30 Mai 2022
"Se a Igreja não respeita os direitos humanos, não pode pregar o Evangelho", relembra o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, ao citar a carta pública enviada aos líderes da Igreja italiana pela Coordenação das associações contra os abusos na Igreja Católica na Itália, em artigo publicado por La Stampa, 28-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tinha efetivamente que começar daí o difícil trabalho do novo presidente da Conferência Episcopal Italiana, e foi daí que começou. É daí que qualquer outra ação da Igreja Católica na Itália e no mundo de hoje encontra seu critério de verificação: na coragem e determinação com que é enfrentada a questão dos abusos sexuais do clero católico, especialmente contra os menores.
Em sua primeira declaração após sua nomeação papal, o cardeal Zuppi afirmou que sonha com uma Igreja que "está em caminho da Babel do mundo", belíssimo propósito cuja condição essencial é dada pela mais transparente operação de limpeza na própria casa. Isso se explica por si só porque "se a Igreja não respeita os direitos humanos, não pode pregar o Evangelho", como afirma com lógica cristalina a carta pública enviada aos líderes da Igreja italiana (poucos dias antes da nomeação de Zuppi) pela "Coordenação das associações contra os abusos na Igreja Católica na Itália", entre as quais o "Comitê Vítimas e Famílias".
Esta coordenação optou por se chamar em inglês (agora parece inevitável) #ItalyChurchToo, ou seja, "A Igreja Italiana também", onde a conjunção "também" se refere à ação empreendida já há tempo pelas Igrejas Católicas de muitos outros países, entre os quais em primeiro lugar a França e a Alemanha, e até agora ausente na Itália. A esse respeito, Zuppi declarou: "Sobre os abusos escolhemos um novo caminho, um caminho italiano", querendo assim distinguir a abordagem da CEI.
Isso significa que, diferentemente dos outros países em que a Igreja Católica tem confiado totalmente em centros de pesquisa independentes para a análise de denúncias, a CEI prevê, conforme declarado em seu comunicado de imprensa final, que a análise "será realizada em colaboração com institutos de pesquisa independentes, que garantirão perfis científicos e morais de alto nível”. Dizer "em colaboração" é bem diferente de confiar totalmente a análise das denúncias a institutos independentes: significa manter a direção das operações nas mãos da Igreja.
No entanto, o fato de haver uma colaboração com institutos independentes protege, pelo menos no papel, de fazer tudo em casa com o risco muito real de confundir juiz e acusado, e de se preocupar mais com padres abusadores do que com as crianças abusadas, como até agora demasias vezes aconteceu. É, portanto, claro que a consistência desse "caminho italiano" terá de ser julgado vendo-o em funcionamento, verificando primeiro a efetiva independência de tais "Institutos" até o momento desconhecidos e depois verificando o grau de envolvimento das pessoas que participam do #ItalyChurchToo, porque é evidente que não pode haver melhor garantia de seu envolvimento para a condução das investigações e das relativas providências.
Será o futuro próximo que nos permitirá entender se a receita da nova CEI de Zuppi produzirá realmente algo mais sábio e eficaz do ponto de vista humano e eclesial do que o que foi alcançado em outros países ou se, pelo contrário, tudo se resolverá na enésima solução. "à italiana", como aquelas a que infelizmente estamos acostumados no âmbito judiciário com anos e anos de investigações que muitas vezes acabam na “noite em que todas as vacas são pretas" (para retomar uma das frases mais famosas da história da filosofia que custou a Hegel a ruptura definitiva da amizade com Schelling).
No entanto, uma coisa é absolutamente certa: uma Igreja que quer chegar ao coração de todos, como escreve Zuppi, só pode ser credível para todos, e para ser credível não há outra forma senão pôr ordem, limpeza, justiça e, se for caso, rigor em seu próprio interior. O novo presidente da CEI disse que pretende "escutar as perguntas de todos, escutar realmente e se deixar ferir pelas perguntas". É uma bela expressão: se deixar ferir pelas perguntas. Mas de que forma se deixar ferir pela pergunta de um pai que pergunta como foi possível que seu filho ou filha tenha sido violentado da maneira mais torpe e covarde por aquele a quem o havia entregue em confiança e esperança, acreditando em sua batina e sua missão? Essas feridas a Igreja italiana deve realmente assumi-las sobre si mesma, empenhando-se sem desconto com a justiça, conforme estabelecido em 2019 pelo Papa Francisco com o motu proprio Vos estis lux mundi, que estabelece a obrigação moral e jurídica de denunciar abusos contra menores e pessoas vulneráveis.
Mas há outra coisa a destacar: quantos são os padres cometem esses crimes ao trair sua missão da maneira mais vergonhosa? Os dados oscilam entre 1,5 e 5 por cento do total, mas qualquer que seja a sua entidade real, eles são, de qualquer forma, uma minoria (que inclusive cometeria aproximadamente 1 por cento do total de crimes de pedofilia na Itália). A questão, porém, é que essa minoria desacredita amplamente o trabalho e a missão de tantos sacerdotes honestos, alguns dos quais devem ser considerados mais do que honestos, eu diria heroicos, para não dizer santos, a quem tenho a sorte e a honra de conhecer e regozijar-me por sua amizade. E é também para salvaguardar a honra desses padres que a ação da CEI deve ser severa e sem descontos para com os culpados.
Em suma, acho que a frente deve ser tríplice:
1) judicial: levar os culpados à justiça;
2) terapêutica e reparadora: fazer justiça às vítimas ajudando-as na medida do possível a reparar as profundas feridas psíquicas e espirituais;
3) pedagógica: orientar uma formação e um estado de vida para os sacerdotes que os protejam tanto quanto possível de cair nesses abismos.
Os abusos sexuais do clero estão à beira de constituir o fim da Igreja Católica, a queda livre de sua credibilidade como mãe e mestra, educadora das gerações mais jovens durante séculos. Para que a Igreja se salve e sobreviva a esse gigantesco tsunami de nível mundial, deve começar a considerar a si mesma menos importante que as vítimas e menos importante que a justiça. Deve começar a se considerar menos importante em geral, uma estrutura de serviço e não de poder, voltada não para o seu próprio bem, mas para um bem maior que é o bem do mundo. Os abusos sexuais de crianças inocentes pelo clero são o perigo mortal que a Igreja está enfrentando, mas, como escrevia o poeta romântico alemão Friedrich Hölderlin, "onde há perigo, cresce também a salvação".
E o Cardeal Zuppi, para muitos ainda Dom Matteo, tem o que é preciso para fazer entender aos outros bispos e a todos os padres o que é realmente importante.
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Uma credibilidade a ser recuperada. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU