21 Novembro 2023
O legado teológico de Romano Guardini, caracterizado por uma abertura ao mundo e um foco na íntima conexão entre liturgia e vida, alinha-se com o apelo do Papa Francisco a uma teologia engajada com as mudanças sociais e culturais.
A opinião é de J. P. Grayland, padre neozelandês e atualmente professor visitante na Universidade de Tübingen, na Alemanha. O artigo foi publicado em La Croix International, 20-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As implicações da recente revisão dos estatutos da Pontifícia Academia de Teologia pelo Papa Francisco oferecem aos teólogos uma terceira fonte para a reflexão teológica, a saber, a cultura e o contexto.
Uma teologia “aberta”, “sinodal” e “missionária”, livre de estruturas de pensamento “autorreferentes”, pode ser dinâmica e envolvente. Essa é a base para uma abordagem teológica transdisciplinar que não tem medo das ciências físicas, humanas e sociais contemporâneas. Não esconde conceitos de natureza, humanidade, sociedade, justiça e poder que condizem mais com a Idade Média ou com as controvérsias modernistas do século XIX.
No centro da mudança teológica de Francisco está Romano Guardini, uma figura proeminente no movimento teológico e litúrgico da Reforma Alemã do fim dos séculos XIX e XX. A ênfase de Guardini na importância da experiência e do contexto na reflexão teológica ressoa com a visão do papa sobre uma Igreja profundamente ligada ao mundo contemporâneo, e os escritos de Francisco refletem e fazem referência ao pensamento de Guardini.
O contexto teológico de Guardini é o período transformador do fim do século XIX a meados do século XX. Ele surge no contexto da industrialização, da guerra e de movimentos filosóficos, entre os quais o Movimento Lebensreform. Esse movimento de reforma social politicamente diversificado na França e na Alemanha de meados do século XIX e do início do século XX teve um importante proponente alemão em Wilhelm Dilthey (1833-1911).
Dithey diferenciava a vida do indivíduo e a vida como um todo, enfatizando que a compreensão da vida exigia o acesso à experiência plena e pura. Ele criticava a filosofia que se focava demais na racionalidade e negligenciava as dimensões da vontade e das emoções.
Da mesma forma, Guardini criticava o impacto da modernidade nos indivíduos e nas sociedades. Sua crítica à Neoescolástica era paralela à sua crítica à industrialização, em que destacava a desconexão entre a teologia acadêmica e as experiências vividas pelas pessoas.
Guardini colocava a experiência no centro de sua reflexão teológica e no coração da relação entre liturgia e vida. Ele criticava a estreiteza neoescolástica que reduzia a teologia a um conjunto de proposições, porque levava muito pouco em consideração as realidades das vidas das pessoas e carecia de uma genuína compreensão da experiência de fé contemporânea.
O Papa Francisco tem enfatizado que vivemos em uma “mudança de época”, que exige um engajamento teológico mais profundo com as mudanças sociais e culturais que moldam a nossa compreensão da fé, do culto, da salvação e de Deus. Precisamos de uma visão litúrgica do mundo que compreenda a ecologia fundamental da vida e as inter-relações entre todas as esferas do conhecimento dentro da nossa “casa comum”.
Entre os teólogos reformistas alemães, Guardini representa uma abertura única ao mundo e às questões de fé levantadas no contexto da cultura. E é essa perspectiva que Francisco está oferecendo aos teólogos.
Guardini defendia uma reforma dos fiéis católicos por meio do veículo da liturgia. Em uma experiência litúrgica viva, enraizada na vida real dos participantes, a liturgia torna-se uma fonte de renovação vibrante. Um encontro litúrgico, inserido na experiência humana, intimamente ligado à vida e expressado em um rito significativo, torna-se o lugar onde um indivíduo é despertado para as glórias da vida. Em um ato litúrgico dessa natureza, a presença de Deus torna-se acessível, e Deus, que está presente e ativo em toda a criação, é celebrado como fonte de todas as coisas.
Assim como a obra de Guardini se centrava na relação entre a prática litúrgica e a fé vivida, os teólogos de hoje precisam considerar a relação entre cultura e contexto, e o modo como se eles relacionam com as Escrituras, a tradição e o magistério.
Assim como Guardini propunha que a liturgia e a vida são experiências encarnadas em um indivíduo – um ser integral – que reza e vive, o teólogo de hoje não pode fazer teologia sem levar em consideração a cultura e o contexto que constroem a experiência encarnacional do ser humano, como fontes constitutivas da visão e do conhecimento teológicos, talvez até como fontes de revelação.
Reconhecer o contexto como uma fonte fundamental para a teologia para um engajamento teológico abrangente com questões significativas da mudança social e cultural também oferece a oportunidade de parar de tentar responder a questões teológicas por meio de recursos legais, porque a lei eclesial não é teologia. As limitações das disciplinas jurídicas ressaltam a importância de iniciar investigações teológicas a partir da perspectiva das experiências vividas, da oração e das práticas encarnacionais.
Assim, responder a questões relativas à ordenação, à sexualidade e ao gênero ou à bênção de casais não jurídicos por meio do uso do Direito Canônico só pode terminar em frustração, porque se trata de questões teológicas para as quais o Direito Canônico carece do fundamento necessário.
Em assuntos tão importantes quanto esses, existem duas máximas: 1) as pessoas rezam (orandi) aquilo que creem (credo), e a oração prepara o terreno para a crença; e 2) a práxis sempre precede as formulações; aonde as pessoas vão, a formulação e, finalmente, a lei seguem atrás.
Para “fazer teologia”, os teólogos devem usar a cultura e o contexto quando consideram como as Escrituras, a tradição e os ensinamentos magisteriais são “ouvidos” ou não hoje. Isso é essencial se quiserem obter uma visão sobre como um evento, um ensinamento ou um ato de culto se torna positivo ou negativamente transformador de indivíduos ou grupos.
O legado teológico de Romano Guardini, caracterizado por uma abertura ao mundo e um foco na íntima conexão entre liturgia e vida, alinha-se com o apelo do Papa Francisco a uma teologia engajada com as mudanças sociais e culturais.
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Francisco, Guardini e a abertura a novas fontes de reflexão teológica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU