O jornalista especialista no Vaticano alerta que os setores que, na época, se opuseram ao Papa Francisco acabaram “conspirando com a extrema-direita internacional” para alinhar a Igreja com seu programa.
"Tudo o que estamos falando está publicado em meus livros, especialmente em Vaticangate", alerta Vicens Lozano, um jornalista especializado em assuntos do Vaticano que trabalhou por mais de três décadas na editoria internacional da TV3. Lozano, que descreve sem rodeios o Papa Francisco como um "líder ético e moral do século XXI", considera que as reformas que ele implementou atualizaram a Igreja, mas que podem estar em perigo dependendo do que acontecer no próximo conclave.
O escritor foi um dos primeiros a descrever em detalhes a guerra interna que os setores mais ultraconservadores da Cúria estavam travando contra Bergoglio e, em sintonia com isso, agora alerta para o que afirma ser uma tentativa de "manipular" a eleição do novo Papa.
A entrevista é de Arturo Puente, publicada por El Diario, 28-04-2025.
O Papa Francisco entrará para a história como um papa revolucionário?
Acho que ele nunca foi revolucionário. Também nunca foi um Papa vermelho nem comunista, apesar dos insultos nesse sentido que lhe foram dirigidos pela extrema-direita e pela ala mais tradicional da Igreja. Acredito que ele tenha sido um Papa reformista, fundamentalmente reformista, no sentido de querer corrigir questões que, no fundo, talvez sejam mesmo revolucionárias em uma instituição tão ultraconservadora como sempre foi a Igreja. Pode-se defini-lo como revolucionário em termos conceituais, mas, como personagem, no sentido em que normalmente entendemos o que é ser revolucionário, não.
Um papa reformista, mas ele foi capaz de mudar a Igreja?
Bom, ele quebrou tabus. Sobretudo, é um Papa que abriu debates, como o da moral sexual da Igreja, e a não condenação constante dos homossexuais, por exemplo, como naquela tomada de posição em que disse "quem sou eu para julgar alguém". Também rompeu tabus em relação à mulher, porque não apenas pregou, mas também deu um papel à mulher na Igreja, embora sem chegar, obviamente, à consagração como sacerdotisas. Colocou o tema do celibato sobre a mesa. Falou sobre o divórcio. Também falou sobre o aborto, embora nesse tema tenha sido muito radical, no sentido de que a Igreja não aceita nem aceitará jamais o aborto. Mas eu acredito que ele foi um Papa que se adaptou ao século XXI e sempre tentou adaptar a Igreja ao século XXI.
Segundo você diz, houve temas em que ele sacudiu a Igreja, mas outras questões, como o aborto, em que a posição praticamente não mudou, certo?
Sim, em algumas questões, como todo o tema da corrupção econômica e também tudo o que está relacionado aos abusos sexuais, é verdade que ele foi muito contundente. Também na questão geopolítica, este foi um Papa que quis influenciar bastante na política internacional. Em outros temas, como você bem dizia, como o aborto, basicamente ele se manteve fiel à doutrina oficial e não se afastou dela. Agora, sempre a partir de uma perspectiva de compreensão e não de criminalização e, portanto, também introduziu alguns matizes.
Que matizes ele introduziu no tema do aborto?
Por exemplo, no caso de mulheres que tiveram que abortar porque foram estupradas. Ele não condena tanto a mulher quanto o estuprador, algo que pode parecer óbvio em nosso contexto, mas que dentro da Igreja nem sempre foi assim. Francisco considerou que, em casos assim, a mulher não é culpada, mesmo que a sociedade sempre tenha culpabilizado as mulheres estupradas como se elas tivessem provocado o ocorrido. Essa moral hipócrita, que impera no mundo, o Papa não quis assumir para a Igreja.
Bergoglio foi tão longe quanto pôde?
É preciso ter um pouco de contexto. O papa Francisco chega em um momento realmente difícil, recebe do papa Bento XVI uma herança muito conturbada, com uma Igreja mais dividida do que nunca, atravessando um autêntico câncer, que é o tema da pedofilia. Desde o início, ele se vê na obrigação de lidar com isso. Não foi fácil, mas ele foi o primeiro Papa a convocar uma cúpula sobre abusos sexuais. Eu nunca tinha visto dois cardeais chorarem no Vaticano enquanto ouviam os testemunhos dilacerantes das vítimas de pedofilia. Ele convocou essa cúpula, foi corajoso.
Outro exemplo: no primeiro sínodo da família que realizou, ele colocou sobre a mesa o fato de que, no século XXI, existem famílias que já não seguem mais o modelo clássico de homem-mulher-com-filhos, mas sim mães solteiras, viúvas que precisam cuidar dos filhos sozinhas, casais homossexuais que adotaram crianças. E esse olhar diz muito sobre um Papa que está em sintonia com uma época e com as mudanças sociais.
O que ficou faltando? Ele colocou mulheres à frente de dicastérios na Igreja, mas não realizou a consagração de mulheres como sacerdotes, como fazem outras confissões cristãs. Não quer dizer que ele não aceite, quer dizer que talvez ainda não seja o momento.
Há quem considere que não se poderia ir além sem arriscar uma divisão irreversível dentro da Igreja. Concorda?
Estamos falando de uma instituição que, em dois mil anos de história, passou por todo tipo de coisa: cismas, guerras, conflitos, guerras de religião, e que foi submetida a muitos altos e baixos. E superou tudo isso. É uma instituição que talvez seja a mais antiga do Ocidente.
E como ela fez isso? Nadando e guardando a roupa. Isso significa que as mudanças não podem ser repentinas. Não é a mesma coisa ser homossexual na Europa laica que ser homossexual na África, onde os homossexuais ainda são vistos como pessoas doentes, marginalizadas da sociedade. Quero dizer que a Igreja é global, não é a Igreja da Europa, nem da Espanha ou da Catalunha; é universal. E o conceito, as culturas, as maneiras de ver as coisas mudam, portanto o Papa também não pode enfrentar diretamente essas duas almas que existem dentro da Igreja, sobretudo o setor mais tradicionalista, que não aceita, nem aceitará jamais, esses avanços.
Antes você dizia que o Papa Francisco demonstrou grande interesse pela geopolítica. Em que sentido?
Sobretudo, ele enfrentou o problema de frente, no sentido de que se encontrou com um mundo muito mudado, com a incerteza causada pela ascensão da direita mais radicalizada no mundo todo.
Faltava apenas a chegada de Donald Trump à Casa Branca, um presidente que respaldou e respalda a extrema-direita internacional. Portanto, o Papa viu a necessidade de, levando em conta os princípios do Evangelho e os princípios da justiça social, intervir.
Denunciando as bolsas de pobreza, a marginalização, as diferenças econômicas cada vez mais brutais.
Falou diretamente contra o capitalismo selvagem e especulativo e interveio muito na questão da imigração.
Além disso, fez uma encíclica belíssima com uma visão ecologista.
E isso, claro, fez com que se confrontasse com muitos setores.
Com quem Francisco se enfrentou?
Com o poder econômico, principalmente. Com o poder que controla e domina o mundo. E, depois, em questões concretas, com os principais líderes da extrema-direita. Por exemplo, ele se enfrentou com Donald Trump por causa de toda a questão do muro do México. Também teve polêmicas com Meloni em relação a Lampedusa e com Viktor Orbán na Hungria.
Por que ele gera reações tão fortes?
O papa Francisco incomodou porque foi um líder ético e moral do século XXI, um século em que já não existem líderes éticos e morais. Praticamente, desde a morte de Nelson Mandela, não existem mais. Ele foi um líder ético e moral do século XXI que se enfrentou ao poder. Uma pessoa que disse que vivemos em um mundo em guerra, em uma humanidade que constantemente resolve seus problemas com violência, e que isso precisa acabar. Estes, por sinal, são os princípios do Evangelho, não outra coisa.
Em seu livro, ele fala sobre uma conspiração contra o papa. Em que consiste essa conspiração?
Eu não sou fã de teorias da conspiração, mas através da investigação descobri que existe uma verdadeira conspiração, que começa em 13 de março de 2013, quando o papa Francisco assume o pontificado. Desde o início, ele não agradou por diversas razões, como o sínodo da família, as críticas iniciais ao capitalismo ou colocar os pobres no centro das preocupações da Igreja. Mas, além disso, ele se tornou uma pedra no sapato do projeto neoliberal e neofascista para o mundo. E, portanto, quem se opõe a ele? Os tradicionalistas da Igreja, cardeais e bispos espalhados pelo mundo, que, inicialmente, não aceitaram suas posições, mas também acabaram se unindo à extrema-direita internacional para tornar a vida do Papa impossível, como fizeram.
Como fizeram a guerra contra o papa?
