"Francisco foi o papa das carícias, que marcou todo o seu itinerário pelo carinho e acolhida dedicados a todos, e também à nossa Casa Comum. Tinha a plena convicção de nossa tessitura terrenal".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.
Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Francisco, o bispo de Roma, fez a sua travessia no dia 21 de abril de 2025. Partiu deixando a todos nós numa situação de orfandade, mas provocados a dar continuidade ao seu infatigável trabalho em favor do cuidado com toda a criação. Sua proposta foi sempre demarcada pela missão evangélica da paz e da alegria. Como ele tão bem expressou em sua encíclica sobre o anúncio do evangelho no mundo atual, a Evangelii gaudium, de 2013, o evangelho é sempre um convite à alegria (EG 5).
Dentre tantos legados extraordinários deixados por Francisco, podemos destacar o seu compromisso de vida em favor de uma nova reverência para com a Terra. Sua encíclica dedicada ao tema, a Laudato si, de 2015, foi dos marcos mais essenciais em todo o seu pontificado. O renomado antropólogo, Bruno Latour, saudou a “verve” profética de Francisco, que a seu ver significou uma retomada do Cântico das Criaturas de são Francisco[1].
Francisco juntou-se a outras grandes lideranças religiosas, como o patriarca ecumênico, Bartholomeus I [2], e o monge vietnamita, Thich Nhat Hanh[3], na defesa de nossa casa comum. Para os três grandes mestres espirituais, toda essa crise ecológica por que estamos passando revela também uma grave crise espiritual. Somos assim, convocados por eles ao radical compromisso de defesa da Terra. Para Francisco, a causa da Terra deve ser um ponto de arranque para o diálogo entre as religiões, “visando ao cuidado da natureza, à defesa dos pobres, à construção de uma rede de respeito e de fraternidade”[4]. Trata-se de um diálogo animado por um espírito particular, de “paciência, ascese e generosidade” (LS 201).
Na base da visão de Francisco está a compreensão novidadeira da Terra e da Natureza, entendidas como um “livro esplêndido”. Nessa nossa Casa Comum, estamos todos enredados num maravilhoso emaranhamento: tudo está ligado a tudo. Há uma profunda inter-conexão entre todas as coisas, como diz Francisco em vários momentos de sua encíclica (LS 16, 42, 91, 92, 117). O que nos faz lembrar a rica concepção budista da originação interdependente, segundo a qual as coisas não podem ser compreendidas destacadas de todo um concerto mais amplo, que as liga e harmoniza. Em verdade, esta reflexão nos coloca diante de uma espiritualidade da ressonância, já defendida por Mestre Dogen, no século XIII. Ele dizia: “Uma flor desabrocha, e o mundo inteiro desperta”.
Francisco foi o papa das carícias, que marcou todo o seu itinerário pelo carinho e acolhida dedicados a todos, e também à nossa Casa Comum. Tinha a plena convicção de nossa tessitura terrenal. Dizia já no início da Laudato si, “que nós mesmos somos terra” e que “o nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta” (LS 2).
Na linha dos grandes místicos cristãos, como Mestre Eckhart, Francisco foi capaz de perceber a presença de Deus em todas as coisas, desvelando em todo o universo material a presença do rosto materno de Deus: “O solo, a água, as montanhas, tudo é carícia de Deus” (LS 84). Como na Canção XIV do Cântico Espiritual, Francisco reconhece com João da Cruz o rosto do Amado nas montanhas (LS 234). Para ele, o Mistério está misturado nas coisas, podendo ser contemplado a cada momento numa folha, numa vereda ou num orvalho (LS 233).
Em sua percepção crítica e revolucionária, Francisco relaciona o clamor da Terra com o grito dos pobres. Para ele, os dois clamores estão intimamente unidos, indicando o desafio fundamental, que é para todos, em favor de uma globalização da esperança.
Unindo-se às vozes dos terranos, que defendem o imperativo de Gaia, Francisco fez uma profunda crítica aos desmandos do Antropoceno, com sua voraz sede desenvolvimentista. Atacou o antropocentrismo despótico e desordenado (LS 68 e 119), que acompanha a pegada humana sobre a Terra, com todos os desdobramentos de riscos e catástrofes para a sobrevivência do ser humano e das outras criaturas. É contundente a sua crítica ao paradigma tecnocrático (LS 108) e o clima de “rapidación” e velocidade que se desdobram dele. O que estamos vivenciando, com preocupação, são degradações no âmbito da habitabilidade na Terra, e isto vem agravado com as mudanças climáticas e a crise ecológica, que Latour prefere nomear como “mutação” ecológica [5]. São situações difíceis que produzem grave crise migratória, ampliando o quadro dos “privados de terra”.
Em sua encíclica, Francisco faz uma viva defesa da Amazônia, entendida como o grande pulmão do planeta, portadora de maravilhosa biodiversidade. Francisco nos convoca à escuta atenta dos povos que habitam as florestas (LS 146). São povos que vivenciaram muitos “fins de mundo” e sobreviveram com suas artimanhas particulares. Na visão de Francisco, eles devem ser nossos “principais interlocutores”, e nos convocam ao aprendizado pertinente de suas sábias cosmologias. Como tão bem lembrou Ailton Krenak, esses povos originários sabem muito bem que “o futuro é ancestral, porque já estava aqui”[6].
Francisco nos chama a atenção para os limites do “progresso” que acompanha esse tempo do Antropoceno, para a indiferença geral diante de uma situação assim crítica, bem como para os fracassos da política internacional na busca de soluções para essa tragédia anunciada (LS 25, 27 e 54). Diante das previsões problemáticas, Francisco indaga: “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão crescendo?” (LS 159).
Ao fim da encíclica, Francisco lança sua proposta de uma espiritualidade ecológica e de uma cultura do cuidado. Uma tal espiritualidade é a porta de entrada para uma cultura de reverência para com tudo o que nos envolve, rompendo com a dicotomia entre natureza e cultura. No bojo dessa espiritualidade, está a busca de harmonia com toda a criação, bem como a redescoberta criativa do ritmo da natureza (LS 71). Francisco nos indica que na base de uma ética ecológica está o salto para o Mistério, pois é ali que se encontra a fonte geradora de um novo estilo de vida (LS 210). Envolvidos por essa espiritualidade somos capazes de encontrar um novo ritmo para o cuidado, pontuado pela gratuidade, simplicidade e beleza. É o caminho frutífero que se abre com a percepção da “dimensão receptiva e gratuita” de nossa vida e de nosso cotidiano. Francisco nos convoca ao caminho da sobriedade, do saber alegrar-se com pouco. É, em síntese, o caminho contemplativo. Trata-se do desafio de buscar o “menos” e não o “mais”; não ao caminho do consumo desenfreado, e sim aos rastros do despojamento: de um “regresso à simplicidade que nos permite parar e saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece” (LS 222). Essa espiritualidade proposta por Francisco tem sua fonte viva no evangelho e no seguimento de Jesus, inspirando-se também no grande exemplo de Francisco de Assis.
[1] Bruno Latour. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza do Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020, p. 445-446.
[2] Bartholomeus I. Nostra Madre Terra. Magnano: Qiqajon, 2015.
[3] Thich Nhat Hanh. Carta de amor à Terra. Petrópolis: Vozes, 2025.
[4] Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n. 201. A encíclica será sempre citada no texto com a abreviação LS, seguida do número de referência.
[5] Bruno Latour. Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 51.
[6] Ailton Krenak. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 11.