26 Abril 2025
Os predecessores foram um parêntese entre o Vaticano II e sua chegada: Bergoglio retomou o caminho radical de renovação da Igreja iniciado na década de 1960 e interrompido pela ala conservadora.
A entrevista é de Umberto De Giovannangeli, publicada por L'Unità, 23-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma grande lição de história, cultura, política e religião, dada aos leitores do ‘L'Unità’ por um dos maiores vaticanistas italianos: Raniero La Valle, escritor, ensaísta, político, jornalista de destaque na RAI na era de ouro, já há tempo tristemente desaparecida, do serviço público de radiodifusão.
Há alguma lembrança pessoal de que se recorda ao pensar em Francisco?
Há uma lembrança que está ligada a algo que aconteceu comigo apenas uma vez na vida: uma missa interrompida na metade, como se algo mais importante tivesse acontecido. Estávamos na igreja de San Gregorio al Celio junto com outras pessoas amigas para uma missa no trigésimo dia da morte de minha irmã Fausta. E, em um determinado momento, um monge camaldolense irrompeu dizendo: “Elegeram o Papa! Elegeram o Papa!”, mas ainda não se sabia seu nome. Então, todos nós saímos do altar e corremos para a televisão para descobrir quem era. E era Bergoglio. E o que me chamou a atenção não foi o “Boa noite!”, mas o fato de que ele não estava com a mozeta vermelha, a capa vermelha que os papas usavam após a eleição e nas ocasiões mais solenes. A mozeta vermelha era o manto real que os imperadores usavam e que, desde Constantino, tinha chegado até o último papa. Depois, fiquei sabendo (mas não pude confirmar) que quando Bergoglio, da Capela Sistina, tinha ido para a Loggia das Bênçãos, com vista para a Praça de São Pedro, e um prelado lhe apresentou a veste branca de seu tamanho e a mozeta imperial, ele a rejeitou dizendo: “O carnaval acabou”. E, em vez de subir idealmente ao trono, abaixou a cabeça diante da multidão repentinamente silenciosa, como se fosse receber a investidura não mais dos cardeais, mas do povo de Deus.
O carnaval já havia acabado, quanto à cadeira gestatória, desde o Papa João XXIII, que a havia desmitificado dizendo que o lembrava de quando era carregado nos ombros de seu tio quando criança em Sotto il Monte; e quanto o Triregno (uma coroa, três reinos!), ela havia sido abandonada por Paulo VI que, tendo-a recebido como um presente de sua diocese de Milão, deu-a de presente (ou vendeu-a) à Igreja estadunidense para que pudesse distribuir os lucros aos pobres ou para as missões.
Mas essas renúncias tinham que contar uma história bem mais importante que o Papa Francisco mais tarde revelou solenemente à Cúria, à Igreja e ao mundo: “Não estamos mais no regime de cristandade, não mais!"
A cristandade é “aquele processo iniciado com Constantino, no qual - segundo a Civiltà Cattolica - é implementado um vínculo orgânico entre cultura, política, instituições e Igreja”; um processo que assumia a Igreja como a própria realização do Reino de Deus na terra e, portanto, fazia da Igreja a verdadeira soberana terrena. E pode-se dizer, com o padre Antonio Spadaro, que “a missão de Carlos Magno acabou”, e que a proclamação final dessa saída do regime constantiniano ocorreu em maio de 2016, quando o Papa Francisco, recebendo em Roma o Prêmio Carlos Magno, que havia recebido do Papa em São Pedro a coroa daquele Sacro romano império, com os líderes europeus celebrando sua glória, enviou-a de volta ao remetente para restitui-la à Europa, ou seja, aos povos que são seus únicos titulares.
O que diferenciou Francisco de seus predecessores mais imediatos?
É claro que, em linhas gerais, pode-se dizer “nada”. Porque o Evangelho do mistério cristão é o mesmo para todos os papas. Entretanto, em sua proclamação, pode-se dizer “tudo”: já o Papa João XXIII, antes de sua morte, havia consagrado a mudança, dizendo que “não é o Evangelho que muda, somos nós que começamos a compreendê-lo melhor”. Com relação aos seus antecessores mais recentes, pode-se dizer que eles foram como um parêntese entre João XXIII e ele, entre a conclusão do Concílio Vaticano II e a sua retomada efetiva cinquenta anos depois, com o Jubileu da Misericórdia convocado pelo Papa Francisco e iniciado na data simbólica de 08-12-2015, correspondente à data de encerramento do Concílio.
De fato, pode-se dizer que a renovação radical, não apenas da Igreja, mas de sua teologia, inaugurada pelo Concílio Vaticano II, foi retomada com seu pontificado.
O próprio Paulo VI, que o havia reconconvocado após a morte do Papa João, sentiu-se assustado por ele, a ponto de dizer que, após o Concílio, “a fumaça de Satanás havia entrado no templo de Deus por alguma fresta”. Também o Papa Ratzinger fez questão de dizer que o Vaticano II deveria ser interpretado de acordo com “a hermenêutica da continuidade”, em oposição àquela da “descontinuidade e da ruptura”; duas hermenêuticas contrárias que “foram confrontadas e brigaram entre si”, a última levando à confusão nas mídias de massa e até mesmo em uma parte da própria teologia. Quanto ao Papa Wojtyla, ele tentou reciclar o carisma do Concílio no viés espetacular de seu pontificado.
Quais foram os traços mais significativos do pontificado de Jorge Bergoglio e o que ele deixa para os crentes e também para os muitos não crentes que viram nele um ponto de referência ideal como poucos outros no mundo?
Neste ponto é possível responder sobre o legado que ele nos deixou. Não se trata de uma herança, embora muito celebrada, mas de uma doação, que permaneceu oculta ou incompreendida por dois mil anos e agora é entregue às novas gerações para sempre: a Igreja é de todos e para todos, “para todos, todos!”, repetiu ele com toda a sua voz e toda a sua fé para as multidões que não estavam acostumadas a acreditar nisso. E “todos” significa não apenas os últimos, os pobres, os descartados, os migrantes, os doentes, os idosos, os avós, as mulheres e as crianças (especialmente aquelas que perderam o sorriso). Não apenas os comprados e vendidos, ou seja, os alienados no mercado do capitalismo selvagem, e os despossuídos, os homossexuais, os divorciados que voltaram a se casar. “Todos” significa aqueles que até agora não eram considerados como pertencentes ao povo de Deus, porque não entraram na Igreja pela porta do batismo, mesmo sendo “homens de boa vontade” que, nas palavras de Santo Agostinho, se perdem porque “extra Ecclesiam nulla salus”, fora da Igreja não há salvação. “Todos” significa não apenas as mulheres católicas finalmente admitidas pela Congregação do Culto Divino a terem seus pés lavados nos ritos da Quinta-feira Santa, não menos do que os homens católicos; em 2013, logo depois de eleito, na prisão juvenil de Casal del Marmo, o Papa Francisco lavou os pés de 12 jovens detentos, também muçulmanos ou não crentes, e do assistente humanitária leiga: todos os membros do povo de Deus. “Fratres omnes”.
E em Abu Dhabi, junto com o grande imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb, assinou o documento que qualifica não como erros, mas como “uma sábia vontade divina”, com a qual Deus criou os seres humanos, “o pluralismo e as diversidade de religião” junto com aquelas “de cor, sexo, raça e língua”.
Todos, então: mas para qual salvação? Somente para a vida presente, e não para o além? Aqui está uma resposta de Francisco, não sustentada pelo dogma, mas “uma coisa pessoal minha: gosto de pensar que o inferno está vazio, espero que seja realidade”. Vazio? Então, onde está a retribuição? Onde está o Dies Irae? Onde está a Capela Sistina? A verdade que está acima de tudo é que Deus é apenas misericórdia, um Deus que não fosse misericordioso nem mesmo seria um Deus, ele ama a todos, ele “chega primeiro”, “primerea”, como diz o argentino com um neologismo espanhol, antes mesmo de nosso pecado, antes de nós o invocarmos. Essa é a dádiva.
Então, talvez sim, no Inferno estavam os Condes Ugolino, os Papas e os amantes, como canta Dante, mas eis que agora tem um Papa que desceu de sua cátedra, um sucessor de Pedro a quem, de acordo com o Evangelho, Jesus havia dito que o que ele ligasse na terra também seria ligado no céu, que pensa que o Inferno está vazio; e se o Filho de Deus cumpre suas promessas, talvez agora realmente o seja porque assim o pensou o discípulo que amou muito a “todos”, como ele.
Por suas posições contra o rearmamento, as guerras e, mais recentemente, sua denúncia da desesperada tragédia de Gaza e do povo palestino, Francisco foi acusado das piores coisas: amigo de Putin, pacifista de molde antigo, terceiro-mundista e até antissemita... Ele não foi um papa neutro. Paulo VI achava que a Igreja deveria ser neutra entre os Estados Unidos e os vietcongues, e é por isso que se recusou a condenar os bombardeios estadunidenses no Vietnã do Norte, como grande parte da Igreja, e até mesmo o arcebispo Lercaro e o “Avvenire d'Italia”, lhe pediam para fazer. Quando o Papa Francisco visitou Bolonha muitos anos depois, citou o que a Igreja havia defendido na época e repetiu que “o caminho da Igreja não é a neutralidade, mas a profecia”.
Guerra e paz, direito e fome, Ucrânia e Gaza, Sudão e Mianmar, economia e ecologia, guerra mundial em pedaços e sua transformação agora em um “verdadeiro conflito global”: muito foi dito sobre isso nos últimos dias, Maurizio Acerbo escreveu que “acima de tudo, ele será lembrado como o papa pacifista que não teve medo de usar a palavra genocídio em Gaza”; portanto, não se trata de retomar a análise aqui. Talvez se possa dizer tudo em uma única frase, a palavra dita no final de sua vida, do Hospital Gemelli: “Daqui a guerra parece ainda mais absurda”.
No plano estritamente eclesial, até que ponto Bergoglio realmente conseguiu reformar a Igreja?
E se essa não for uma reforma da Igreja, o que é? O Papa Francisco não é uma herança. É uma dádiva.