Fazendo duas coisas principalmente. A primeira, tentando abortar suas reformas, colocando obstáculos constantemente através da burocracia vaticana. Toda uma série de ministros da Igreja ignoraram as ordens do Papa e as colocaram em uma gaveta. E a outra vertente foi o desprestígio da figura do papa Francisco. Essa conspiração vem principalmente dos Estados Unidos, de fundações católicas lideradas e sustentadas por magnatas católicos, que controlam os meios de comunicação e as redes sociais. Essas pessoas se opuseram ao papa Francisco de forma radical e tentaram, se não matá-lo, pelo menos desmoralizá-lo perante a opinião pública. Muitas pessoas, muitos católicos, caíram nessa armadilha.
Quais são os objetivos dos opositores de Francisco?
Eles querem manter a tradição de uma Igreja ultraconservadora, onde o latim continua sendo a língua da liturgia, onde a doutrina e os dogmas de fé estão acima do que é racional em um mundo que se transformou.
Isso em nível interno da Igreja. E em nível geopolítico?
Aqui as duas coisas coincidem. Há um interesse em que a Igreja não saia dos parâmetros nos quais sempre viveu. A Igreja sempre foi uma instituição conservadora por natureza e, portanto, pode ser um instrumento nesse projeto de regressão que as forças neopopulistas ou neofascistas querem trazer. O que eles querem? Destruir nossas liberdades, direitos sociais, direitos das minorias. Estamos falando de excluir as pessoas mais marginalizadas de nossa sociedade e impor o império de uma nova divindade chamada dinheiro. Todas essas coisas contra as quais o Papa se enfrentou.
Quem os principais candidatos “ultras” para suceder o Papa Francisco?
Costumo dizer que quando fazemos apostas, os jornalistas sempre erram. Mas há alguns líderes destacados. Por exemplo, o cardeal africano Robert Sarah, grande amigo da extrema-direita internacional. De fato, ele sempre foi convidado para os círculos do Vox na Espanha. Ele é uma figura que chegou a escrever um livro em coautoria com Ratzinger, com quem tentaram enganá-lo e colocá-lo como líder da oposição ao Papa quando ele era Papa Emérito. Não conseguiram, pois ele não se prestou. Embora, em privado, discordasse muito das reformas que o Papa queria implementar.
Outros líderes: Leo Burke, cardeal norte-americano, grande amigo de Donald Trump e Steve Bannon. E uma figura que não hesitou em chamar o Papa de herege, oportunista e até de usurpador do pontificado, pois a extrema-direita sempre considerou que, enquanto viveu Bento XVI, o verdadeiro Papa ainda era ele. Outro personagem, que aparece menos nas apostas, mas que eu acredito ser o verdadeiro inimigo número um, é o cardeal Gerhard Müller, que foi o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé durante o pontificado de Bento XVI. É uma pessoa que eu entrevistei para o livro Vaticangate e que me falou por uma hora e meia. Ele é cardeal, tem potencial para ser Papa e está financiado pelos grupos católicos norte-americanos que promovem a ideia de que temos um Papa herege.
É provável que algum desses que você mencionou seja o futuro papa? Esse perigo é real?
A possibilidade sempre existe. Existem 135 cardeais possíveis para serem Papa. Eu, particularmente, acredito que nem o grupo dos cardeais ultraconservadores, nem o grupo dos mais progressistas, são os que estão mais bem posicionados. Entre os progressistas, estaria, por exemplo, o cardeal Tagle, ex-arcebispo de Manila, e talvez o mais alinhado com Francisco, muito atento, muito simpático, comprometido com uma Igreja pobre para os pobres. Há também o cardeal italiano Zuppi, vinculado à comunidade de Sant'Egidio, uma comunidade em Roma especializada em fazer pontes para promover a paz no mundo, com uma linha reformista, e há outras candidaturas.
Mas você diz que nenhum dos dois extremos seria, a priori, o melhor posicionado para a sucessão.
Essa é uma aposta pessoal, arriscada, mas que baseio no fato de que o Vaticano precisa ter uma voz própria. Sempre quis ter uma. Se eles escolherem um cardeal ultraconservador como novo Papa, será uma mudança radical, que se ajustará aos novos tempos, mas será uma decepção para grande parte da comunidade católica mundial. Se escolherem um cardeal radicalmente “francisquista”, o mesmo ocorrerá, o confronto estará garantido. Por isso, acho que podem optar por um perfil semelhante ao do atual secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, um homem que esteve ao lado do Papa em suas reformas, ma non troppo. Ou seja, uma pessoa que também não fez defesa pública das reformas do Papa, mas que tem um pé no conservadorismo. Além disso, ele tem muitos amigos e pode ser uma ponte entre as duas almas da Igreja. Parolin, embora não aprofundasse as reformas propostas pelo Papa, também não as reverteria.
Nos últimos dias, tem se falado muito do Red Hat Report. O que é exatamente?
Há muita informação sobre isso, e embora possa parecer inacreditável, é uma realidade. Trata-se de um projeto de manipulação, impulsionado pela extrema-direita internacional, especialmente dos Estados Unidos, que viam o Papa Francisco atual como desfavorável. O resultado foi a criação de dossiês sobre a vida pessoal e íntima dos cardeais, focando nos mais reformistas, para manipulá-los, chantageá-los e, em última instância, adulterar o conclave.
A ideia é fazer chantagem, uma espécie de kompromat russo?
Exatamente. Eles procuram “podres no armário” dos cardeais, informações comprometedores para chantageá-los. No Vaticano, geralmente existem dois “grandes eleitores”, que representam as duas correntes da Igreja. Estes negociam e muitas vezes não buscam apoio para o próprio nome, mas fazem surgir um candidato inesperado. O Red Hat Report busca influenciar essa escolha criando biografias, muitas vezes manipuladas ou com conteúdos falsos, para fazer com que um possível candidato não se candidate ou que um eleitor dê um passo atrás, etc. De acordo com eles mesmos, o Red Hat Report teria impedido a eleição do Papa Francisco.
Quem financia o Red Hat Report?
Ele é financiado por fundações católicas e magnatas americanos com muito dinheiro, alinhados com a extrema-direita e o ambiente do "trumpismo". E, por sinal, também se sabe que ex-agentes do FBI e da CIA dos Estados Unidos, além do CNI espanhol, colaboraram para investigar de forma privada e obter informações.
Por que os Estados Unidos têm tanto interesse neste conclave?
A Igreja católica americana tem um grande potencial econômico. Atualmente, ela contribui entre 30% e 40% da receita do Vaticano. Digamos que, sem a Igreja americana, o Vaticano quebraria. E, portanto, a Igreja norte-americana usa a possibilidade de um cisma como chantagem. Considerando essa situação, a administração Trump busca um Papa alinhado com suas políticas ou, pelo menos, que não incomode tanto quanto Francisco e que não passe o tempo todo criticando sua política migratória, as deportações em massa ou as desqualificações contra os migrantes.
Acredita que o Papa Francisco estava ciente desse complô e que tomou medidas?
Sim, acredito. Não apenas acredito, tenho informações de boas fontes que indicam que o Papa se preparou bem, não sabemos se o suficiente, claro. Mas Francisco era um jesuíta e os jesuítas dedicam uma parte muito importante de sua formação à estratégia. Vimos um Bergoglio estrategista ao confeccionar o Colégio Cardinalício. Por exemplo, ele utilizou a idade. Colocou cardeais com mais de 80 anos, que não podem votar, em sua maioria do lado conservador, para equilibrar a Cúria. Também nomeou cardeais mais jovens e alinhados com suas reformas. Além disso, impulsionou um sínodo que é uma pesquisa internacional, para 1,4 bilhão de católicos, com perguntas sobre os problemas da Igreja e como melhorá-la, e que deve permanecer aberto até 2026. Dessa forma, garantiu que o debate continuasse após sua morte e que o próximo Papa tivesse que levar em consideração o sentir dos católicos.
Onde você situaria a Igreja espanhola neste mapa ideológico que traçamos?
A Igreja espanhola esteve, em sua maioria, alinhada com o setor mais tradicionalista. É importante considerar que a Igreja espanhola ainda é muito influenciada pela “cruzada” de Franco, claro, com algumas exceções. A Igreja catalã, por outro lado, foi mais aberta e crítica, pois abraçou o Concílio Vaticano II como uma esperança. No entanto, com o tempo, em grande parte, ela se tornou mais conservadora, aproximando-se da linha espanhola.
Se eu tivesse que citar um, diria que o arcebispo de Barcelona, Juan José Omella, foi um grande amigo do Papa Francisco e colaborou de forma estreita com ele nas reformas. E isso, apesar de ser difícil encaixá-lo na linha progressista. Na verdade, ele não se encaixa, mas, no entanto, esteve ao lado do Papa e o aconselhou nas reformas. Dentro da Igreja espanhola, ele estaria, sim, no grupo dos reformistas.