17 Fevereiro 2025
”Seria tranquilizador rotular o cristianismo de Trump e Vance como uma paródia. A questão é mais sutil e preocupante: é a revitalização de outra forma possível de cristianismo, aquela que nós, no Ocidente, havíamos superado com o Concílio Vaticano II”, afirma o filósofo e teólogo Vito Mancuso.
A entrevista com Vito Mancuso é de Giacomo Galeazzi, publicada por La Stampa, em 12-02-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
J.D. Vance recorre a São Tomás para justificar a deportação de imigrantes ilegais.
A primeira virtude cardeal é a sabedoria, ou seja, aprender a olhar e entender. Devemos exercer o discernimento. Eu gostaria de poder dizer que estamos diante de um cristianismo falso. Mas, na realidade, é uma das possíveis faces do cristianismo e das religiões. Aliás, é a face do cristianismo que historicamente mais se afirmou.
Nos séculos passados, em todos os países ocidentais, havia capelães militares que abençoavam as armas e incitavam os soldados contra os inimigos do outro lado, muitas vezes católicos como eles próprios; basta pensar, por exemplo, nas guerras entre italianos e austríacos. O estado medieval era a expressão da religião e vice-versa. O Antigo e o Novo Testamento estão repletos de divisões: nós, os puros, de um lado, eles, os impuros, do outro. Nós nos massacramos durante séculos em nome de divindades opostas.
A que se refere?
Vamos pensar no conceito judaico de 'herem' que motivou a hediondez da guerra de conquista da chamada Terra Santa. 'Herem' significa literalmente extermínio total e marca o passar ao fio da espada, como diz a Bíblia, todo ser vivo: homens, mulheres, crianças, idosos, animais. Sua instituição está no livro de Deuteronômio, capítulo sete, ou seja, na parte mais sagrada da Bíblia hebraica, a Torá.
É sistemática a aplicação desse terrível mandamento quando Israel conquista as cidades da terra de Canaã, entre as quais Jericó. Aqueles que querem encontrar motivações na Bíblia para sua guerra santa têm abundante material para fazê-lo.
A exigência de ter uma sociedade ordeira é um conceito estranho ao pensamento cristão?
Não. A exigência de ordem e segurança é algo inerente à condição humana, e tudo o que é humano não pode ser estranho a um cristianismo corretamente entendido. Se, para favorecer unilateralmente o acolhimento, se coloca em risco a ordem e a segurança, estará se cometendo um erro político, social e teológico.
O mandamento de amar o próximo é formulado na Bíblia e retomado por Jesus ao dizer para amar o próximo “como a si mesmo”. Não se trata de amar o próximo mais do que a si mesmo, mas como a si mesmo. A exigência de acolhimento dos migrantes não pode ser feita às custas das exigências de segurança dos residentes. Não se trata de um desequilíbrio no exercício do amor para com algumas categorias de pessoas em detrimento de outras.
Por outro lado, a exigência de segurança também não pode ser feita às custas do obrigatório e humano acolhimento dos necessitados. Proteger os próprios cidadãos e acolher os estrangeiros necessitados devem ser os dois pilares a serem unidos para formar a ponte da verdadeira política de inspiração cristã, desde que não se queira usar a referência ao cristianismo de maneira enganosa e falsa. Uma política saudável que se define cristã deve ter como objetivo compor essas duas polaridades.
E Trump fotografado como Jesus na Última Ceia?
É uma foto impactante, que me impressionou tanto que a salvei em meu computador. Marca uma mudança de paradigma em nível religioso e político. O clero, incluindo um padre católico, serve de corte ao imperador!
É uma foto chocante que nos leva de volta ao século IV, à época do imperador Constantino e seu sucessor Teodósio, que queriam e convocaram os primeiros concílios ecumênicos, começando com o primeiro, o de Niceia, proposto por Constantino em 325, exatamente 1700 anos atrás, e depois o de Constantinopla, proposto por Teodósio em 381.
Um ano antes, Teodósio havia proclamado o cristianismo como religião do Estado com o Édito de Tessalônica. E, desde então, o vínculo entre o poder político e o poder religioso foi orgânico e contínuo, representando a verdadeira cola da sociedade cristã, embora com alguns atritos, como a luta pelas investiduras nos séculos medievais.
Mas então veio o Vaticano II.
O Concílio percebeu que o vínculo orgânico entre o poder político e o poder religioso no Ocidente estava se dissolvendo e que o relacionamento precisava ser reconstruído em novas bases. No Ocidente católico e protestante, diferentemente do Oriente ortodoxo, no início da década de 1960, pensava-se ter saído das épocas de colaboracionismo trono-altar e das subsequentes concordatas com o regime fascista (1929) e o regime nazista (1933).
Espero estar errado, mas com Trump e Vance parece que podemos estar voltando para lá. A foto no estilo ‘Última Ceia’ com Trump no lugar de Jesus, que citamos acima, demonstra isso. Agora há o Papa Francisco no Vaticano que se opõe veementemente a essa visão, mas depois dele, ninguém sabe. Uma coisa é certa: embora seja algo que a história da Igreja e a teologia conhecem bem, essa redução do cristianismo a um instrumentum regni é o que de mais anticristão pode existir.
Por que anticristão?
Jesus foi condenado e crucificado pelo poder imperial. Ele foi executado com a pena capital que o Império atribuía aos sediciosos e rebeldes, culpados do pior crime: o crimen laesae maiestatis. Jesus representou o exemplo mais radical de oposição aos poderes deste mundo e, de fato, foi eliminado por uma aliança entre o poder político romano e o poder religioso judaico que expressava os interesses da aristocracia sacerdotal.
Portanto, se há algo que o cristianismo tem a oferecer, na medida em que for fiel a Jesus, é justamente a oposição aos poderes deste mundo. Se os cristãos se tornam funcionais ao poder, traem o sentido específico de sua fé, tornam-se inúteis como crentes, equivalentes aos muitos funcionários amigos do poder que a história e a economia produzem continuamente.
Pode nos dar um exemplo?
Retomando as palavras de Jesus, perdem o sabor e se tornam como o sal de que ele falou no Sermão da Montanha, questionando-se para que serve o sal se perdeu o sabor e respondendo que não serve mais para nada, exceto para ser jogado fora e pisoteado pelos homens.
Já há cortesãos em demasia, não há necessidade que se juntem também os cristãos. Infelizmente, porém, eles se juntam, já se juntaram. Os cristãos devem ser o sal da terra, ou o fermento da massa, para retomar as imagens do Evangelho.
Em suma, há dois extremos opostos a serem evitados: o radicalismo daqueles que só querem ser fermento sem se perder e entrar na massa (estou me referindo àquele radicalismo, às vezes fanatismo, que recusa qualquer mediação com a lógica do mundo sem entender que o fermento existe justamente em função da massa) e, do outro lado, o alinhamento total com o poder sob a insígnia do servilismo e da corte. O verdadeiro cristianismo está no meio, sempre distinguindo a cada oportunidade com responsabilidade a ação a ser tomada ou não.