20 Dezembro 2023
Todo o projeto sinodal lançado pelo Papa Francisco fracassará se os atuais conflitos litúrgicos da Igreja Católica não forem resolvidos. Eles têm sido ignorados há muito tempo.
A opinião é de J. P. Grayland, padre da Diocese de Palmerston North, na Nova Zelândia, atualmente professor visitante na Universidade de Tübingen, na Alemanha. O artigo foi publicado por La Croix International, 11-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As chamadas guerras litúrgicas foram durante muito tempo apresentadas como um problema ritual e caracterizadas como progressistas demais ou conservadoras demais. Mas o cardeal Robert Sarah, ex-chefe do Dicastério para o Culto Divino, ofereceu recentemente uma nova perspectiva de “anti-inculturação”. E o fez no mesmo dia em que a Igreja comemorava o 60º aniversário da Sacrosanctum concilium.
Ao pregar na missa de abertura do Congresso Internacional de Liturgistas Africanos, no dia 4 de dezembro, em Dakar (Senegal), o cardeal guineense disse que os esforços para “respingar e espalhar elementos africanos e asiáticos na liturgia” estão “distorcendo o mistério pascal”.
Há mais do que mero esnobismo cultural aqui! O pedido do cardeal pelo retorno ao Missal Romano de 1964 foi ampliado em seu sermão, no qual ele comentou que “as nossas liturgias muitas vezes são brandas demais e barulhentas demais, africanas demais e cristãs de menos”. Aparentemente, concluiu, no que diz respeito aos católicos africanos, é possível pode ser ou africano ou cristão, mas não ambos.
Se brandura e barulho são características da africanidade – algo que eu não levaria em consideração – então deve ser possível que os franceses também sejam brandos, barulhentos e franceses demais em seu culto. Mais importante do que perguntar “como é que alguém pode ter uma liturgia branda e barulhenta?” é perguntar se a nacionalidade – neste caso, a africanidade – é incompatível com a “cristianidade”.
Talvez o cardeal Sarah concorde com o falecido Papa Bento XVI, que sugeriu em um discurso em Regensburg (Alemanha) em 2006 que a única inculturação cristã essencial ocorreu quando a Igreja primitiva passou de uma mentalidade, de uma língua e de um sistema simbólico “hebreus” para uma cosmovisão, uma linguagem e um sistema filosófico e simbólico “helenísticos”.
No pensamento de Bento, essa transição estabeleceu a relação causal entre o Ocidente e o cristianismo. Assim como o Ocidente perdeu o contato com sua cosmovisão cultural, linguística e intelectual essencialmente “grega”, ele também perdeu o contato com os fundamentos do sistema simbólico cristão.
Consequentemente, a Igreja Católica está agora vagando, perdida no pântano dos “respingos” asiáticos, africanos, alemães, franceses, indianos, canadenses etc. que obscurecem o Mistério Pascal e o reduzem a uma função da cultura.
Enquanto os bispos e os cardeais lutam para preservar a forma perfeita da liturgia da Igreja, a “Igreja comum”, o clero e as pessoas da base continuam buscando, muitas vezes sem uma direção clara e no meio de vozes contrárias, novas formas de abordar as questões atuais, abrindo caminho para o Senhor e endireitando as estradas.
Sessenta anos depois da Sacrosanctum concilium, a pequena ruptura do cisma liderado pelo falecido arcebispo Marcel Lefebvre tem sido alimentada por papas, bispos, padres e leigos, em um incêndio que dilacera o coração da Igreja e inibe o debate respeitoso e conciliar.
Nossa experiência de divisão se insere em um contexto litúrgico. Ele não pode ser ignorado, a menos que se veja a “liturgia” como uma manipulação de normas rituais ou a performance branda de ritos.
Se, no entanto, alguém vê a “liturgia” como a reunião dos batizados e batizadas que são chamados em Cristo a testemunhar o amor e a compaixão de Deus ao mundo e a viver, eles mesmos, esse amor e essa compaixão, então você tem uma questão que não pode ser ignorada, porque a natureza e a performance da liturgia vão ao encontro do coração da Igreja. O ato litúrgico dá a todas as outras disciplinas da teologia e do direito da Igreja a sua orientação e propósito últimos.
Todo o projeto sinodal fracassará se os conflitos litúrgicos não forem resolvidos. Ignorá-los por muito tempo levou a uma situação em que a oração litúrgica se tornou uma questão de estilo para muitos – independentemente de sua posição teopolítica. A justificação do estilo é exemplificada pelos comentários do cardeal Sarah.
Onde o estilo está na vanguarda dos debates litúrgicos, a estética, a música, a beleza e o silêncio são os modos que removem a “humanidade” (barulho, nacionalidade, cultura, brandura) tanto dos fiéis quanto do clero. Ao reduzir o barulho e remover os “respingos” de humanidade relacionados com o evento da encarnação e sua teologia, obtém-se uma versão higienizada da encarnação e, portanto, do Mistério Pascal.
Consequentemente, Deus se torna a divindade presa em um pedaço de pão e em um cálice de vinho. O problema, então, é que a expressão litúrgica não pode mais revelar o Deus que deseja ser conhecido. A liturgia, nesse contexto, pode muito bem expressar belamente o silêncio, a reverência, a adoração, a reserva e a estética, mas será que essa é a forma mais autêntica de experimentar a liturgia como fonte de salvação, o ápice da graça?
