02 Mai 2022
"Algo de novo debaixo do sol está sendo construído verdadeiramente, e é a consciência: consciência na sua capacidade de conscientização, de criatividade, de responsabilidade e, portanto, livre. Ou seja, a humanidade. É 'o humano no ser humano'”. E é essa humanitas que deve ser reconstruída".
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 29-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estou instintivamente de acordo com o título que me foi atribuído: “reconstruir”. Depois de décadas em que se pretendeu desconstruir, abater, revelar falsidades recônditas; depois da vontade de desmantelar o trabalho dos séculos anteriores fazendo filosofia “com o martelo”, como diz o subtítulo do “Crepúsculo dos ídolos”, de Nietzsche; depois de um século como o XX, em que o pensamento se propôs a “combater o sistema”, isto é, a dinâmica das forças econômicas, sociais, espirituais, culturais cujo concerto se chama política; depois da proclamação da morte de Deus e da instauração já universal da secularização e não raramente do niilismo; depois de demonstrações analíticas da falta de fundamento da subjetividade consciente e do livre arbítrio, razão pela qual parece não fazer mais sentido falar de liberdade, escolha, responsabilidade, com a consequente morte da ideia de ser humano; depois de tudo isto, ao que hoje se juntam as imagens de escombros e de morte da guerra ucraniana, é quase natural, eu diria até fisiológico, sentir a necessidade do procedimento contrário. Portanto, reconstruir.
Isso vale para a religião, a ética, o direito, a política, a família, a escola, a educação, a sexualidade, a linguagem: vale para a identidade humana na sua especificidade, cuja essência é cada vez mais opaca, porque é cada vez mais difícil entender o que significa verdadeiramente viver como ser humano.
Até mesmo o corpo como gerador de identidade não constitui mais um ponto de apoio estável para um número cada vez maior de pessoas, sobretudo de jovens. É estranho: existe um progresso objetivo em uma série de indicadores, mas a sensação mais generalizada é a decadência, a crise, o desgaste, o medo.
Então, surge na mente a necessidade natural de se apoiar em algo sólido e confiável. E por isso pretendemos reconstruir. Mas o que deve ser reconstruído?
A sociedade, é claro. A sociedade como um conjunto de sócios capazes de expressar um ordenamento global cujo nome é política, entendida como “ciência diretiva e arquitetônica no mais alto grau” (Aristóteles, “Ética a Nicômaco”, 1094b).
A sensação pervasiva de decadência, de fato, se dá pelo fato de não nos sentirmos mais sócios uns dos outros, de não estarmos mais reunidos em um projeto comum, em uma societas.
Por que não nos sentimos mais sócios? Porque ficamos desprovidos de um ideal maior do que o interesse pessoal que conecte as nossas consciências.
É possível reencontrá-lo? Não sei, não estou falando de um produto que pode ser fabricado teoricamente e que pode ser encomendado online. Estou falando de uma energia insondável e totalizante que se apossa da mente e que se chama paixão, fé, ideal. Giordano Bruno a chamava de furor: “heroico furor”. Porém, acredito que podemos nos predispor para acolhê-la com algumas práticas que dizem respeito à mente e à sua relação com a realidade.
A primeira consiste em voltar a dar valor à possibilidade da mente de conhecer a realidade. Segundo Nietzsche, “os fatos não existem, existem apenas interpretações” (“A vontade de poder”, af. 481): reconstruir significa, ao contrário, sustentar o primado dos fatos sobre as interpretações e, consequentemente, dispor a mente de modo que ela possa acolher os fatos na sua concretude, nomeando-os pelo que são. Pedra: pedra. Nuvem: nuvem. Água: água. Carícia: carícia. Soco: soco. Agressão: agressão. Guerra: guerra. Paz: paz. Reconstruir significa reencontrar a confiança na nossa possibilidade de conhecimento.
Reconstruir, em segundo lugar, significa restaurar densidade cognitiva aos ideais com os quais os seres humanos sempre se alimentaram: verdade, bem, justiça, beleza, alma, espírito, harmonia, amor, amizade, lealdade, sinceridade, honestidade, virtude. Depois de um século em que se fez filosofia com o martelo, reduzindo a ética no costume comum a uma prática irrelevante e muitas vezes objeto de sarcasmo, agora é o momento de gerar um pensamento que use a espátula, conscientes de que só assim é que se pratica verdadeiramente a alvenaria e se constrói e se reconstrói.
Por mais que a pars destruens seja necessária, é apenas na pars construens que se revela o valor de um pensamento, de uma teoria política, de uma estética, de uma espiritualidade, ainda mais radicalmente de um ser humano. Por quê?
Porque tudo é construção. Tudo é sistema, agregação, relação. Não existe nada que não seja uma construção, nada que não seja o resultado da ação designada pelo verbo “construir”: o ar e a água são construções, os próprios átomos que as compõem o são; assim também qualquer outro fenômeno natural.
Pense no seu corpo operando mentalmente a sua desconstrução: aqui estão a dezena de aparelhos, aqui estão os órgãos, os tecidos, as células, as organelas, as moléculas, os átomos, os elementos subatômicos. E agora, do princípio, a visão sintética a partir da qual transparece o quanto o nosso corpo é uma imensa e maravilhosa construção.
É por isso que a nossa mente sente a necessidade de construir e, portanto, também, logicamente, de reconstruir: porque, ao fazer isso, adere à lógica de onde vem e na qual se sente bem, ou seja, a lógica da harmonia relacional.
Há, porém, dois corolários essenciais. O primeiro é que reconstruir não significa restaurar, voltar atrás, pôr em ação uma reação que configure um retorno à Idade Média contra as aquisições da modernidade. Navegando no imenso rio da História, não é possível subir de novo a corrente e voltar para trás, porque a história, assim como a natureza, é uma processualidade irreversível.
O segundo corolário consiste na consciência de que desconstruir também é essencial ao processo histórico. Isso vale ainda mais para a natureza, que constrói não sem destruir, dá vida não sem tirá-la. Para voltar ao nosso corpo, pensemos no fenômeno da apoptose, a morte celular programada necessária para o nascimento de novas células. Mesmo neste instante, no nosso corpo, algumas células nascem porque outras morreram antes.
Isso significa que a negatividade tem uma necessidade dolorosa própria no processo antinômico que se chama História e, antes ainda, Vida. É a dinâmica geral que o budismo chama de impermanência e que nomeia o surgimento e o pôr-do-sol das coisas.
Por que, então, reconstruir? Porque o saldo não é igual a zero, já que é a partir de tal dinâmica que surge o processo chamado de evolução ou também de progresso, civilização, cultura, ciência, direitos humanos. Por isso, sentimos o desejo, apesar da impermanência de todos os fenômenos, de trabalhar para construir e reconstruir.
Sabemos que aquilo que construímos não durará para sempre, porque nada daquilo que teve um início é desprovido de fim, incluindo a nossa sociedade, a nossa pátria, a nossa religião, o nosso planeta. No entanto, essa consciência não deve nos levar a pensar que tudo é em vão, “vaidade das vaidades” como escreveu o Eclesiastes, que acrescentava que “não há nada de novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1,1 e 1,9).
De fato, ao contrário do que pensava o autor bíblico, algo de novo debaixo do sol está sendo construído verdadeiramente, e é a consciência: consciência na sua capacidade de conscientização, de criatividade, de responsabilidade e, portanto, livre. Ou seja, a humanidade. É “o humano no ser humano” de que fala Vasily Grossman, em “Vida e destino”. E é essa humanitas que deve ser reconstruída.
Ela só poderá ser reconstruída reencontrando, acima de tudo, uma renovada confiança na relação com a realidade: na capacidade da nossa mente de conhecê-la e na capacidade da nossa vontade de trabalhar nela honestamente.
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Reconstruir a humanitas. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU