado ao âmbito da mera prática de ritos religiosos esquecendo e sequestrando a constitutiva dimensão martirial da vida cristã. Assim, Maria Madalena e João constatam e denunciam o óbvio escandaloso: “levaram embora o kurios!” Ou, como nos lembra João no evangelho de domingo de Páscoa, o grupo de Jesus pretendia contemplá-lo e reconhecê-lo vivo permanecendo trancafiado, sem se sentir efetivamente enviado pelo seu Espírito a ‘introduzir o dedo e a mão’ nas feridas dos inúmeros crucificados, algo que Tomé fez!
Seria imperdoável distração ignorar que chamar Jesus de Senhor, κύριος, kurios, para João e para Paulo também, é pôr-se em clara e polêmica oposição ao único kurios reconhecido como divindade política, o imperador romano. A adesão na fé ao único Senhor comporta a infidelidade política e a oposição ao kurios imperial. Essa desobediência, desde o começo, marca os primeiros passos do movimento cristão com a perseguição e o sangue dos mártires.
Como poderíamos esquecer a oposição de Jesus ao Império romano narrada no Evangelho de Marcos, quando a diabólica legião (a X Legião Fretense?) que mora num cemitério e atormenta o endemoninhado de Gerasa (Mc 5,1-20), é expulsa e entra numa manada de impuríssimos porcos que se lançam num abismo.
Niceia parece desmentir esta Palavra, porque é Constantino, o próprio kurios de plantão, que organiza e paga as despesas do primeiro concilio ecumênico da Igreja. E, quando o kurios não é mais identificado como o anticristo, o concorrente diabólico do único Senhor, a Igreja começa a ser marcada pela lógica imperial e Jesus Messias vira o Pantocrator. E os ritos religiosos e a indumentária da corte dos vassalos clericais tomam o lugar da profecia, do martírio e da militância missionária de todo o povo de Deus.
Tornando-se o cristianismo a religião oficial do Império Romano, os únicos que reagem evangelicamente a esta traição são os monges. Eles também parecem nos dizer: “levaram embora o kurios!” O monaquismo surge como uma resposta martirial, de rejeição e de isolamento do mundo e das armadilhas do poder, de busca mística e ascética do Senhor. Um caminho de conversão ao Reinado de Jesus, que vai além dos oportunismos conjunturais e de uma concepção de convivência, supostamente pacífica e inócua, com os poderes políticos.
Não podemos, porém, ignorar que esta dialética entre kurios já está presente no Novo Testamento, a ponto de se estabelecer como norma normans da complexa fidelidade à comunhão eclesial.
Pode servir como exemplo a tensão presente na comunidade de Roma, já nos anos 65-70, o tempo de Nero, entre o radicalismo perigoso dos mártires e a "prudência" dos defensores do cristianismo como religio licita, que encontramos descrita no Evangelho de Marcos (Mc 3, 21). Nesse versículo, Jesus é considerado louco por seus parentes, da mesma forma que ocorria na comunidade de Roma, em que muitos achavam simplesmente uma loucura autopunitiva se opor ao sistema e à ideologia dominante. E isso acontece muito antes do pacifismo de Clemente Romano, nos anos 90, antecipando de alguns séculos a conciliação com o império, que se realizará plenamente no século IV, com Constantino e Teodósio,
Encontramos no epistolário paulino mais um testemunho dessa dialética entre dois estilos de vida cristã: por exemplo, as cartas aos Colossenses, aos Efésios, a segunda aos Tessalonicenses, a primeira e a segunda a Timóteo, a carta a Tito, optam por uma inserção pacífica das comunidades no contexto social, cultural e político em que vivem, enquanto nas cartas aos Romanos, aos Gálatas e até mesmo na carta a Filemon prevalece o desafio profético do testemunho explícito contra um cristianismo eminentemente jurídico e ritualista, mais preocupado com a doutrina do que com a fé, em oposição àquele seguimento de Jesus de Nazaré inspirado pela profecia.
Essas contradições não deveriam nos escandalizar, porque fazem parte do conjunto normativo da Palavra de Deus que nos faz perceber que a vida cristã e a plural reflexão teológica são “norma normata ” pela “norma normans”, a Palavra de Deus, que não foge da aporia e de um conflito, que é constitutivo de todas as épocas da história da Igreja e que nos acompanhará até a Parusia.
Lembramos também que o próprio Concílio Ecumênico Vaticano II revela essa duplicidade, onde a inspiração evangélica e a fidelidade a uma determinada interpretação da Tradição se fazem presentes no evento e nos próprios documentos. E esse dilema certamente pode ser descrito, não resolvido, pela permanente reflexão teológica e, por isso, deveria ser encarado e vivenciado natural e fraternalmente nas comunidades.
Convém recordar também a revolução mística de Francisco e Clara, inspirada no Evangelho lido e obedecido sine glossa e eleito como única norma de vida comunitária, como alternativa ao direito civil e ao direito canônico. Apesar da derrota, chancelada pelos seus próprios irmãos, o estigmatizado Francisco não rompe a comunhão eclesial, atitude esta, que não funcionou com os gnósticos e os cátaros dos primeiros séculos e não vingou, mais tarde com Occam, os albigenses, os hussitas e com Lutero, que queimou, junto com a bula que o condenava, uma cópia do Corpus Iuris Canonici. E como não reparar que o protestantismo luterano, - surgido como um sonho de fidelidade ao Evangelho contra a corrupção de Roma, - acabou caindo, ele próprio, nos seus primórdios, nas mesmas armadilhas do poder político quando, rezando um Pai Nosso, abençoava o extermínio dos camponeses rebeldes de Thomas Müntzer!
Não estamos encarando somente os pecados políticos da Igreja católica porque, desde o começo, a Igreja luterana ficou refém do poder político, “a mão esquerda de Deus”, até na trágica conjuntura nazista, conseguindo não se perder definitivamente somente através da fidelidade à Palavra de Jesus da Igreja ‘confessante’ e o testemunho de Dietrich Bonhoeffer, que não aceitaram passivamente o sequestro e a eliminação de milhões de crucificados responsabilizados, paradoxalmente, de serem os responsáveis pela morte do Crucificado de Nazaré!
Não dá para ocultar o escandaloso sequestro do Mártir da Galileia, praticado pelo atual delirante chefe maior da igreja cesaropapista da ‘terceira Roma’ aliado da ditadura panrussa putinista.
Como enterrar a memória das profecias latino-americanas de outros corajosos derrotados, como Bartolomeu de las Casas e Antônio de Montesinos, que, obrigados pela presença do Ressuscitado e da sua Palavra se recusaram a compactuar com aquela igreja que os havia enviado e que sequestrava o corpo ferido e dilacerado do Ressuscitado impresso nos corpos escravizados e seviciados de milhões de indígenas das Américas. E que reduzia a Páscoa à Sexta-feira Santa, ‘evangelização’ que sequestrava a Ressureição e consagrava a identificação das vítimas das atrocidades genocidas dos conquistadores que se autodenominavam cristãos com o Crucificado.
Defensor dos indígenas foi também Antônio Viera, mas se ele chegou a condenar a escravidão dos nativos, não quis ver o sofrimento dos africanos deportados e escravizados. Trágico exemplo, este, de como as circunstâncias geopolíticas, o poder ideológico do sistema vigente e uma determinada teologia elaborada ‘ad hoc’ em Salamanca, que permitia liberdade só aos nativos, mas não aos que eram sequestrados em outras terras, podem cegar até os espíritos mais sábios e generosos.
É uma tensão que persiste nas posições antijurídicas, radicais ou moderadas, do pós-concílio. Pensemos, por exemplo, na teologia de Leonardo Boff, no livro “Igreja, Carisma e Poder”. E lembramos que foi condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé. E com Boff, é preciso lembrar a longa lista dos processados e condenados: Hans Küng, José Maria Castillo, Gustavo Gutierrez, Antonio Estrada, Jacques Dupuis, Ivone Gebara, Lavinia Byrne, Jon Sobrino, Bernhard Haring, Charles Curran, Marciano Vidal, Charles Curran, Roger Haight, Eugen Drewermann, Tissa Balasuriya, Yves Congar, Edward Schillebeeckx, Piet Schoonenberg...
Não foram apenas teólogos: foram Igrejas e povos, com seus sonhos de vida em plenitude e justiça, a serem renegados e ocultados.
Depois de décadas caracterizadas pela defesa da doutrina, parece que algo mudou com o Papa Francisco, mas seria ingênuo acreditar que aqueles que, na história da Igreja, representam o carisma, a profecia, o martírio e a novidade perene do Evangelho, como oposição aos poderes deste mundo, não estejam a risco, como minorias sujeitas à perseguição, à difamação e à morte.
Com efeito, também estes doze anos do pontificado de Francisco nos mostraram essa tensão perene entre o Evangelho onde a mensagem e a prática histórica de Jesus de Nazaré toma corpo e opera concretamente no cotidiano das pessoas, e a tradição jurídica e doutrinal, a qual, - em nome de uma suposta ortodoxia e fidelidade ao próprio Jesus acaba, frequentemente, diluindo ou até ocultando o seu poder transformador. É a esta vertente que o saudoso bispo de Roma, segundo alguns ‘escribas’ do direito canônico, teria amplamente desobedecido.
Trata-se de um confronto desigual entre uma incontestada e milenar história de Igrejas variamente comprometidas com o poder político e o testemunho dos raros profetas desarmados e destinados à derrota, porque nunca encaram o conflito animados pela perspectiva de vencer.
Por isso é urgente refazer hoje a pergunta polémica de Maria Madalena: “levaram embora o kurios!”, e indagar sem medo “quem o levou?”, “porque o sequestraram?”, “onde o esconderam?”, tendo clareza que a nossa denuncia não é compreendida por quem nos renega como irmãos, membros da mesma família eclesial. E que por causa deste atrevimento messiânico, podemos ser perseguidos, quiçá, como hereges e traidores.
A nossa história ensina-nos que esse conflito constitutivo e normativo pode ser administrado somente no âmbito da fraternidade e sororidade eclesial ou, no pior dos casos, pode levar a soluções cismáticas dolorosas e antievangélicas.
Se a polarização se estabelece como insuperável e fanáticas convicções continuam impermeáveis a qualquer argumento e mediação, apostar no diálogo não passa de ingenuidade voluntarista. Assim deveríamos aprender de novo que o discernimento passa necessariamente pela Cruz de Jesus, que é a vitória definitiva sobre o poder absoluto e condicionante da morte e sobre seus frutos: as prepotências e truculências do Templo e do Palácio.
Pensar e fazer política como Jesus e com Jesus comporta uma conversão ao “além” de Jesus, ao seu Reinado, que não se constrói como os poderes e as metodologias deste mundo. Que vai “além” dos meros arranjos conjunturais, diplomáticos e oportunistas, mais “além” das corporações ideológicas que tendem sempre à captura da religião para reduzi-la a instrumento de defesa do status quo dos impérios ou ao âmbito, bem mais modesto, mas terrivelmente eficaz, de estratégias eleitorais.
Um “além” que deveria ser também um “contra”, sobretudo quando o cerne do cristianismo, - antes mesmo do próprio movimento cristão, - é sequestrado e manipulado para servir de suporte aos novos fascismos negadores da presença concreta e histórica do único e verdadeiro kurios.