Os comentários do cardeal Sarah ilustram o cisma funcional em operação na Igreja. Esse cisma assume dimensões litúrgicas nas quais a diversidade de gênero humano, de biologia, de sexualidade e de preferências sexuais tornam-se ou entradas ou bloqueios ao ministério hierárquico.
No cerne do atual cisma funcional, está um colapso encarnacional do sentido, porque a nossa soteriologia é confundida pela compreensão contemporânea da criação, da humanidade e dos fins escatológicos da existência humana. Consequentemente, as nossas teologias secundárias e a lei da Igreja baseiam-se muitas vezes em entendimentos científicos de gênero e de papéis de gênero, de sexualidade e orientação sexual, de atividade sexual e reprodução humana que foram largamente desacreditados.
A consequência dessa posição é que a estrutura da salvação cristã é muitas vezes vista em questões isoladas – da mesma forma, em grande parte, que os bispos católicos dos Estados Unidos abordam sempre seu debate político-social como uma questão ligada ao aborto em primeiro, segundo e terceiro lugares.
Abordar a salvação com um conceito subdesenvolvido de encarnação impacta as reuniões litúrgicas, porque elas se tornam – sem querer – ou o cadinho de experimentação para novas ideias, o lugar de debate e disputa, ou o local para entendimentos banais que esvaziam os bancos e os santuários de católicos pensantes.
O perigo para a experiência litúrgica e para a noção geral da natureza e da função da liturgia é celebrar, em sinais e símbolos, uma soteriologia que se desviou de seu fundamento encarnacional.
Quando a celebração litúrgica perde sua dimensão encarnacional, ela cumpre a lista de desejos do cardeal Sarah de não ser barulhenta, asiática, africana ou branda. Em vez disso – seguindo sua lógica – a recitação litúrgica da encarnação não é tocada pelo Mistério Pascal, que é hebraico, barulhento, violento, sacrificial, sangrento, confuso e bagunçado!
Quando a noção de salvação não se relaciona encarnacionalmente com a experiência de ser humano (escatologicamente criado e redimido), o ato litúrgico torna-se uma questão de estilo que reformula o Mistério Pascal como um evento higienizado por meio do qual Deus magicamente limpa o mundo e fornece aos devotos um lugar seguro, limpo e quieto para a contemplação e o culto imperturbados de sua ideia de Deus.
A oração litúrgica é uma forma pela qual Deus vem ao nosso encontro para nos salvar por meio de sinais e símbolos perceptíveis aos sentidos, em comunidades de fé estabelecidas pelo batismo, que escutam a palavra de Deus, são alimentadas pela eucaristia e vão ao encontro do mundo em uma caridade de inclusão.
Quando encarnada e enquadrada no Mistério Pascal, a liturgia torna-se um lugar-chave onde podemos reconhecer o “alcance” salvífico de Deus e responder com louvor e ação de graças.
No nosso cisma funcional, lutamos para articular uma soteriologia encarnacional; nossa “representação litúrgica da salvação” torna-se uma questão algemada que cria as “guerras culturais litúrgicas”. O papel da liturgia, dentro da estrutura da revelação, é testemunhar a presença encarnacional de Deus encontrada no Mistério Pascal.
Como parte da dinâmica da salvação, o ato litúrgico articula o marco encarnacional que é o fundamento do significado, do propósito e do fim da criação. A liturgia dá forma à relação humana e divina que torna todas as coisas possíveis, expressando o fim escatológico da vida.
Quando a “redimibilidade” de uma pessoa é determinada de forma heteronormativa, e a “capacidade” de uma pessoa batizada de presidir o culto católico é determinada biologicamente, encontramo-nos em um cenário que trata o ato litúrgico como um veículo ideológico que exclui intencionalmente com base em algo inferior à revelação da natureza encarnacional do Mistério Pascal.
Enquanto o cisma funcional continuar, continuaremos lutando para entender exatamente o que podemos acreditar sobre a humanidade de Cristo – e a nossa própria humanidade –, quando as pessoas se consideram “não mais redimíveis” ou não mais “adequadas”, por serem negras, barulhentas, mulheres, gays, asiáticas ou africanas – em suma, humanas.
O maior perigo para a Igreja é ter membros batizados que se consideram uma distorção da encarnação e, portanto, excluídos e obstruídos dos efeitos do Mistério Pascal.
O colapso encarnacional é um conflito de cosmovisões nas quais “Deus” está “presente” em ambos os lados das condenações do cisma. Alguns chamam essa cultura de “guerras litúrgicas”. Infelizmente, a teologia e o ritual são transformados em armas como meios para um fim ideológico. Como em todas as guerras, a primeira vítima é a verdade.
Contudo, encarar essa situação como uma guerra que pode ser curada é simplista demais; um cisma é uma experiência muito mais profunda, porque divide a comunidade batismal segundo as linhas da soteriologia. Separar cosmovisões escatológicas que contestam a natureza, o propósito e a capacidade de Deus para salvar não ajuda ninguém. Como consequência, Deus torna-se “armado” em um processo que é mais político do que redentor. A cultura que está em disputa é a cultura Dei e o modo como ela funciona.
Nas mentes daqueles que contestam os ensinamentos do Concílio Vaticano II, a dinâmica divindade-cultura que cria uma cultura religiosa autêntica foi perdida com as reformas iniciadas durante e após o Concílio. Duvido que essa mentalidade mude por meio da persuasão ou de preceitos legais. O cisma terá que seguir seu curso.
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Cardeal Sarah, inculturação e cisma litúrgico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU