18 Abril 2022
"O fato de o Novo Testamento conter essas duas teologias alternativas indica a legitimidade de ambas. O resultado é o que Bonhoeffer indicava ao falar de 'resistência e rendição': às vezes é preciso resistir ao poder, outras vezes render-se e adaptar-se. Entender quando e como é a obra da sabedoria, a grande tarefa da consciência moral. Na minha opinião, o essencial é evitar a unilateralidade e os extremismos de quem, escolhendo apenas um polo, condena totalmente o outro", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 16-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bem ou Mal? Duas teologias alternativas, ambas legítimas segundo o Novo Testamento.
Vamos todos levar a sério por um momento, crentes ou não crentes, o dogma da doutrina cristã: isto é, que Deus se fez homem. Digo "Deus": a Verdade, a Sabedoria, a Força, uma força tão forte que é Onipotência e tão inteligente que é Providência. Aquele que tudo sabe, que tudo vê, que tudo pode, que tudo dispõe. Pois bem, Deus se faz homem, entra no mundo que criou e assume um corpo plasmado por ele. Em uma situação normal, o que acontece com alguém que é dono absoluto de um lugar, por exemplo, de uma empresa, quando vai para a propriedade que depende dele em todos os aspectos? Acontece a recepção mais triunfal. Certamente não rejeição, perseguição, sentença de morte e relativa execução. Isso em uma situação normal. O cristianismo, ao anunciar a morte do Filho de Deus, que declara ser "verdadeiro Deus de verdadeiro Deus", faz-nos compreender que nós, na história, não estamos numa situação normal.
Isso é o que Hamlet de Shakespeare reiteraria à sua maneira 16 séculos depois: “O mundo está fora dos eixos". A morte na cruz do Filho de Deus revela que a História é guiada por poderes opostos ao Bem: São Paulo os chama de "príncipes das trevas deste século" (Efésios 6,12), o evangelista Lucas faz Satanás dizer que todos os reinos do mundo são seus e que ele os concede a quem quer (cf. Lc 4,6), o evangelista João designa Satanás "o príncipe deste mundo" (Jo 12,31). Em suma, não havia necessidade de esperar por Vladimir Putin para compreender a face obscena e estruturalmente má do poder: esta é a substância da história tal como emerge do Novo Testamento. Ou melhor, de uma das duas teologias da história que ele apresenta.
Há, de fato, outra, igualmente respeitada, que argumenta quase o oposto: isto é, que a história é guiada e controlada inteiramente por Deus, tanto no propósito geral a que tende quanto em cada mínimo evento que acontece. Por exemplo, Jesus pergunta a seus discípulos: "Não se vendem dois passarinhos por uma moeda?" E continua: “Mas nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai. E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados” para depois concluir: “Não temais, pois” (Mateus 10,30-31). Hoje temos muito medo e por isso saber que há quem vê e provê ajuda a diminuí-lo, senão mesmo a extingui-lo. Esta segunda teologia da história é muito mais tranquilizadora do que a primeira, mas qual das duas está mais próxima da verdade? Quem realmente puxa as cordas deste mundo: Deus ou Satanás? Bem ou Mal? É espantoso notar que o Novo Testamento legitima ambas as alternativas: o mundo guiado pelo Mal e o mundo guiado pelo Bem, "temor e tremor" e a confiança mais serena.
A diferença radical também surge em relação à morte de Jesus, respondendo à pergunta de por que ele foi crucificado. Ele sofreu a morte ou a buscou? Ele queria ou não queria morrer? Sua morte foi uma derrota ou representou a vitória suprema? Ambas as alternativas são encontradas no Novo Testamento.
Segundo a teologia que considera a história nas mãos de poderes das trevas, Jesus não quis morrer, mas foi morto pelo poder religioso e político, sofrendo nisso o mesmo destino que muitos outros justos antes e depois dele, desde João Batista a Oscar Romero, Rosario Livatino, Giovanni Falcone, Paolo Borsellino, Peppe Diana, Pino Puglisi, Anna Politkovskaja e muitos outros. Os justos, quanto mais eficazes na denúncia do mal, mais são perseguidos e eliminados. O próprio Jesus o havia previsto: "Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça".
Mas para a teologia que considera a história nas mãos de Deus que a dirige de forma justa e amorosa configurando-a como Providência, o responsável pela morte de Jesus só poderia ser aquele que decide cada destino: Deus Pai. Se Jesus foi morto pelos poderosos deste mundo, foi apenas porque este foi o plano concebido desde o início por Deus. Jesus se fez homem por estar destinado desde sempre a ser na realidade cordeiro: o cordeiro sacrificial, Agnus Dei, “a vítima imolada para nossa redenção”, como reza o cânone eucarístico da Missa Católica. E quanto à tradição ortodoxa, se forem olhados atentamente os ícones do Natal, nota-se que o menino Jesus não está em um berço, mas em um sarcófago, e que ele não está envolto em panos de bebê, mas em bandagens para múmias, de forma a sinalizar imediatamente o seu destino: Jesus "tinha" que ser morto. É o que afirmam os recorrentes "anúncios da paixão" nos Evangelhos sinóticos, bem como a fatídica "hora" de que fala o Quarto Evangelho, consistindo justamente na sua morte.
A divergência entre as duas teologias é reproduzida mais claramente no juízo sobre o poder político.
Para a teologia da história como providência, que convida a não ter medo e que por isso poderíamos definir otimista, o poder político, todo poder político, é uma expressão da vontade divina. Eis o que São Paulo escreve a respeito: "não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus". A consequência é logo mostrada: "e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação" (Rm13,1-2). Também Putin? Stálin? Mussolini e Hitler? O apóstolo Paulo não teria dúvidas em responder sim, porque "não há autoridade que não venha de Deus" (non est potestas nisi a Deo).
Para a teologia que concebe a história como uma dominação adversa a Deus, tão adversa a ponto de ter crucificado seu Filho e fazer o mesmo com todos os justos, o poder político é exatamente o oposto. Paulo escreveu as palavras que acabamos de recordar aos cristãos de Roma, então o poder de que ele estava falando era o Império Romano: pois bem, a teologia alternativa e pessimista da história fala de Roma exortando os cristãos a se rebelarem contra seu poder: "Tornai-lhe a dar como ela vos tem dado, e retribui-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber, dai-lhe a ela em dobro. Quanto ela se glorificou, e em delícias esteve, foi-lhe outro tanto de tormento e pranto” (Apocalipse 18,6-7). O que, longe de consistir no "dar a outra face", é uma exortação à rebelião (não descartaria violenta, dado o tom).
Vamos retornar a nós. Na pregação do Patriarca Kirill que abençoa a guerra de Putin é possível vislumbrar a teologia legalista com o poder, aquela que une em harmonia política e espiritualidade, e que no âmbito católico levou Pio XI a definir Mussolini como um "homem da Providência", mas que produziu também colaborações virtuosas com o poder político sabendo reconhecer uma política justa e solidária, como é o caso da colaboração entre Nelson Mandela e Desmond Tutu.
Na pregação do Papa Francisco, escandalizado e envergonhado pelo aumento dos gastos militares, é possível vislumbrar a teologia oposta ao poder, aquela que separa nitidamente política e espiritualidade e que rejeita qualquer compromisso, como foi o caso de Thomas More, mas que gerou também posições intransigentes incapazes de reconhecer a evolução da sociedade civil e da cultura dos direitos humanos, como aconteceu com a Igreja Católica ao longo de todo século XIX e praticamente até o Vaticano II.
O fato de o Novo Testamento conter essas duas teologias alternativas indica a legitimidade de ambas. O resultado é o que Bonhoeffer indicava ao falar de "resistência e rendição": às vezes é preciso resistir ao poder, outras vezes render-se e adaptar-se. Entender quando e como é a obra da sabedoria, a grande tarefa da consciência moral. Na minha opinião, o essencial é evitar a unilateralidade e os extremismos de quem, escolhendo apenas um polo, condena totalmente o outro.
O físico dinamarquês Niels Bohr, um dos pais da mecânica quântica, afirmava: “Existem dois tipos de verdade: as verdades simples, onde os opostos são claramente absurdos, e as verdades profundas, reconhecíveis pelo fato de que o oposto é em si uma verdade profunda”. A história é uma verdade profunda, aliás tão profunda que ninguém viu ou jamais verá seu fundo.
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Entre Deus e o Mal. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU