24 Abril 2025
"Esta base teológica e existencial da trajetória de Francisco o fez um homem da cruz, visto o seu contínuo envolvimento ativo com as histórias de sofrimento dos mais frágeis".
O artigo é do padre Ademir Guedes Azevedo, missionário passionista e mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma.
Foram doze anos de convivência centrada no essencial do evangelho. Um homem simples, de ideias claras, hábitos modestos, palavras afáveis, decidido, disponível, alegre, solidário, realista e esperançoso: estamos falando do argentino jesuíta, Jorge Mario Bergoglio. Ele se autodefiniu como um "pecador amado por Deus". Aquela cena bíblica do olhar de Jesus ao coletor de impostos (cf. Mt 9,9) Mateus, tornou-se a inspiração divina que configurou a sua interpretação e o seu foco de anúncio cristão: Miserando atque eligendo (com misericórdia, o elegeu).
É a misericórdia a chave evangélica de sua existência. Ele sentiu esse poder divino de trazer à vida quem se sente aniquilado pelo pecado que humilha a obra de Deus. A misericórdia, graças a confissão dos pecados, faz recomeçar e renascer, levantar-se, olhar para frente, agarrar-se a corda da âncora da esperança. Trata-se de entrar no útero divino, permitir que Deus tome em suas mãos a vida despedaçada para reconstruí-la outra vez, com ternura, com a sua carícia e o seu abraço de reconciliação. É a misericórdia o farol que ilumina a vida cristã pelas estradas de seu peregrinar terreno.
Mas a misericórdia para realmente encarnar-se necessita de um coração pobre, disponível e aberto a esta graça. Foi justo isso que o cardeal Bergoglio transmitiu quando escolheu o nome de Francisco. A pobreza evangélica é a irmã gêmea da misericórdia. Um coração pobre acolhe a misericórdia com humildade, deixando configurar-se, moldar-se e conquistar-se pelo estilo de Deus, ou seja, pelo seu abaixamento de kénosis que vai ao mais profundo da realidade de sofrimento do homem. Francisco usava o termo "periferia" em seu sentido teológico, referindo-se ao lugar onde Deus se encarna para amar e oferecer misericórdia. É para a periferia que a comunidade de Jesus deve sair: é lá onde se encontra o homem a espera de um gesto de reerguimento, pois na periferia está a carne sofredora de Jesus, aguardando o toque de misericórdia da sua comunidade samaritana.
Esta base teológica e existencial da trajetória do Papa Francisco o fez um homem da cruz, visto o seu contínuo envolvimento ativo com as histórias de sofrimento dos mais frágeis. Primeiramente, ele não se deixou enganar por nenhum truque mental que pensa o evangelho como algo indiferente a realidade. Ele não se refugiou numa ideia gnóstica de Deus para se proteger dos riscos e da responsabilidade que exige o contato com a vida do próximo. É neste sentido que ele concebe a Igreja como um hospital de campanha, onde tem gente ferida, necessitada de cura e de atenção. Esta imagem serve para entender a relação de Francisco com a cruz: neste hospital de campanha estão pessoas crucificadas junto ao Crucificado. São as muitas histórias de paixões dentro daquela única história de Paixão: as cruzes humanas na Cruz divina. E o cristão é este ser de compaixão que não foge das cruzes, caso queira ser fiel ao Crucificado. É assim que Francisco perseverou até os últimos dias: tornando-se um homem de sofrimento, lutando contra a guerra, recordando a paz e dando seu último suspiro pelo bem da comunidade cristã que ele serviu incansavelmente.
Quando se busca interpretar o pontificado de Francisco tendo a cruz como principal ponto de referência é preciso considerar o nosso contexto em seus aspectos líquido, fluído e relativista que tendem as nossas sociedades de hoje. Há pouquíssimos pontos de apoio, pois caminha-se com dificuldades no terreno arenoso da nossa sociedade pós-moderna. A falta de sentido da vida leva ao desespero e a angústia existencial. Os acontecimentos históricos abalam a estrutura psicológica, gerando incertezas, solidão e choro. Justo aqui neste terreno frágil Francisco insiste em algo sólido capaz de sustentar e criar vínculos entre as pessoas: se trata da sua proposta de fraternidade universal. Somo todos humanos e irmãos (fratelli tutti) e bastaria apenas esta consciência para o início de uma nova civilização, na qual cada um se sente em casa, protegido, apoiado pelo calor e o cuidado do coração humano. Foi assim que Francisco sinalizou ser um papa que caminha nas pegadas da cruz, pois nela o homem Jesus trouxe reconciliação e perdão, solidariedade e o início de uma nova humanidade.
Com a páscoa do Papa Francisco, muitas questões pertinentes soam como provocações para uma reflexão mais profunda a nível pessoal, eclesial e humanitário, tais como: Em que sentido o mistério da cruz tem realmente um impacto prático e ético sobre o meu modo de ser cristão hoje? A partir de agora, como será valorizada pela Igreja Católica a herança staurocêntrica do Papa Francisco, especialmente nas suas comunidades ao redor do mundo? Será possível manter o foco de compaixão para com as periferias ou haverá um retorno à tentação de refúgio nas antigas práticas religiosas que obscurecem o essencial do evangelho? Por fim, a nível mundial, a voz do próximo sucessor de Pedro vai ressoar como apelo de paz entre as nações em guerra? O cristianismo continuará apresentado como um estilo de fraternidade universal ou será visto somente como uma religião entre as demais, como experiência religiosa sem impacto social?
Teremos que esperar a história. No entanto, o momento é para agradecer a Deus pela vida do Papa Francisco que caminhou nas pegadas da cruz de Jesus, como discípulo amado e fiel ao seu evangelho.
Obrigado Papa Francisco, Deus lhe pague e que o Pai das misericórdias o acolha com o seu abraço.